Elevado torcedor flamengo, ilustre torcedora flamenga, façam sempre uma reverência ao passar em frente ao Imperial Hotel, na rua do Catete nº 186. Afinal, foi naquele prédio, no mais importante de seus 92 quartos, que nasceu o Flamengo como nós o conhecemos.
Se faz tempo? Ô, se faz. Naquela época o cartão amarelo era em preto e branco, a bola precisava vir da Inglaterra – o que atrasava muito o recomeço dos jogos – e ouvir as coletivas dos técnicos no rádio era complicado, pois não havia técnicos nem rádio. Corria o ano de 1911 – ano em que, segundo Nelson Rodrigues, a misteriosa espiã “Mata-Hari, com um seio só, ateava paixões e suicídios; e as mulheres, aqui e alhures, usavam umas ancas imensas e intransportáveis.”
Imensos e intransportáveis, também, já eram o ego de alguns dirigentes, e foi um deles que mudou para sempre a história do futebol. Certa manhã, um zé cartola qualquer das Laranjeiras acordou com uma ideia das mais brilhantes, digna de qualquer manda-chuva atual da CBF: era preciso barrar o goleador e líder da equipe campeã do Rio de Janeiro, Alberto Borgerth. Chamado pela diretoria às vésperas de uma porfia decisiva, o capitão tricolor foi comunicado que estava sendo sacado pelo comitê do Fluminense, e em seu lugar iria entrar Ernesto Paranhos – um zagueiro.
Que fleugma a de Alberto Borgerth, estimado leitor, digníssima leitora. Remador valente, ídolo da cidade, filho de um chefe de segurança de Dom Pedro 2º, meros 19 anos na identidade – ninguém hoje se chocaria se sua reação imediata fosse um sonoro palavrão (com ph ainda por cima), uma bifa ou mesmo uma bela cusparada, talvez merecida. Mas Alberto fez o contrário: entubou a barração, acalmou os ânimos entre os companheiros para evitar um motim (e um W.O.), e refletiu – hábito cada vez mais raro nos dias de hoje.
A explosão dessa crise elenco x diretoria se deu num 11 de setembro (olhaí) e o desligamento oficial de Borgerth & cia ocorreu apenas no dia 3 de outubro de 1911, por meio de um ofício selado, registrado e carimbado (se quiser voar…). O Dia D, no entanto, foi mesmo a 21 de setembro, no prédio de três andares onde hoje se impõe o magnífico Imperial Hotel.
À época, ali funcionava a aprazível pensão Almeida, onde morava o zagueirão Píndaro Rodrigues – um paulista, prova de que o Flamengo sempre formou e foi formado por gente do Brasil todo. Reunião marcada, elenco avisado, e a pauta era uma só: a saída do Fluminense.
Tenho uma tese, amigo leitor, amiga leitora, que compartilho a seguir. Fosse a reunião em qualquer outro canto da cidade, em qualquer outro bairro, a decisão final não seria tão acertada. O Catete, o professor Simas me corrija se eu disser alguma besteira, é um bairro imbatível em termos de alma – deve haver soterrado ali algum cemitério indígena ou campo sagrado parecido. Que outro bairro do país, do continente ou do planeta reúne episódios parecidos, como um presidente que decide dar um tiro no próprio peito? Ou um revisor de jornal que, insone na madrugada, escreve uma obra-prima como “Vidas secas”, como fez Graciliano em outra pensão do Catete, na rua Corrêa Dutra? Também foi na vizinhança que a agremiação Ameno Resedá, com o músico Sinhô e outros bambas, revolucionou o carnaval e se tornou a avó das nossas escolas de samba. E foi pertinho da pensão Almeida, na rua do Catete nº 206, que um certo Joaquim Maria Machado de Assis começou a escrever uns poeminhas e contos… Alma pura!
E foi onde o atacante Borgerth fez o mais bonito de seus gols, cercado pelo goleiro Baena, o beque Nery, o lateral Galo, o volante Amarante, o meia Arnaldo e outros ídolos. Quem registrou os detalhes do evento foi o artilheiro Gustavinho Adolfo, no livro “Torcedores de ontem e de hoje” de João Antero de Carvalho (dez mangos na Estante Virtual). Leiam e tentem não se emocionar:
“Aquele 21 de setembro de 1911, na pensão Almeida, da rua do Catete, onde morava Píndaro, não me saiu da lembrança”, narra o centroavante. “Nesse dia nos reunimos pela primeira vez para tratar da nossa saída do time tricolor. Eu pretendia reviver o Rio FC, o célebre time da garotada do colégio Alfredo Gomes, pelo qual havia jogado em companhia de Borgerth, Galo, Arnaldo e Baiano. Após calorosas discussões, durante as quais se sugeriu até o nome de São Paulo FC, Borgerth apresentou a proposta conciliadora: a criação do departamento terrestre do Flamengo com a entrada de todos para o seu quadro social. Foi nesse momento que se ouviu o primeiro ‘aleguá’ ao nosso futuro grêmio.”
Não esqueçam, portanto, de fazer um meneio respeitoso quando passarem diante do nº 186 da rua do Catete, talvez até pedir para o Uber encostar rapidinho, quem sabe mesmo entrar e sentir a energia do lugar. Não fosse aquele encontro, naquele 21 de setembro, e a gente estaria hoje saindo feliz do Mineirão cantando “Uma vez Rio FC, sempre Rio FC”, ou, meu deus, “nos São-Flus é o Ai, Jesus”.
Um hip e um hurra para o cavalheiro Alberto Borgerth, senhoras e senhores.
Sensacional mais uma vez, moleque bom! Hip, hip, hurra!
Parece o time do Flamengo jogando: show de bola! Outra bela e histórica crônica. Esse menino vai longe…
Lindo artigo, mais uma vez !
O menino é craque, mesmo.
Confesso. nada sabia no tocante ao Hotel da rua do Catete, n. 186.
Tampouco tenho a menor lembrança do prédio.
O Catete é, na verdade, uma parte do bairro do Flamengo, daí, portanto, deve ter saído o nome do nosso rubro-negro, à época com outras cores.
Tem a sua história própria, sobretudo pelo Palácio presidencial, que entrou na minha vida de forma mais do que importante.
A manhã do dia 24 de agosto de 1954 foi marcante.
Passara a noite ouvindo a Rádio Globo, com o Brunini, em especial.
Fui, como sempre, bem cedo para o colégio, eis que âs 7.30 começava a primeira aula.
Nada sabia.
Após a primeira aula, fomos todos dispensados, com a expressa recomendação de que nos dirigíssemos para casa.
Getúlio suicidara-se, temia-se pela reação que poderia haver.
Com dois colegas, que nem muito amigos eram, mas que foram os que toparam a desobediência cívica, fomos a pé em direção do Catete.
Lá chegando, mudou a minha vida.
Como aprendiz de play boy, admirador de Lacerda, tomei um enorme susto.
Ví o povo CHORANDO, desesperado.
Não era fingimente, pelo contrário, de absoluta autenticidade.
Sem me dar conta, de repente estava também chorando.
Custei, mas consegui saber o verdadeiro alcance de um grande político.
… e viva o Catete !
SRN
FLAMENGO SEMPRE
Lindo depoimento, mestre! Obrigado
Mto bom como sempre!!
Espetacular, Dunlop! Obrigado pelo texto e pela dica literária. Acabei de arrematar o exemplar de dez mangos no Estante Virtual.
SRN
Hip hip, Hurra!! Demais!!
Clap, clap, clap!
E muitos hips e vários hurras pra esse fantástico cronista rubro-negro. É só pérola. Esse site é phoda!
Prezado Dunlop,
Obrigado por nos passar esse momento histórico do nosso Flamengo. Não sabia. A partir de hoje seguirei seu conselho: sempre que passar pelo 186 da rua do Catete farei um merecido meneio respeitoso, em justa homenagem ao nascimento do futebol do mais querido, e irei lá dentro, pegar as boas energias do lugar.
Segundo o Google, …“a partir de 1902 o remo passou a dividir com o futebol a preferência popular. Assim, os associados do Flamengo tornaram-se sócios também do Fluminense para acompanhar o futebol, e os do clube das Laranjeiras vieram para o rubro-negro a fim de acompanhar as regatas. Alberto Borgerth representava bem o exemplo, pois pela manhã remava pelo Fla e à tarde jogava pelo seu clube, o Fluminense.”…
Se procede essa informação, Borgerth, provando ser um rubro-negro de raiz, sentiu-se, como não poderia deixar de ser, incomodado por estar frequentando aquele ambiente impuro, e liderou o retorno dos demais insatisfeitos às suas verdadeiras origens.
Aliás, outro dia assisti um vídeo, não me recordo se na TV ou em rede social, em que, se não me engano um jornalista, afirma que a fundação do clube das Laranjeiras teve participação de sócios do Flamengo, interessados em criar um clube de futebol.
Achei estranho, mas ainda não consegui confirmar. Sempre soube da história que todos sabemos, que você agora nos apresenta as minúcias.
Parabéns por nos trazer detalhes de nossa história, em um texto delicioso.
SRN! Prá cima deles, Flamengo!
Teve isso, Amadeo. Recomendo o novíssimo livro do Roberto Assaf, onde ele conta vários casos de tricolores com o pé no Flamengo, e outros casos deliciosos. SRN!
A Alberto Borgerth, ao n° 186 e ao Dunlop, hip hip hurra!