João e Paulo, dois cupinchas rubro-negros, cunharam uma profecia, numa letra escrita em poucos minutos do ano de 1976, que dizia:
“As pragas e as ervas daninhas
As armas e os homens de mal
Vão desaparecer nas cinzas de um carnaval…”
No último dia 26 de fevereiro, numa Quarta-Feira de Cinzas, vimos desaparecer ao menos uma praga que perdurou por 125 carnavais: o Flamengo, evoé, foi campeão no Maracanã em cima de um time estrangeiro.
De quebra, o 3 a 0 no Independiente del Valle do audaz treinador Miguel Ángel Ramírez – com um Willian Arão a menos desde o primeiro tempo –, fez o time completar sua prateleira de troféus, com a única (re)copa que faltava à coleção. Ôooo, campeão de tu-dô.
Mas não foi uma missão simples para o time de Jesus, como até o povo que não tem canal DAZN já deve ter visto e revisto. O árbitro, como de hábito, soprava seu apito naquela má vontade clássica com quem reclama em português (volta, Marí!), até que Gabigol endoidou e fez não apenas um gol, mas sua maior atuação com o Manto Sagrado – quiçá a maior exibição de um atleta flamengo neste século. Parecia até que tinha escutado os versos do samba de João Nogueira e PC Pinheiro:
“Os homens vão se rebelar
Dessa farsa descomunal
Vai voltar tudo ao seu lugar
Afinal…”
No segundo gol, jogada diabólica de Gabriel e tacada de mestre de Gerson à la Rui Chapéu (RIP), e só então a torcida conseguiu relaxar e desfrutar. O Daniel, que estava ao meu lado ainda no pique do carnaval, endoidou também e enfiou a dentada no seu Gabigolzinho de pelúcia, fazendo voar estofo branco na arquiba. O “morde as costa” do filósofo Bruno Henrique, o que caminha contra o vento, sem lenço e sem documento, seria mais uma profecia realizada nas cinzas do Maraca.
Era uma daquelas noites em que ninguém queria ir embora do estádio, e me pus a lembrar da jornalista Gabi Moreira e de seu sonho, dividido com os ouvintes de seu podcast “Encruzilhadas”: ela garante que um dia, ah um dia, há de esperar todo mundo ir embora e dormir, sem ninguém desconfiar, sob as estrelas no estádio Mário Filho.
Na quinta-feira, quando acordei (em casa), lembrei da Gabi e fui fuçar uma revista “Placar” antiga, onde localizei a história. Estava lá, numa edição de abril de 1985, o rosto daquele personagem fantástico, numa foto feliz do craque Zeka Araújo.
Achei o Zeka no Facebook e perguntei sobre a figura, mas o fotógrafo não lembra de muito mais do que havia na reportagem. Mas tampouco esquece a estampa de seu Ovídio Vieira Vita, o popular “Sete Metros”. O homem que morava no Maracanã.
A foto exibe um senhor de 75 anos, magrinho e de bigodes, um Seu Madruga mais coroa e mais cabeçudo, sem o chapéu e sem camisa. Seu Sete Metros (origem do apelido desconhecida) vivia num depósito do estádio, entre panelas, garrafas térmicas e poucos trapos. Comia o que cozinhava num fogão feito de latão de amendoim, e fazia questão de rachar a comida com os gatos do lugar – heroicos felinos que mantinham o Maior Estádio do Mundo sem ratos. Em tarde de jogo, dava expediente na roleta 41 da geral.
Era uma época romântica em que o Mário Filho continha dezenas de misteriosos depósitos – seu Ovídio vivia num deles, em frente a um dos acessos que levava à geral. O Flamengo, então, tinha nada mais nada menos que sete salinhas só para sua torcida, onde ficavam os bumbos, bandeiras e bambus. Que dormiam lá no estádio a noite toda, como Gabi um dia. E como seu Sete Metros, durante uns 25 anos.
O velho funcionário começou por lá como zelador, em 17 de outubro de 1949, conforme recordava, e como a reportagem de Palmério Dória registra. Até que entrou numa com um malandro, naquele mundo de zinco que é Mangueira, matou um e se escondeu no Maraca. Foi encontrado, julgado e preso.
Foi solto, pelo que se lembrava, por volta de 1960, e sem mais propósito no mundo, arrumou de volta um bico no estádio, onde morou até falecer. O habitante do Maracanã, pelo que se aprende, não ligava nada para os craques, dramas e multidões que se desenrolavam logo ali, diante de seu quartinho. O escriba Palmério concluiu com classe:
“(…) Mal acaba o serviço, volta ao lar, cuja única decoração é uma esfarrapada bandeira do Fluminense pendurada no fio da lâmpada. Depois de umas lambadas de pinga, não está nem aí para o barulho infernal da torcida pulando na arquibancada, quase acima da sua cabeça.”
Uma lambada de pinga para seu Sete Metros, para Gabigol e para Gabi Moreira. E fique com a lição: quando aquele seu vizinho do andar de cima começar a sapatear no seu teto, levando-o às raias da cólera, mire-se no exemplo de Ovídio Vieira Vita.
O resignado tricolor que, por 25 anos, aturou como vizinhos de cima toda a quicante e cantadeira torcida rubro-negra.
“Os palácios vão desabar…”, e o Maraca desabou sob as forças do mal. Mas a chuva de prata sempre desce a cada jogo do nosso Mengão, isso será eterno. E é sempre bom rever aquele palácio repleto, mesmo em foto. Terá sido aquele FlaxFlu de 63? Beijos, outra ótima crônica
Dunlop, que maravilha de texto! Seus contos são espetaculares. Parabéns.
Agora, não mais ilustre suas crônicas com essas lindas nostálgicas fotos do nosso saudoso Maraca. Que bonito ver aquela imponente arquibancada, a genial sacada que foi a geral.
Essa foto forçosamente nos entristece, justamente por nos relembrar o quanto o Estádio Mário Filho sabia abrigar, sem qualquer tipo de distinção, todos os torcedores, todos, sem exceção, muito diferente dessa hiper faturada “arena”, uma coisa que eles classificam como “padrão FIFA”, sabe-se lá o que isso significa.
São desprovidos de sentimentos para com o Rio de Janeiro os que permitiram assassinar um dos principiais símbolos do país, além, claro, de extremamente gananciosos.
SRN e desculpas pelo desabafo.
Pra cima deles, Flamengo!
PS – A gente frequenta assiduamente a “Arena Maracanã”, vibra, chora, se emociona, tal como nos velhos tempos porque, como bons rubro-negros, “onde estiver estarei”. Mas que estaria muito, muito mais feliz no velho Maraca, sem dúvida nenhuma.
O blog, o texto, a Gabi e o Dunlop foram elogiosamente mencionados na edição desta segunda (2/3) do simpatissímo Pontapé, podcast da Central 3, com os grandes José Trajano e Dudu Monsanto. Recomendo a audiência.
Manda o link, Pedro.
Eu ouvi pelo Spotify (procurar por Pontapé, na barra de buscas), mas pros que eventualmente não usarem o aplicativo, dá pra ouvir no próprio site da Central 3 (a produtora do podcast em questão), no link abaixo:
http://www.central3.com.br/category/podcasts/ze-no-radio/
Reforço que seria bem vindo um podcast do República Paz e Amor (mas sei que os ilustres escribas têm agendas complicadas e tempo é dinheiro).
SRN! “Não deu certo na Europa” , não deu certo se fiar nisso compadres anti!
Nos anos 60, um dia li num outdoor, “Fé no mengo e pé na táboa!” Flamengo é mais que fé, é a certeza!
Uau! Parabéns pela maravilha de texto!
Maravilha, grande texto. As histórias subterrâneas são as melhores…
Parabéns! E a bandeira eterna estava lá!
“Se o Fluminense jogasse no Céu, eu morreria para vê-lo jogar” Nelson Rodrigues
Agora mesmo é que vontade não me falta.
Dunlop, feliz aqui quem vos escreve por ter a sorte de ser Rubro – Negro e por ter seus textos para ler.
Abraços.
Fábio Fernandes
Valeu, grande Fábio. SRN
Salve, Dunlop!
Um muito obrigado e um parabéns pelo ótimo texto.
Confesso que há dias em que rio do alheio ao escutar que aquele monstro que deixamos solto no ataque ‘não deu certo na Europa’.
Sabem de nada, inocentes.
Ainda bem! (que não deu certo).
Lembrando que hoje, 03/03, é dia santo.