Se nesse mundo de artificialidade e desconexão com a natureza as coisas sempre fossem como deveriam ser o Flamengo teria confirmado o seu favoritismo eterno no Fla-Flu e aplicado aos fugitivos da Série B a reprimenda de caráter moral e cívico que eles tanto merecem. Contudo, o futebol é um reino ilógico, criado artificialmente pelos homens para testar os limites da nossa tolerância à injustiça.

Mas quem disse que a justiça, outro admirável construto mental criado pelo volumoso cérebro dos homo sapiens, submete-se à lógica? Ao Fluminense, com seu lamentável histórico de canalhices e más ações cultivado desde 1902, nem deveria ser concedido o privilégio de conviver entre os clubes tementes às leis e cumpridores dos seus deveres enquanto não zerassem sua vultosa dívida com a sociedade. Mas o Brasil é essa zona, onde a impunidade floresce e o cinismo abunda, e o Fluminense continua a circular livre entre nós, sem ao menos uma tornozeleira eletrônica, como se nada tivesse acontecido.

Mas a impunidade sistêmica do Brasil não pode servir de muleta ao Flamengo para justificar sua dramática incapacidade em cumprir seu destino manifesto de vencer, vencer, vencer. O Flamengo teve o jogo em suas mãos, o adversário prostrado, incapaz de reagir ou ameaçar o seu domínio pornográfico, com 70% de posse de bola no primeiro tempo. Mas faltou ao Flamengo aquela centelha de vergonha na cara ou de compartilhar com a torcida o desejo ardente de acabar com a palhaçada do Carioca de uma vez por todas.

O explícito domínio do Flamengo na etapa regulamentar foi substituído por uma postura mais descompromissada no tempo complementar. Não parecia que os caras estavam morrendo de vontade de ganhar o jogo. Esse aparente desinteresse do Flamengo exasperou a torcida e fez com que os réprobos tricolores começassem a ter ideias. Como a bola não se submete, e não se deixa influenciar pelas insanidades berradas pelos loucos nas ruas, sua punição é sempre exemplar.

O Flamengo foi punido, com cristalina justiça, levando um gol em mais um lance de barata-voa na área tão característico dessa defesa colada com cuspe assinada por Rogério Ceni. O gol dos caras foi mais uma educativa demonstração da diferença entre escalar na zaga um zagueiro de origem, com diploma, e improvisar um volante na zaga que mal tem o segundo grau.

E nesse vacilo recorrente de Rogério o Flamengo trocou a tranquilidade de encarar a finalíssima do Carioca como um evento festivo por uma chatíssima obrigação de ter que ganhar o jogo de sábado que vem sim ou sim. Uma pressão extra totalmente desnecessária para quem busca dominar o continente.

Parece evidente que o Flamengo não se empenhou o suficiente para ganhar o jogo. O que é até compreensível dada a irrelevância do Campeonato Carioca e a indigência técnica e motivacional do adversário. Mas uma das funções mais importantes de um treinador, certamente mais importante que transmutar um volante muito bom num zagueiro masomeno, é motivar a equipe e fazer com que os multimilionários jogadores do Flamengo suem as camisas e ganhem os jogos, principalmente os jogos protocolares onde o desafio técnico é quase inexistente. Nesse quesito Rogério ainda tem muito a aprender, porque entre nossos craques não tem um que pareça disposto a correr por ele.

Falta experiência ao Rogério, não propriamente do campo e bola, porque ele tá no ramo há décadas. Mas Ceni é incrivelmente inábil na percepção das sutilezas parafutebolísticas que regem jogos com 108 anos de rivalidade. É imperdoável que o treinador, por inexperiência, ingenuidade ou burrice, não perceba quando os ventos de um clássico mudam e transformam um tranquilo velejar por águas calmas em uma epopeia náutica em mares encapelados de desfecho imprevisível.

Não é nenhum segredo industrial que quando o tricolores se apequenam, se amesquinham e se portam como o timinho burguês de Álvaro Chaves é justamente quando eles se tornam mais perigosos. Os Série C passaram o jogo todo dando porradas, unhadas e puxões de cabelo, tentando intimidar a imberbe arbitragem com canhestras simulações de faltas. Conhecidos como o time do Sabe com quem está falando?, os ases dos tapetões não se constrangem em pagar esses micos comportamentais. A burguesia fede.

Penitenziagite, Rogério! A chance que o Flamengo tinha de impor seu futebol notoriamente superior se foi, já era, zéfini. O Flamengo, favorito lógico, só poderia apostar nessa vantagem no primeiro jogo. Agora fudeu, tá tudo aberto, porque no jogo do sábado que vem não tem time, não tem esquema tático, não tem jogador. Quem jogará serão as camisas.

Preocupa que o Flamengo esteja há 108 anos se engalfinhando com os decadentes burgueses de Laranjopolis e ainda existam tantos torcedores bem vestidos atribuindo às forças tangíveis do futebol — elenco, momento, talento individual de fulano ou sicrano — como fatores determinantes para o desfecho de um Fla-Flu. Faz tempo que o futebol não tem mais nada a ver com o Fla-Flu.

Não podemos dar esse mole, o tempo da objetividade já passou. O que decidirá o jogo final no próximo sábado não pertence a este reino. E o seu desfecho, que já foi escrito há mais de 40 minutos antes do nada, poderá ser rotina ou tragédia. O Flamengo terá que ser como o seu torcedor, paciente, assíduo e perseverante. Para separar a terra do fogo e o sutil do espesso docemente, com grande desvelo. Recebendo a força das coisas superiores e das coisas inferiores. Executando a trituração, a fixação, a destilação e a coagulação segundo as regras herméticas. E, acima de tudo, evitando qualquer relação com pessoas de temperamento sórdido.

O Flamengo tem que dançar dançando. É pedir muito?

Mengão Sempre