Quem ama não cala. Tenho um amigo, dono de estabelecimento etílico no Cachambi, que não pronuncia a palavra “Flamengo” há cerca de 22 anos. O motivo do despeito não é tão sério – é sérvio.

Desde aqueles idos de maio de 2001, o clássico para ele é Vasco x Horda de Bárbaros, Vasco contra o Império do Mal ou Vasco e aqueles dálites, ou coisa do tipo.

Compreende-se. Se um gol pode transmutar nosso humor, um gol eterno tem efeitos místicos, e linguísticos, mais duradouros.

Quando lembro daquele épico 3 x 1, creiam, a primeira frase que me ocorre é um trecho de Drummond:

“Preparei-me para morrer, com terror e curiosidade. O que aconteceu à noite foi maravilhoso. O cometa de Halley apareceu mais nítido, mais denso de luz e airosamente deslizou sobre nossas cabeças sem dar confiança de exterminar-nos.”

Aos 7 anos o pequeno poeta, tomado pelo medo do rabo luminoso desintegrar o planeta, ou ao menos Itabira, havia aceitado seu destino. Acabou por ver aquela esfera celestial forfosforejar “sobre a infância inteira”, como registrou na crônica “Fim do mundo”, em 1962.

Ler Drummond e associar ao gol do Pet é coisa de sócio-torcedor do Pinel, eu sei, mas há uma razão. Naquele 27 de maio de 2001, ali pelas seis da tarde, um outro Carlos Drummond, jovem torcedor flamengo, quase foi exterminado atrás do gol pelo rabo luminoso da bola. No que a pelota triscou os dedos de Helton, que por sorte estava com as unhas aparadas, o rubro-negro Carlos viu o Maracanã todo escuro, o ar sumir e, por pouco, não foi celebrar com Gilberto Cardoso e São Judas Tadeu em pessoa. Segundos tensos. Carlos então abriu o olho, notou que era Tri e estava vivo – nessa ordem – e abraçou seus irmãos.

“No ar frio, o véu dourado baixou ao vale, tornando irreal o contorno dos sobrados, da igreja, das montanhas”, escreveu Drummond, o outro. “Saíamos para a rua banhados de ouro, magníficos e esquecidos da morte, que não houve. (…) No dia seguinte, todos se cumprimentavam satisfeitos, a passagem do cometa fizera a vida mais bonita.”

Enquanto uma nação parecia levitar, banhada a ouro, e a outra metade do estádio Mario Filho cuspia chiclete e marimbondo, por onde andariam os pés airosos de Petkovic?

Quem acompanhou tudo, a cores e de perto, foi o célebre jornalista Lúcio de Castro. Trepidante do “Jornal do Brasil”, “do falecido JB” como ele diz, o repórter viu o jogo das tribunas, e estava escalado para uma reportagem de página quase inteira – o perfil do personagem da partida.

“Era outro Maracanã”, rememorou o jornalista, fanático rubro-negro e membro da (por enquanto virtual) Academia Flamenga de Letras. “Aliás, era o Maracanã, não esse ginásio de hoje. Pulsava.”

Como de praxe, Lúcio deixou sua poltrona a dez minutos do fim da partida para se dirigir ao gramado, onde começaria a ouvir a pessoa escolhida. “Não tinha essa de coletiva de um só jogador, escolhido depois pelo clube”, lembra. Tudo começava no gramado e descia vestiário adentro. Em quem a pauta recairia? No goleiro Helton? Joel Santana? Ou outro cobrão do elenco cruzmaltino?

Mas aí Lúcio foi barrado. “Quando descemos para a área dos vestiários, deu zebra. O portão para o campo estava fechado”, recordaria o repórter. “O burocrata que tinha a chave, se sentindo muito poderoso, negou a entrada. Disse que só ia liberar quando acabasse. Nunca era assim, sempre se permitiu dez minutos antes. Ficamos ali, atrás da grade da escada do túnel que subia ao campo. Enquanto eu descia, tinha certeza de que meu personagem seria alguém do Vasco. Por isso futebol e jornalismo são do cacete: de repente, muda tudo”.

Por obra e graça de um funcionário sem coração postado num portão do Maracanã, o escriba não veria o gol mágico. Não veria a cobrança de falta a 26 metros de distância, os três passos do camisa 10, os cinco metros de altura que a bola atingiria diante das 60 mil testemunhas. Não sentiria a garganta secar e o olho inchar. Nem teria um quase infarto como o meu bom amigo Carlos Drummond. Ele não veria o cometa.

E então, aos 43 minutos do segundo tempo, deu-se o barulho enlouquecedor.

De trás das grades, Castro só podia adivinhar: “Só pude tentar decifrar de que lado era. Era rubro-negro. Inacreditável, um dos grandes gols da história do Maracanã, eu estava a 20 metros do Pet e não pude ver!”

A loucura do Tri, o choro convulsivo do técnico Zagallo e aquele frenesi geral fizeram a segurança do Maracanã se perder de vez. No que o jogo acabou e o portão foi aberto, alguém teve a ideia de criar um cordão para filtrarem a descida para o vestiário, por medo de bicões, geraldinos, ou pior, vereadores. A imprensa foi quase toda impedida, e só seria liberada tempos depois.

“Quando vi que o cordão começava a se formar, passei escondido para o outro lado e me escondi na escada. Fiquei sozinho no túnel. Quando Pet desceu as escadas, estava ali, só eu e o herói. Não quis me meter, fui descendo um pouco atrás, fazendo o clima, valia mais do que perguntar. Só ele e eu ali, vendo aquilo.”

Como Lúcio resumiu: “O cara estava em transe.”

Petkovic gritava, sozinho, naquele descarrego de adrenalina que os grandes esportistas experimentam. Berrava, para ele mesmo: ‘Serbia, Serbia!’

“Eu não entendi a pronúncia acalorada e aí perguntei o que ele gritava. E ele, com aquela má vontade conhecida: ‘É o nome do meu país’”, riu Lúcio.

Quando tudo acabou, o filho do escritor Marcos de Castro partiu para a redação. Só ali, pela TV, viu enfim o facho de luz. “A bola faz uma curva inacreditável, parece que vai lá na Mangueira e volta”, avaliou. “Um gol valendo título, feito aos 43 do segundo tempo, é uma síntese da emoção que pode ser o futebol. Mas creio que em 2001 houve outros elementos especiais, como a improbabilidade, a cobrança de falta de tão longe. É de fato um gol que imortaliza qualquer um. O Maracanã tinha visto alguns gols decisivos, mas aquele contou justamente com a bola parada, o que aumentou o suspense. O estádio, a cidade, os dois times, todo mundo parou, era o último suspiro.”