Eu tiro o domingo para descansar, seguidor que sou do guru Wilson Batista, mas no último dia 3 de fevereiro fiquei em casa e trabalhei. Que louco fui eu.
Só de noite, esparramado diante da TV, é que percebi a besteira: o jogo contra a Cabofriense, na aparência mais uma pelada indigna do Estadual, ainda mais com o time já classificado na Taça Guanabara, ainda mais numa Guanabara que nem vale vaga na final, havia sido um marco. Numérico, ao menos.
“Foi o jogo número 2 mil do Flamengo no Maracanã”, disse com o sorriso cínico o Tadeu Schmidt, me humilhando em rede nacional. Custava o patife ter avisado mais cedo? Isso a Globo não mostra.
O que o episódio mostrou, na realidade, foi uma das lições mais genuínas do futebol, e que eu julgava já ter aprendido: o bom torcedor não pode confiar em previsão, imprensa, regulamento ou treinador: deve ir ao jogo e pronto. Afinal, como já disse um sábio, chamado Francisco Buarque de Hollanda, “há certos momentos de genialidade do futebol, daquela capacidade de improviso, alguns relances que acontecem no futebol, que artista nenhum consegue produzir.”
Do mesmo modo, é impossível antecipar que arte, lampejo ou magia o seu time de coração vai aprontar naquele domingo, o lance que há de nos acalentar num dia triste e solitário, daqui a 20, 30 ou 50 anos.
Eu mesmo consigo me enxergar quase gagá, a desfiar histórias para os bisnetinhos, todos com seus pequenos óculos 3D cibernéticos me ignorando totalmente:
“O primeiro gol do Arrasca no Mengão? Claro que eu vi, meninada. Foi no Estadual de 2019, contra um time de Cabo Frio. Foi um golaço, meio de costas, à Seu Boneco. E olhem que nem foi o mais bonito e comentado da partida, afinal naquele domingo o Diego meteu o famoso gol da bicicleta platinada… Acho que eu estava lá. Ou não? Será que não fui? Cáspite!”
Até que um deles, incrivelmente interessado, perguntaria:
“Cabo Frio, bivô? Onde isso ficava? E que campeonato é esse, Estadual?”
Pois é, pelo menos esta crônica vai servir para isso, atestar que não, eu não fui nesse rachão memorável, um divertido 4 a 0 num domingão de calor, quando o Mais Querido tinha Diego, Arrasca e Arão. Daria até samba, como sabe bem o Wilson Batista.
Dois mil jogos no Maracanã! Quem diria, seus jovens remadores. Fico a imaginar quantos gols, quantos abraços na arquibancada, quantos perebas sem o menor nível passaram por ali. E quantas goleadas como a do último domingo, testemunhadas por menos torcedores que mereciam.
Como outro 4 a 0, bem pouco citado na nossa história, mas que vale a nostalgia. Tempos das disputas Rio-São Paulo, um torneio que curiosamente tem voltado às discussões atuais, como uma possibilidade mais rentável e atrativa de substituir os combalidos campeonatos estaduais. Já imaginaram, abrir a temporada com um bom Corinthians x Vasco, um duelo tático entre Abel Braga e Felipão Scolari no Maraca, até um bom Guarani x Bangu dos velhos tempos… Vai, saudade!
Domingo de futebol, 5 de maio de 1957, Flamengo x Santos. Seria apenas mais uma das 1.084 vitórias rubro-negras até hoje no velho Mario Filho. Não fosse um pequeno, magro e topetudo detalhe: um certo Pelé em campo. Pela primeira vez naquele santo relvado. Edson Arantes do Nascimento e o Maracanã, sendo enfim apresentados um ao outro. Olhavam-se embevecidos, provavelmente, quando o Zagallo, sem nada com aquilo (e ainda com um “L” só), estufou as redes e abriu o placar.
A história em detalhes sobrevive graças a Antonio Roberto Arruda (foto), o eterno escudeiro de Renato Mauricio Prado nas antigas colunas de “O Globo”, que escreveu sobre o jogo para uma velha revista “Argumento”. Arruda, grande jornalista e rubro-negro, discreto ao revelar seu time de coração, está hoje aposentado aos 72 anos, descansando em casa. Ensina, velho mestre:
“Na estreia de Pelé no Maracanã contra o Flamengo, pelo Torneio Rio-São Paulo, em maio de 1957, nem o torcedor mais otimista do mundo imaginaria que no jogo em que o Santos foi goleado impiedosamente, por 4 a 0, pisava pela primeira vez no estádio aquele que viria a ser o mais completo jogador de todos os tempos. A atuação de Pelé, segundo ‘O Globo’, ‘não foi convincente’. Num encontro com Pelé anos depois, conversando sobre aquele jogo de estreia, ele me disse:
– Aquele gigante de concreto me assustou. Mas, jogo a jogo, fomos nos identificando e nos tornamos um casal que viveu feliz para sempre…”
O Manto Sagrado e o Velho Gigante de Concreto. Que outras entidades no planeta seriam capazes de fazer o grande Pelé se encolher, assustado?
A estreia de Pelé no Maraca não teve, claro, público à altura do acontecimento, já que ninguém o conhecia. O jogo foi acompanhado por 27.080 pessoas, de acordo com o ótimo blog do Marcão: Brfut.blogspot.com (valeu, Marcão!).
Vinte e sete mil sortudos que não tiraram o domingo para descansar. E que acabaram vendo um Pelé tímido, um Zagallo saindo de campo de maca, o velho craque Pagão, um dos ídolos de Chico Buarque, e seu substituto Breno – que viria a se tornar ator festejado, como o protagonista de “Orfeu do Carnaval”, de 1959.
E viram e vibraram, claro, com o baile da massa rubro-negra e os gols de Zagallo, Luís Carlos, Henrique e Joel.
Pois chega de nostalgia: que venha logo o Fla-Flu de sábado e nosso jogo 2.001, uma odisseia no estádio. Todos lá, por nossos bisnetos.
Em tempo: o escrete do Flamengo em 1957 na estreia do Rei do Futebol: Ari, Tomires e Milton Copolillo; Jadir, Luis Roberto (Edson) e Jordan; Joel, Moacir, Luis Carlos, Henrique e Zagallo (Babá). Técnico: Fleitas Solich. Que esquadrão, hein?
Em tempo 2: o Santos FC atuou com o goleirão Manga, Getúlio e Ivã; Ramiro, Urubatão (!!!) e Zito; Alfredo (Fiotti – que acertou de jeito o Zagallo), Álvaro, Pagão (Breno), Pelé e Tite. Técnico: Luís Alonso “Lula” Peres. Por onde anda Urubatão?
Em tempo 3: viu só, Vitinho? Até o Pelé demorou a convencer no Maracanã… Cabeça no lugar, fé nos treinos e um pouco mais de giz no taco, jogador.
8 de julho
Registro a minha profunda tristeza.
O Flamengo e seus torcedores estão de luto.
Extremamente tristes SRN
Vitinho é ambidestro, jovem, talentoso e rubro negro de coração. Todos torcemos por seu sucesso com o manto sagrado!
Excelente crônica. E fiquei mais satisfeito em saber que o técnico do Flamengo de tal façanha era o nosso ( pelo menos meu) eterno ídolo Fleitas Solich (o feiticeiro) que creio se vivo fosse ainda daria umas aulinhas de futebol “moderno” aos seus pares atuais. Ainda quebraria a banca das tais atuais entrevistas coletivas( que não são entrevistas coisíssima nenhuma, pois as perguntas são tão longas que o entrevistado nem sabe mais o que foi perguntado) com o seu lacônico: ganó el mejor.
Obrigado, Xisto. Bela lembrança do feiticeiro.
Endosso.
Flwitas Solich foi o melhor técnico de todos, aí incluindo Cláudio Coutinho.
SRN
Excelente texto, como de costume.
2001 – uma odisseia no estádio (que sacada sensacional!)
Mas aí penso, e questiono: Não teria sido o caso de fazer o jogo contra a Cabofriense em qualquer outro lugar e deixar o emblemático número 2000 pro Fla-Flu (ou FlaxVasco, pois não dava pra ter certeza do adversário do lado de lá) deste sábado?
Certamente. Acho que ninguém se ligou.
O Dunlop , ao que penso, está na faixa dos 30 e já faz – e MUITO BEM – crônicas saudosistas, como esta.
Que diria eu, com mais 50 no lombo.
Vou dar uma de saudosista e aproveitar a referência inicial ao jogo 2000.
Perdi a oportunidade, deixei passar o cavalo muito bem arreado,
Não vi a estreia do Pelé no Maracanã, nem sabia que havia sido contra nosso Flamengo.
O genial crioulo, até hoje disparado o melhor jogador do mundo de todos os tempos (apesar de que, nos nossos dias atuais há um monstro em atividade, para mim o segundo entre todos, um tal de Messi), conheci pela TV, em preto e branco evidentemente, exatamente em outro jogo contra o Flamengo, lá no Pacaembu.
Macacos me mordam. Por que não foi na Vila famosa !
Antes disso, lia no jornal e achava que os jornalistas haviam abusado da birita. Pepe e Pepe. Duas vezes o mesmo jogador. Deus do Céu, como é ruim a nossa imprensa esportiva !.
Um reparo às interrogações no tocante ao Urubatão.
Jogador muito bom.
Meio campista de estirpe, que surgiu no Bonsucesso (o dos bons tempos cariocas), logo se transferindo para a máquina santista, onde brilhou intensamente.
Pelé, em verdade, é um caso a parte na história do futebol.
SRN
PS – cá entre nós, não deve ter tremido. O Negão era inimaginável.
Obrigado, Moraes. Não sou mais tão novinho, apesar da cara de moçoilo.
A cada texto minha admiração só aumenta.
Caraca Dunlop, genial cara! Por favor, escreva mais, precisamos de seus textos!
Sempre uma boa leitura!