Nas últimas semanas, o incauto que saiu de casa para comprar granola, suco de tangerina e bongar limões na quitanda, dificilmente foi capaz de voltar direto para casa. No caminho havia uma turba de flamengos no bar, volta e meia a debater algum tema palpitante. Aconteceu com você também?

– Ibiarabaré abacatu!, disse eu, já apeando a saca de compras na cadeira vazia.

– Buga uga?

– Ibiarabaré abacatu. Em tupi, “reunião de gente boa”, seus ignorantes. Vão escutar Tom Zé.

– Pega um copo que a resenha é a final da Copa do Brasil. Já que você é sabichão, manda aí: entre tantas, qual a cena mais emblemática do torneio?

– Que tiro, como diria Bob Jefferson… Vejamos: o Gabigol em lágrimas após o último penal?

– Deixa que eu chuto: o gol do Pedro de bicicleta nas quartas! Épico.

– Já sei: o Rodinei arrancando a camisa 22 e jogando longe após estufar a rede, em clara e belíssima manifestação política.

– Quase. Horário nobre, o Brasil inteiro diante da TV. Rodinei Marcelo na marca do pênalti. Ele já sabe onde e como vai cobrar. Ele percebe que, aos 30 anos, chegou ao clímax de sua carreira. Nada será mais importante antes ou depois. No fio da navalha, ele será cultuado ou execrado. O que ele faz? Ajeita a caceta para o lado. E estufa a rede.

– Teve isso!

– Entenderam? A cueca lhe incomodando as partes era o último empecilho para a cobrança perfeita. Cassio e seu queixo de Moai nada mais podiam contra ele. Foi ajeitar a caceta e ir para o abraço.

– Parece que o Jorge Ben pensa em adaptar a canção: “Só não ajeitou com bolas e tudo porque teve humildade em go-ol…”

– Periga ter sido a ajeitada mais vista da história universal. A final Flamengo x Corinthians deu picos de mais de 40 pontos de audiência, mais gente que “Pantanal”. Dá o que isso, 20 milhões de pessoas?

– E você não comete um gesto como aquele se não está totalmente focado na meta, no gol. Por isso ando alimentando uma tese: hoje o Rodinei é o ponto de equilíbrio desse elenco. O pilar moral e inflexível e do Flamengo atual. Sim, meus amigos, esse time é Rodinei e mais dez.

– Chefia, tem morangos ao creme aí? Não? Então traz mais quatro chopes. Explica aí a tese.

– Vocês sabem que o Flamengo sempre foi motor de revolução dos costumes. Quantos racistas em seus apartamentos de luxo não repensaram seus preconceitos, não duvidaram das teses mais arcaicas e carcomidas do racismo enquanto aplaudiam Jarbas, Leônidas, Domingos, Ziza, Carlinhos, Fio, Érica Gazela Negra, Andrade, Nélio, Obina?

– Quem pensa três segundos percebe que o racismo não faz sentido nenhum. A humanidade só existe até hoje porque Deus ou seja lá o nome que tenha o poder da criação criou a diversidade. Se só existissem esquimós, nórdicos ou negros, estávamos lascados.

– A própria palavra “Flamengo” não existiria sem a diversidade humana, com suas línguas, origens e tons de pele. “Flamengo” vem do latim junto a sons indo-europeus.

– Nem as palavras “bongar” e “quitanda” no início desta crônica. Aliás, sem a diversidade e os negros, a música brasileira hoje seria uma polca chatíssima, e ninguém transaria. Diversidade é riqueza.

– Perfeito, quem detalha isso é o Edson Lopes Cardoso, no livro “Nada os trará de volta”. É aí que entra nosso Rodinei. Repare: no Brasil, quando você entra numa instituição de poder, seja em Brasília ou num clube de futebol, o que você vê em volta?

– Uma bandeirinha do Mengo?

– Também. Mas a cena raramente se altera: a mulher faz o café. O homem negro leva o café para a sala. Dentro da sala, os homens brancos decidem. É ou não é? O Flamengo em campo subverte essa lógica. Ali dentro, quem decide? Na quarta-feira, foi o Rodinei.

– Santa ajeitada, homem morcego…

– Rapaz, vou até pedir mais uma. Ô patrão, tem aí uma garrafa de sidra de Astúrias com rodelinhas de carambola? Não, né… Então, mais chope por favor!