Ninguém faz menor ideia da extensão da minha falta de saco pra falar do finado Campeonato Carioca. Ô chatura! Mas como cada dia de confinamento na Pandemia tem me ensinado, como é importante ter alguém com quem falar. As paredes da minha casa já começaram até a fingir que tão dormindo, não aguentam mais meus solilóquios. Por isso sobra vocês, intimoratos e tradicionalistas leitores de blog, aturar meus desabafos.

Morto oficialmente ou não, o Carioca precisa ter um fim, principalmente a sua catastrófica edição 2020. Os sábios da FERJ poderiam ter se inspirado na Eredivisie holandesa ou na Ligue 1 francesa assim que o coronga botou a cara e acabado com a triste palhaçada rural ainda em março. Com quem o título iria ficar é irrelevante, os ferjers estariam ao menos salvando o seu produto desse enredo macabro que desafia a saúde pública e a dignidade humana por um motivo sabidamente torpe.

Infelizmente, o Flamengo foi uma das forças que, contrariando a OMS, manteve os aparelhos ligados sustentando a existência, mas não a vida, do centenário risca-faca praiano. Já que se meteu nesse conflito e não tem mesmo como ficar pior na fita, é de bom tom que o Flamengo o vença e nos deixe passar para as próximas páginas do até agora aterrorizante ano de 2020. É uma puta ironia que o ano seguinte ao Ano Mágico esteja sendo esse carrossel de tragédias, mas a única coisa que podemos fazer é ficar vivos e esperar que 2021 nos compense.

Essa última confusão sobre o televisionamento da final da Taça Rio era a pá de cal que faltava para que o Carioca 2020 possa receber antecipadamente o prêmio de campeonato mais ridículo da história. Clubes, emissoras, federação, advogados, juízes, tribunais e a politicalha de sempre se esfaqueando por absolutamente nada.

Quando já pensávamos que não tinha mais porra nenhuma pra acontecer nos aparece o ínclito Tribunal de Justiça Desportiva do Rio de Janeiro pra levantar a seguinte lebre: “que um sorteio não pode obrigar torcedores de um clube a assistirem o jogo no canal de um clube rival”. Mondo Bizarro! Dá nem pra argumentar tamanha a violência lógica de tal raciocínio.

O Flamengo brigou à beça, desceu às profundas do Hades, dançou com o capeta e ainda tirou foto pra ver aprovada a MP 984/2020 e agora tá cheio de torcedor tendo ataque de pelanca porque o jogo, de acordo com a MP, deverá ser transmitido pelo canal do Fluminense. Incoerência brutal, o sentido da canetada presidencial foi exatamente garantir o direito de transmissão aos mandantes. Ficar contra isso é um gravíssimo sintoma de retardo mental. Assim como se aproveitar desse lapso interpretativo dos procuradores do tribunal para obter alguma espécie de vantagem seria desonestidade pura e simples.

Tenho certeza que o Flamengo, que foi o grande lobista e o único a botar a cara pela aprovação da MP, virá a público em breve para dizer que não aceita essa esdrúxula tese e que não transmitirá o jogo pela Fla TV mesmo que seja permitido. Transmiti-lo, morais à parte, seria jogar no lixo todo o esforço empreendido pelo clube, com alto custo para a sua imagem pública, para conseguir a mudança nas regras do jogo com as TVs. Já estou até aplaudindo antecipadamente a postura honrosa do clube cidadão.

E essa preocupação do Flamengo com a retidão moral deve ser a mesma do Fluminense. Não esqueçamos que o clube dos três rebaixamentos consecutivos se encontra em meio ao litígio com a Rede Globo pelo cancelamento unilateral do contrato de transmissão dos jogos no Carioca. Se a Flu TV transmite o jogo final da Taça Rio estará, no meu entender de advogado de porta de boteco, invalidando o argumento da FERJ de que o cancelamento do contrato por parte da Globo foi ilegal.

O que significa dizer que não podemos alegar surpresa se às 21:30 de quarta-feira formos informados que, por motivo de força maior e em defesa dos melhores interesses do Fluminense Football Club, a pelada não passará em lugar nenhum. O que seria uma espécie de coroa poética da justiça e da coerência, um desfecho absolutamente em consonância com o pobre carioqueta 2020. Um campeonato clandestino, pessimamente frequentado e que quase ninguém viu. Sabemos que aqui no Brasil o combinado sai caro, que leis, direitos e deveres têm valor circunstancial e mudam de camisa conforme o vento sopra. Por via das dúvidas é bom trocar as pilhas do radinho.

Deixando pra lá essa briga de cães enlouquecidos por um osso quase sem carne e falando unicamente em futebol, o Fla-Flu anuncia-se como um massacre. Como rubro-negro me vejo forçado a fugir à própria natureza e ser humilde. Poucas vezes a distância técnica, anímica e estrutural entre Fla e Flu foram tão flagrantes e desmesuradas. É o tipo de jogo em que o torcedor tricolor vai precisar de menos de cinco minutos de bola rolando para se arrepender amargamente por não ter sido derrotado pelo Botafogo na semi da Taça Rio. Mas isso é falando só de bola. E como disse o vate tricolor Nelson Rodrigues — “ Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola.” Todos nós sabemos que a bola tem importância muito relativa nos Fla-Flus.

São incontáveis os Fla-Flus em que estatísticas, retrospectos, momento, motivação e qualidade técnica dos elencos se renderam à casualidade, ao sobrenatural e ao imponderável na definição dos placares do maior clássico interdivisional da Terra. A velha máxima de que nos Fla-Flus vence sempre o pior já não assusta às pessoas sensatas, mas os ectoplasmas das vezes em que isso aconteceu estão sempre rondando as ruínas eternas do Maracanã. O Flamengo que não dê o mole de descansar sobre os louros que conquistou com justiça e crueldade e fique esperto pras artimanhas do antijogo tão próprias do nosso pequeno rival.

O Flamengo tem nada mais a aprovar. É como se estivesse rodando a 300 km por hora sozinho pela faixa da esquerda de uma Autobahn alemã, com a certeza de que não será ultrapassado. Flamengo über alles. O único risco que o Mengão germanizado corre é se empolgar, fazer alguma merda e bater em alguém. O que seria um tremendo prejuízo pra esse alguém. Se o Flamengo ganhar a Taça Rio não será nada além do que o cumprimento de uma obrigação.

Já para o Fluminense, que nesse Carioca só espera ser envolvido o quanto antes pela bruma do esquecimento, vencer o Flamengo nessa final de Taça Rio, em teoria um convite VIP pra apanhar do Flamengo nos dois jogos seguintes, seria como um mero mortal sair na mão e derrotar Hércules, Aquiles e Teseu de patota. Uma façanha mitológica de forte simbolismo que certamente figuraria entre os grandes momentos tricolores no século. Mas o Brasil todo está aprendendo que mitos são apenas narrativas de caráter simbólico-imagético, não são uma realidade independente. Não sendo na maciez dos tapetões federativos é ruim do Flu ganhar do Flamengo hoje.

Mas a maior força que se alinha ao lado do Flamengo nessa final de turno do Carioca não são seus craques, sua estrutura, sua torcida de força indescritível e indomável, o peso místico do Manto Sagrado ou as manhas de Jorge Jesus. Dessa vez é o bom senso e o instinto de preservação da espécie, que sempre se impõem diante de crenças e ideologias, que vestem vermelho e preto.

Se o Fluminense absurdamente ganha o jogo o moribundo Carioca ainda se arrastará por uma semana ou duas. Tempo mais que suficiente para que as estúpidas ideias da Prefeitura carioca de estímulo à aglomeração humana e da livre difusão da bactéria filha da puta, micróbio do caralho, sejam colocadas em prática nas arquibancadas do Maracanã.

O Flamengo deve ser o Campeão Carioca 2020 ao fim do Fla-Flu. Tem que ser. Não só pelo o melhor time ou pela camisa mais bonita ou porque a torcida quer e pronto. O Flamengo, desta vez, tem que ser o campeão por uma questão sanitária, de Saúde Pública. O bem da coletividade está em primeiro lugar. Vai pra cima deles, Mengo!

Mengão Sempre