Não sei quem escreveu outro dia sobre as faixas nos estádios, que esparramadas e inertes como estão, deprimem mais do que empolgam os jogadores. Concordei com a teoria, mas acho um tema perigoso – pode acender na cabeça de um dirigente desocupado a ideia de implantar gigantescos ventiladores ou, nunca se sabe, um complexo sistema de roldanas para fazer tremular os bandeirões sem vida. Daí para instalarem bonecões de estádio agitando os braços ao vento não demora. Deixemos isso para lá.
Seja como for, sempre curti as faixas de torcida. Algumas, claro, fizeram História com H grande, graças a mensagens políticas acertadas. Mas mesmo as bobinhas eram bacanas, pois ofereciam algo para ler durante os intervalos ou nas partidas sonolentas. Nenhuma, no entanto, me fez refletir tão profundamente quanto aquela que reli outro dia, gigante, em letras quase fosforescentes durante um jogo noturno: “Joguem como bebemos”.
Os dizeres são de uma concisão impecável. “Olha, somos bebuns, somos mandões e, caso alguém aí não retribua em suor tudo o que urinamos, o pau vai comer, entendido? Hic, amamos vocês, etc”. Mensagem simples e direta, certo? Ao fim e ao cabo do prélio, no entanto, refestelado no sofá feito a faixa na arquiba vazia, percebi que o time perdera o jogo, e ainda por cima estava eliminado do torneio. Comecei, ali, a duvidar de sua eficácia. Após tomar mais uma cerveja, estava inclusive pronto para declarar meu horror a essa faixa tão ditatorial quanto inócua.
Repare bem, amigo leitor ou distinta leitora (tem alguém aí? alôoo): no fim das contas, a mensagem não tem muito nexo. Afinal, e aqueles jogos das 11h da manhã, que tantos pontos importantes renderam ao time de Jorge Jesus em 2019? A galera da Fla-Manguaça pode até beber legal antes do meio-dia, mas é difícil pedir ao time que vá na bola como quem vai a um copo de bebida antes do almoço. Sem contar que o bordão pode ser mal compreendido por jogadores distraídos:
– O que diabo tu foi fazer no ataque, Ditão? Ficou maluco?
– Perdão, professor, eu tava firme lá atrás, mas daí fui ler a faixa ali na arquibancada e viajei. É que tenho um tio que bebe, mas bebe mesmo, e ele sempre faz a mesma coisa: sai, não volta nunca e ainda inventa desculpa esfarrapada, sabe?
– Mas você é o goleiro, seu idiota!
Se o Tio Google não está equivocado, a faixa em questão ganhou fama em 2016, durante as Olímpiadas, num Brasil x Romênia em que vencemos com galhardia, no handebol feminino. Pois só hoje percebo que o mantra devia ter ficado restrito ao handebol das mulheres – não há, em hipótese alguma, como ele dar certo no futebol. Os motivos analisaremos juntos, a seguir.
1. Esquemas táticos
Procure pensar em seus amigos à mesa do bar. Imagine que são onze, e vão ficar ali a beber por 90 minutos. No começo, de fato, parece mesmo bom futebol: troca de posições, um se desloca para fumar na rua, outro cobre os espaços e persegue o garçom, com um carrinho por trás se necessário. Aí chega a batida de maracujibre ou outro suco da confusão qualquer. Pronto, não tem jogo posicional que funcione. Um vai ao banheiro na hora de pagar, outro se joga num Uber e dá a bola de fumaça, aparece um 12º que ninguém conhece querendo se enturmar, e ainda toma uns pescotapas. Volta e meia, em dias de porres à la final de campeonato, surge a patroa de um dos pinguços, de camisola, para buscar o palhaço. Jogar como bebemos? Assim nem com Marcelo “El Loco” Bielsa ou Sampaoli.
O que falta, na realidade, é um esquema tático nos bares similar ao dos analistas de futebol, o que poderia, aí sim, justificar a dita faixa.
– Bela camisa polo. Qual vai ser hoje?
– Tudo acertado. Vamos de 4-4-2.
– Perfeito, ainda mais fora de casa.
– Sim, mas é preciso disciplina. Confere aqui na prancheta: quatro taças de vinho no jantar. Quatro chopes para hidratar. No fim, duas tequilas.
– Se não der certo, a gente inverte num 4-1-4-1: quatro long-necks, uma dose de Jaggmeister, e repete.
– Ai Jesus, já vi que vamos terminar em noitada sertaneja.
E há, óbvio, os esquemas mais conservadores:
* 5-4-1 – Clássico. Cinco garrafas de pinga mineira, quatro sacos de limão, um saco de açúcar mascavo, delícia…
* 6-3-1 – Seis doses de escocês, três pedras de gelo, uma Neosaldina.
* 43-3 – Esquema predileto de Albino Pinheiro e outros velhos boêmios cariocas. Consiste em 43 chopes no boteco depois da praia, depois três dias de ressaca gemendo na cama.
2. Sinais e discrição
Se você não viu hoje, pela 137ª vez, o gol da virada de Flamengo x River Plate, repare nos gestos do Gabigol ao pedir a bola para Diego. Primeiro, Gabriel aponta. Com outro dedo, discreto, sinaliza para Bruno Henrique como agir. Depois, reforça o sinal para Diego. Pronto, bola no filó e a Libertadores garantida após 38 anos. E como seria o lance no esquema “joguem como bebemos”? Gabigol bota um dedo para o alto. Gabigol fecha os olhinhos e bota os dois dedos para o alto. Gabigol tira a camisa e mostra o mamilo, para espanto do zagueirão Pinola. Pronto, Diego, espantado, tocaria para outro e nada de gol da virada.
3. Tabelas e entrosamento
Há alguns anos, talvez décadas, o brasileiro via o drible como o grande momento do futebol, o movimento capaz de mudar um jogo. Hoje, pelo que se vê, nada enlouquece mais as defesas no Brasil do que as tabelinhas. Dribles ganham espaço, tabelinhas ganham jogos. E o que é preciso para o time que busca tabelas insinuantes? Saber exatamente onde o outro está. Prever de onde o colega virá, qual será sua movimentação. Já no “joguem como bebemos”… Basta lembrar de um amigo meu, que um dia foi encher o pote no Trem do Samba, e após um rodízio de rodas de pagode de fazer inveja ao Domenec, pegou o trem em Oswaldo Cruz. Pegou pro lado errado, dormiu e acordou com o sol na cara em Queimados, sem a menor noção de onde estava. Já imaginou isso em campo?
– Olha lá, Willian Arão com a bola, amigos. Ih, Arão arrancou. Fechou os olhos e desembestou. Passou por um, por dois, passou pela área, pelo gol e pelos fotógrafos. Que isso, Arão! A bola ele perdeu faz tempo, claro.
– Villani.
– Diga Eric Faria!
– Não entendo catalão muito bem, mas o Dome parece um pouco furioso, já já confirmo quando ele parar de atirar cones no Arão. Thiago Maia no aquecimento!
Chega, portanto, de misturar copas e copos. É hora de limpar a espuma do bigode, que ainda faltam 30 rodadas, e seguir em frente – sem criar confusão, sem contar vantagens, sem falar alto e cuspindo. E, principalmente, sem tropeçar na hora errada, como uns pinguços que conheço.
Não jogue como bebemos, Flamengo.
Bom demais, Dunlop! Agora, mudando de assunto, por que o Flamengo joga no Maracanã sem torcida, com aquele gramado esculhambado? Não poderia jogar na Gávea, no Ninho do Urubu, num estádio menor onde tivesse menos prejuízo e a buraqueira atrapalhasse menos? Se alguém souber o motivo por favor me dê uma luz.
SRN
Joguem como bebemos = joguem com afinco, entusiasmo, alegria e, se nada der certo, tentem ao menos não fazer vergonha.
Concordo com a faixa.
Melhor que aquelas com as palavras “terror”, “fúria”, etc.
Saudade mesmo é das bandeiras na arquibancada. As nossas maiores organizadas estão (justamente) proibidas de levarem bandeiras e instrumentos, e até de adentrar o estádio, mas o que justifica o torcedor comum não poder mais levar sua bandeira pro estádio? As bandeiras sempre foram a alma e a beleza das arquibancadas do Mengão.
O Flamengo podia e devia brigar contra mais essa norma estúpida, dentre tantas outras que só servem para tirar o brilho e o encanto do futebol.
Marcelão, tendi perfeitamente que a faixa foi apenas um pretexto pra mais uma crônica de beber rezando. Mas permita que eu castigue aqui três faixas da minha predileção.
Uma delas é da torcida do Botafogo, em momento de protesto que já dura quase 25 anos. O texto sobre o morim dizia o seguinte: “Não há clube que resista a tamanha falta de ambição.” Muito bom, não?
Outra é da torcida do Santos, quando o time era dirigido pelo fabuloso Adilson Batista, e ele não parava de inventar. O torcedor mandou confeccionar e esticou na arquibancada da Vila Belmiro: “Muito faz quem não estorva. Fora Adilson.” Deu certo. Adilson perdeu mais uma ou duas, dançou, Muricy entrou e o Santos ganhou a Libertadores.
A terceira é, mais uma vez, da torcida botafoguense. Só que eu não sou trouxa de reproduzir a palhaçadinha neste sacrossanto espaço rubro-negro.
Braço.
PS: Amanhã, audiozinho da sorte.
Como me diverti lendo este texto,parabéns Dunlop pela aula futebolística e etílica.Agora passa a régua e fecha a conta.SRN