Dizem que no Flamengo as paredes têm ouvidos, as portas têm olhos e até o isopor do Gatorade fala pelos cotovelos. Deve ser por isso, e não graças a humanos indiscretos, que vazou por todos os cantos o novo contrato com os reajustes pedidos pelo atacante Gabriel Barbosa. (Tente encontrar qualquer cifra sobre as renegociações, por exemplo, do treinador Abel Ferreira no Palmeiras. Silêncio de tumba de granito.)

Antes do provável acerto, contudo, chamou atenção uma conta que Rodolfo Landim fez de cabeça num conselho dado a Gabi, em conversa repercutida em “O Globo”, pela turma do “Panorama Esportivo”. Se entendi certo, o papo rolou lá atrás, em 15 de novembro, no aniversário do clube. O presidente comentou seu cálculo ao goleador de 27 anos, inspirado nas trajetórias de Zico, Junior & cia: para cada ano que um ídolo flamengo se dedica intensamente e traz taças, “ganha outros dez de idolatria”.

A estimativa faz sentido, e me soou como um estímulo eficiente para qualquer um do elenco. O porém (…ai, porém) é que Gabi não é qualquer um do elenco – é um centroavante.

São raros os centroavantes, como percebeu Luis Fernando Verissimo em crônica publicada no início da década de 1970:

“Centroavantes, toureadores envelhecidos e mercenários, você os conhece só de ver. São sobreviventes da profissão. Estiveram com a morte e voltaram, e têm as cicatrizes para provar”. Seriam figuras de jeito desconfiado e olhos cansados, e mais:

“Nos treinos, tratam de brigar logo com o treinador, chutar a bola longe e sair de campo, senão não aguentariam os exercícios. Eles sabem que o treinador os irá procurar depois no quarto do hotel e pedir perdão.”

Por isso não é fácil aconselhar ou compreender os centroavantes. Há quem tente, mas acabam por procurar pistas nos lugares errados, como pagodes, jogatinas ou, no caso de Gabi, espetáculos de trap (armadilha daquelas, se aprendi bem no Ibeu). E esquecem de procurar onde deviam: entre as lendas do Velho Oeste.

Tive esse estalo ao rever, na tevê, a mais uma adaptação da vida de Billy the Kid, infame pistoleiro que viveu como ladrão de gado e, ao morrer muito jovem, saiu dos saloons para entrar para a história.

O que na história de Billy me fez lembrar de Gabi? Afinal, suas trajetórias não possuem quase nenhum paralelo.

Há, claro, os fofos apelidos a contrastar com a frieza, a petulância, a mira implacável e o ódio no olhar dos adversários. E o respeito que impunham desde a adolescência. Chutar, bem lembrado, vem de “shoot”, atirar.

Tirando isso, não poderiam ser mais diferentes. De acordo com seus historiadores mais fidedignos, Billy nasceu nos cortiços de Manhattan e, após estagiar em gangues de Nova York, atendeu aos chamados do Oeste. Dos 14 aos 21 anos, quando morreu, roubava cavalos, atirava a esmo e se tornou o cabra mais temido do Novo México, Kansas e arredores. Não teria matado mais de nove rivais, mas os números foram inflando. Foi emboscado por um velho amigo, o delegado Pat Garret, após outra fuga espetacular da cadeia. Seu túmulo, na vila de Fort Sumner, informa: ele aniversariava a 23 de novembro, data cabalística.

Gabi the Goal surgiu na comunidade do Cafezal, na região do Montanhão, e ganhou cedo o apelido “orgulho da quebrada”. Não parece atirar bem nem no videogame, já que prefere disputas de futebol virtual e corridas de carro. Em comum, ambos curtiam encontrar os amigos e ouvir guitarras mexicanas nas tabernas, enquanto eram desejados pelas morenas. Gabi porém se despedia pagando a conta, em vez de sair atirando nas garrafas.

O artilheiro canhoto inspirou alguns maus funks, enquanto o atirador destro inspirou Bob Dylan a compor “Knockin’ on Heaven’s door” em 1973, para a trilha do filme “Pat Garrett and Billy the Kid” em 1973. Em compensação, o facínora leva a culpa daquele álbum gravado pelo Jon Bon Jovi. Empate justo?

Vejo Gabi e penso em Billy talvez por ver uma entidade que, de dono do pedaço, passou a ser encarado com desconfiança, visto pelas costas por quem caía a seus pés. Fã da lenda do pistoleiro americano, o poeta Jorge Luis Borges certa vez o homenageou num texto curto e singelo reunido em “História universal da infâmia”. Na pena de Borges, Billy aparece como um “emissor de balas invisíveis que matam à distância, como um feitiço”. Borges então o retrata:

“O meninote da cloaca e das pedradas ascendeu a homem da fronteira. Fez-se cavaleiro, aprendeu a montar ereto no cavalo, à maneira de Wyoming ou do Texas, não com o corpo jogado para trás, ao modo do Oregon e da Califórnia. Não chegou nunca a se parecer, de todo, com sua lenda, porém, dela se aproximou bastante. Algo do cafajeste de Nova York perdurou no cowboy”.

O escritor argentino, ao radiografar seus caubóis, de fato parece ter chegado perto de entender o que se esconde no coração dos camisas 9. Ao cabo da crônica sobre o bandoleiro, Borges dispara a frase letal que, talvez, quem sabe, um dia resuma a relação de Gabi com o Flamengo, desde 2019 até o momento infame de sua despedida:

“Durante sete arriscadíssimos anos praticou esse luxo: a coragem.”

Um gole de uísque ao chão para William H. Bonney, três urras para Gabriel B. Almeida. Figuras lendárias que, agora percebo, eram sim unidas por um único destino:

Em Lima como no Arizona, a sina de ambos era vagar até o deserto e chocar o mundo, com o mesmo olhar mole, perdido e desinteressado dos grandes heróis universais.