Por mais que você tente dibrar, não existe a menor possibilidade de, mais cedo ou mais tarde, não ser atingido pelos trocadilhos explorando a homonímia entre o consagrado Homem de Nazaré e o treinador do Flamengo, o Mister Jorge Jesus. Conforme-se, o déficit de conteúdo é um fenômeno mundial e viva a liberdade de expressão. Se todo mundo fosse bom redator de humor quem iria escrever as páginas esportivas com as quais nos narcotizamos?
Para extravasar um pouco e poupa-lo da torrente de tolices engraçadinhas que me vem a mente cada vez que leio o nome do nosso treinador lusitano, me escoro num clássico para apontar algumas semelhanças entre a chegada de Jorge Jesus à Gávea e o suposto segundo advento do Filho do Homem, que teria rolado em Sevilha, no século XV.
Todo rubro-negro medianamente alfabetizado que não precisou trabalhar durante a infância no setor da carvoaria, reciclagem de alumínio ou na manufatura de doces de leite condensado e chocolate batizados em homenagem a Eduardo Gomes, já leu ao menos uma vez a associação que Nelson Rodrigues faz entre o Flamengo, o Fluminense e os Irmãos Karamazov.
Sou contra o trabalho infantil, por evidente. Mas nada contra Dostoievsky ou Nelson Rodrigues. Muito menos ainda contra Os Irmãos Karamazov, considerado um dos romances mais importantes da literatura mundial e pelo trincado Freud como “a maior obra da história”. O fato é que a citação doistoievskiana não fez da elegante frase rodrigueana uma das suas citações mais populares. Talvez porque ainda se leia pouco por aqui. E mesmo depois que li o livro me perturbava a ideia do Flamengo, mesmo no campo imaginário das imagens líricas do vate pernambucano, ter um irmão esquisitão.
Explico: no romance, um dos irmãos Karamazov, Aliêksei Fiedorovitch (Aliosha) é um cara do bem, um puro, um místico, uma alma luminosa que abraça a religião. Ivan, o outro irmão Karamazov, é um intelectual atormentado, que eventualmente se entrega à prática da poesia. Porra, já dei a planta, nem precisa ler o livro pra saber de cara que Aliosha é o irmão Flamengo gente boa. Tão gente boa que é o verdadeiro protagonista do livro.
Mas foi o Ivan, supostamente um tricolor, quem escreveu o poema O Grande Inquisidor, que relatado pelo autor ao irmão fechado com o certo, tornou-se um dos momentos mais foda da literatura moderna. Se você ainda não leu Os Karamazov fique ciente que a seguir rolam uns spoilers, mas é mixaria. Nada que tenha o poder de estragar o supremo prazer do passeio pelas mil páginas do livraço.
Só lembrando aos amigos que em Sevilha nos 1400 a chapa estava quentíssima. Naquele então quem não concordava 100% com a Santa Igreja Católica recebia tratamento tipo Salgueiro. Era fogo no X9 da cabeça ao pé. O bonde da Inquisição era paz, amor e muita fé. Foi nesse clima de churras purificador que Jesus resolveu dar as caras. O Grande Inquisidor, fazendo arminha com a mão, identifica A Aliança do Povo no meio do galerão, enquadra o elemento e mesmo sem provas, joga o Nazareno na caçapa para averiguação.
À noite, na atmosfera sufocante do xilindró, Jesus recebe a visita do Grande Inquisidor. Que está puto pelo Filho Unigênito ter voltado à Terra justamente naquele momento. Ele confessa que sabe que a Inquisição é errada, que vai ser condenada no futuro e tal, mas que naquele momento tá sendo importante pra limpar a área e que a presença d’O Alfa e o Ômega tá atrapalhando. Explicou que o papinho de amor de Jesus não tava colando, porque vagabundo só tinha ódio no coração e precisavam levar uma dura.
O Grande Inquisidor aproveitou pra pichar aquele famoso alô do Leão de Judá de que todos os homens eram iguais, que tinham a luz divina dentro de si, blá-blá-blá. Bobagem, os homens são inseguros, ensinou a Jesus o Grande Inquisidor, e precisam da gente para orientá-los no caminho do bem. E que mesmo que fosse na base de tiro, porrada e bomba eles iam varrer geral. Não era hora de amor. Pra encerrar essa douta conversa o Grande Inquisidor, que ao mesmo tempo era acusador e juiz, libera o Cabeça da Igreja. Falando pro Rei dos reis se adiantar e não atrapalhar o trabalho da rapaziada de bem.
O Rio não é Sevilha, mas aqui a chapa chega a estalar sozinha de tão quente. Ainda mais no campo santo da Gávea. Só sabemos que Jesus chegou e grande parte da imprensa, boleiros e a nata da gatomestragem nacional vestiu a fantasia de Grande Inquisidor. Aplaudem hipocritamente tudo que Jesus fazia do lado de lá do Atlântico, mas Jesus que não se meta a fazer o mesmo aqui na Terra de Santa Cruz. Aqui é diferente, estrangeiro não se cria. Largam esses absurdos como se fossemos todos rebentos de imemoriais linhagens autóctones. Malham o cara sem dó, como se ele se chamasse Jorge Judas.
Dizem que ele não é essa Coca-Cola toda, que no Brasil esses papinhos de futebol moderno não colam, que Jesus tem muito o que aprender com os nossos professores. O fel chega a respingar. Mal conseguem disfarçar a torcida entusiasmada para que a passagem de Jesus pelo Flamengo seja um calvário. Como disse o Mensageiro da Aliança em sua finest hour no Evangelho de Lucas: “Pai, perdoa esses arrombados, eles não sabem o que fazem“ (tradução livre).
Pra encerrar minha conversa fiada, que obviamente se deve à escassez de assuntos mais relevantes, entrego o final do poema do Ivan Karamazov. Liberado da tranca dura e, provavelmente, já de saco cheio da doutrinação jumentista em nome do Pai, Jesus se despede do Grande Inquisidor com um beijo em sua face e antes de desaparecer ao se misturar ao povão larga a sua punchline: “Você pode ter razão, mas o meu amor é mais forte.“
Pra torcida do Flamengo, que é pura e mística como Aliosha, amor é bola no barbante. Pra cima desses caras, Jesus! E livrai-nos de todo o mal.
Mengão Sempre
Brilhante! SRN!
sendo sincero …
nunca tinha ouvido falar nesse tal irmãos karamazov.
pelo visto perdi muito !
mas nunca perco um jogo do mengão e isso que vale por aqui.
o jogo foi bastante intenso e só isso já é um avanço.
não sei se tem prazo de validade ,como disse meu amigo abrahão.
vamos ver o que acontece nas próximas partidas….
uma coisa tem que ser feita com esse gabichagol….tomar um esporro !
SRN !
“Torturando-se” um tantinho as linhas, e o paralelo traçado torna-se perfeito.
Gênio… o que dizer mais depois desse texto.
SRN
Roberto Junior
Veja informa: Irmãos Karamasov é o 1º lugar na lista dos livros mais vendidos.
Pelos comentários, o artigo foi publicado ontem.
Não li e me dei mal.
Nada posso escrever, pois os elogios foram justos e brilhantes.
Os Irmãos Karamazov não é o meu livro preferido do gênio de São Peterburgo.
Tenho verdadeira idolatria pelo O Idiota.
Aglaé (ou Aglaia, em algumas versões) foi a minha paixão juvenil.
Talvez tenha que fazer como o Xisto. Reler o Irmãos.
Parabéns, grande Arthur.
Incrivelmente LINDO
SRN
FLAMENGO SEMPRE
Se eu, um mero esforçado, tenho livro publicado, como explicar que vc não tenha? Podia ser, no mínimo, uma antologia de crônicas já publicadas aqui e no GE, sei lá, tanto faz, desde que publique. Teríamos, além da maior torcida do mundo, o melhor cronista do mundo futebolístico. Os anti iam se rasgar.
ps – quem sabe um prefácio do Tostão.
srn p&a
Parabéns, Grande Arthur! SRN!
Baita texto! Esse é de se emoldurar na sala de jantar, ou ir publicando aos poucos como folhetim na parede do elevador, com a assinatura do sindico(!)- segundo exemplo do próprio Dostoievski com as revistas da época…
Sou totalmente a favor de se introduzir o estudo de suas crônicas nas escolas, mostrando aos descrentes como fechar com o certo, tamanho o obscurantismo que vem se alardeando…
Não é para qualquer um, simplesmente teve a feliz-sublime maestria do Galinho de Quintino ao combinar a trama tupiniquim escancarada pelo juiz-fariseu-salafrário & sua txurma com o romance de “realismo idealista” mais icônico da humanidade selando(do sentido gastronômico mesmo) com o magnetismo de Fio La Merveille ou Daquele que era > que Eto’o!
Obrigado pela entrega! Abração!
(dica: depois vá atrás da biografia de Dostoievski escrita pelo Virgil Tanase, vale muito a pena entender os seus percalços e o contexto histórico junto de suas obras.)
Incrível! Tenho 50 reais de bônus na livraria. Já sei como gastar!
hahahaha
Arthur, muita coincidência estou lendo(relendo) Os irmãos Karamazov, estou nas últimas 73 páginas. Não falo esse “relendo” por esnobação é que realmente nos últimos anos me dispus a reler os clássico, não no sentido de Clássicos, mas os livros mais consagrados e que eu já conheço, não tenho muito mais tempo a perder e confesso que cada novo autor que encaro não me satisfaz, o último que me deu prazer foi o cubano Leonardo Padura Fuentes que diga-se de passagem continua escrevendo feliz em Cuba, Adeus Hemingway, claro, uma ficção sobre os dias que Hemingway viveu em Cuba, aí me lembrei do rubro-negro Ruy Castro que disse que todos os prêmios Nobel americanos eram alcoólatra, com exceção da tal de Pearl Buck, nessa premiação quem estava de porre era o júri. Acho interessante mais essa frase do Nelson Rodrigues como também a analogia que você fez com o protagonista do romance, o Aliosha, gostaria de lembrar também a famosa frase do livro: se Deus não existe, tudo é permitido. Permita-me que faça um elogio, os Irmãos K, é um daqueles livros que dá a impressão que não deixa nada de fora, está tudo ali, para gáudio dos leitores como eu e certa decepção para pretensos escritores, o que tinha que ser escrito está no livro e, portanto, depois dele só o dilúvio e a gente quando lê você parece que não sobra nada para se dizer (epa! Essa foi pior do que certo personagem já citado acima que esgarça os testículos de um certo presidente do Norte). Pois é, vou levando minha vida lendo aqui você e os comentários a maioria excelentes e…lendo, sou leitor voraz, entre um livro, dos assim chamados mais pesados, tenho sempre um Simenon para me divertir, que diga-se de passagem, reza a lenda “comeu mais gente” do que o Pelé fez gols e tudo indica sem precisar daquele apartamento lá em Brasília que um certo senhor cobrado pelo uso indevido já que mantido com nosso dinheiro disse mais uma de suas sandices que aquilo só “servia pra comer gente”. Quanto ao nosso Flamengo, logo mais vou voltar a sofrer, meu Teacher já com teias de aranha, e protegido pela minha aranha, a Ana, que tem horror a que eu beba, embora o meu rato mestre, o Miki, não faça nenhuma restrição e até me acompanhe, meu professor líquido que se cuide, tudo está nas mãos, ou melhor, nos pés de nosso time. Do nosso Jesus eu nem quero grandes milagres, como andar sobre as águas, por exemplo,,já me contentarei se ele fizer que os nossos mimados marmanjos corram um pouco mais sobre a grama.
(mais um )Texto antológico do Arthurzão.
Irmãos Karamazov, uma leitura obrigatória desde sempre, acabou de pular muitos lugares na fila de leitura.
E PNC dos apologetas de trabalho infantil e outras tantas asneiras que vemos por aí.
Vai, jesus!
Vamo, Flamengo!
SRN
Mais um golaço! Parabéns, Arthur!
Gênio…
Alguém está se candidatando para a cadeira do Nelson Rodrigues?
No sapatinho frenético o Arthur vai deixando textos fenomenais pelo caminho.
Reparem que os amantes de carecas e flautistas do Bozo nao aparecem para comentar textos profundos.
Fica a dica!
Beleza de texto.
Quem sabe sabe quem não sabe bate palmas. Parabéns Grande Irmão.
Bom seria que Jesus fosse o “alfa e o ômega ” na história dos técnicos do Flamengo. Mas não será. Primeiro porque ninguém é eterno. É se fosse, sabemos que não possui aqueles poderes sobrenaturais que o original possuía. Uma coisa é certa, este é diferente daquele. Este não dá a outra face… parece que não.
De qualquer forma a associação dos “professores” já deve estar fazendo campanha. A imprensa especializada e parcial aguardando apenas os primeiros tropecos. Os nossos meninos mimados esperando a hora de fazerem corpo mole para que tudo volte a ser como dantes…
O dia chegará, não que eu queira, nas está escrito. Ninguém sabe o dia e a hora, só ele. Só ele e os que creem sabem. Então ele voltará… voltará sim, acreditem… para os seus domínios na terras dos meus ancestrais…
Aqui no Brasil somos os únicos que nunca jamais em tempo algum deixamos de apoiar e comprovar que a teoria de Charles Darwin estava correta: ” A história se repete”.
Então, bola pro mato que o jogo é de campeonato.
Vida que segue Irmão.
Parabéns e SRN.
Hahahahah artigo no melhor estilo Mulão, com altas referências culturais e uma pitada de Bezerra da Silva
Despretensioso é o cacete! Genial. Orgulho de estar do lado certo e fazer parte da ERN! Спасибо товарищ!
Fino, RP&A é cultura de qualidade
“Se todo mundo fosse bom redator de humor quem iria escrever as páginas esportivas com as quais nos narcotizamos?”
Simples a resposta: Arthur Muhlemberg.
Neste brilhante artigo, encontramos humor, esporte, Política, História, Literatura… e a mais pura ironia.
In Jesus We Trust.