Prezado Jorge Jesus,
Homem, primeiro meus parabéns: lavou a égua! Que temporada, rapaz!
Saiba, meu caro Jesus, que nunca fui de elogiar ninguém, como meus jogadores estão carecas de saber. Decidi escrever a você, de treinador rubro-negro para treinador rubro-negro, por pura empatia. Desde aquele primeiro jogo-treino na Gávea, em junho, contra o Madureira, senti que ali estava um dos meus – eu simplesmente não tolero técnico que fica sentadinho olhando o treino, parado no banco. Para mim esse tipo não presta.
Quem me estimulou a lhe escrever foi o Telê Santana, que é um grande papo, como todo bom mineiro. Telê, como já sabe, foi um treinador bicampeão mundial de clubes e que, coisa rara, conquistou títulos nacionais por clubes do Rio, do Sul, Minas e São Paulo. Pois saiba que ele não ficou invocado nem por um fiapo após você perguntar “quem foi Telê Santana?”, naquela festa de premiação do Campeonato Brasileiro, conforme deu no jornal. Disse ele: “Meu nome só não ficou famoso na Europa por dois cruéis detalhes: a vitória que escapou na Copa de 1982 e aquele diabo de AVC, que me impediu de aceitar o convite do Barcelona para substituir o Cruyff, em 1996.”
O ex-craque tricolor, na verdade, está é grato a você, e admite: “Morri cansado de repetir que no futebol não existe polêmica entre ganhar ou jogar bem – o que qualquer técnico inteligente deve buscar é jogar bem para ganhar. Jorge Jesus veio para provar minha tese.”
Pois é, o Telê era a tampa de crush do futebol brasileiro na época dele, igual você hoje. De mim, porém, tenho certeza que você já ouviu falar e muito, na Gávea.
Fui do basquete, como você sabe pelo ginásio que leva meu nome no Flamengo, e cansei de ser campeão – guardo até hoje a medalha de bronze que ganhamos em Roma-1960, nas mesmas Olimpíadas em que o Muhammad Ali brilhou, a gente conversa bastante aqui até hoje – êta bicho falador.
Virei lenda desde novinho, como técnico campeão de pólo aquático mesmo sem nadar muito bem. É que sempre fui bom observador e li todos os livros esportivos que apareciam. E, como você, fui 100% devotado ao esporte – dormia e acordava pensando em táticas e treinos. O espírito vencedor, para mim, é basicamente a soma da aplicação total nos treinos, a escolha dos melhores atletas e um ódio mortal de que todo o suor pingado seja desperdiçado na hora do vamos-ver, no jogo à vera.
Por isso que, volta e meia, eu perdia um pouco o temperamento e distribuía tabefes nos árbitros. Como Nelson Rodrigues escreveu em sua crônica mais famosa sobre mim, “a disciplina não desumaniza”, “a disciplina não empalha ninguém”. E o que são hoje esses técnicos do futebol brasileiro? Umas bestas empalhadas, dando entrevistas coletivas como professores sem alma.
Sei que hoje minha fama de técnico folclórico supera minhas ideias de jogo e meus méritos táticos na beira da quadra, fazer o quê. Se até um Einstein para muitos é um malucão de língua de fora, o que dizer de um técnico amador nascido na Paraíba? Por sinal, diferente da bandeira vermelha e preta do meu estado, não nego nada, nem meu gênio. E eu garanto: jamais esbofeteei um árbitro que não mereceu! Eu ia ficando vermelho, começava a sair fumacinha, chegava perto deles e disparava: “Tá pensando o quê? Nesse cangote aqui ninguém monta. Em mim ninguém monta!” E mandava aquela fritada, como aconteceu com o pobre do árbitro uruguaio Julio Sánchez Padilla no célebre jogo com a União Soviética.
Eu fazia tudo pela vitória? Sim, mas aquele causo da final do Mundial de 1963, em que eu teria pisado na lente de contato do craque dos EUA, que era um cegueta, é balela. Eu apenas disse aos meus atletas, no Maracanãzinho: “Se achar essa bendita lente, eu piso em cima!”. Mas não achei. E por isso fico daqui de cima mais admirado: vocês ganharam uma Libertadores sem dar um tapa, sem um Anselmo! Porreta demais.
Meu descontrole, hoje entendo, é culpa de meu pai, que jamais reconheceu um erro dos filhos – tanto que meu irmão Orlando Heitor, hoje mais conhecido como pai do Jô Soares, foi um merdeiro e tanto, era da gota-serena! Graças a ele, que mirou um tinteiro na cabeça do diretor do colégio em João Pessoa, fomos todos expulsos e viemos parar no Rio.
Minha paixão pelos esportes coletivos nasceu ali, quando ingressei no Colégio Militar, em 1917. Logo em meu primeiro dia, deu-se um fato curioso. A calourada seguia em fila, marchando, quando um veterano da cavalaria, tal de Roberto – que anos depois seria atleta do Flamengo – deu com o chicote na minha perna magriça (por isso meu apelido Kanela, de “Canela de vidro”). Bufei: vi um canteiro de obra, peguei um tijolo e atirei no sujeito. Detenção na hora.
Eu já era visto como um soldadinho bom de táticas nas peladas quando me pegaram a contragosto para ser sentinela, no Forte de Copacabana. Avalie: nem farda eu tinha! Assumi o posto, mas num mau dia, pois estava com uma tremenda dor de barriga. A coisa apertou, chamei o sargento, que não acreditou e me deu as costas. Quando reapareceu, eu mostrei a ele o chão que era puro barro. O sargento ficou uma arara: “Como? É brincadeira!”. Respondi: “Brincadeira nada, chega perto para sentir o cheiro”. E me mandei de bicicleta. Xadrez de novo.
Mas não estou gastando tinta para contar das merdas que fiz (aliás, sabia que o João Havelange e os governadores Marcello Alencar e Faria Lima foram meus atletas? Não espalha.)
Jorge, fui penta sul-americano de basquete, tenho cinco medalhas em Mundiais (duas douradas) e meu Rolo Compressor no Flamengo ganhou o Estadual dez anos seguidos. Eu cantei para subir em 1992, mas sabe o que me envaidece hoje? Saber que existe um pedacinho do Flamengo com meu nome lá, aquele ginásio engalanado onde vivi tantas emoções.
Não tive, claro, apenas momentos felizes. Meu jogo inesquecível pelo Flamengo foi aquela vitória por um ponto – 45 a 44 – contra o Sírio Libanês, em 1955. O Dr. Gilberto Cardoso estava do meu lado, e quando acabou, me pediu para levar duas meninas, nossas torcedoras, ao Leblon, porque ele não podia. Estava enfartando e lembrou das caronas, vê se pode. Quando cheguei em casa, recebi um telefonema e soube de sua morte.
O Dr. Gilberto, aliás, foi um dos que mais vibraram com a final da Libertadores em Lima, pulando abraçado com todo mundo, a ponto do Rubem Braga brincar: “Presidente, assim você vai ressuscitar do coração…”
Caro Jorge, se me permite um pequeno conselho, de quem sempre teve um olho clínico para a coisa – o palpite de um treinador que, em 1930, assim que o beque do Bangu Luís Antônio da Guia se contundiu, virou-se para seu irmão, razoável meio-campo, e sugeriu: “Ô Domingos, por que não joga na zaga?” – se não for abuso, receba a sugestão: fique até 2021 no Flamengo.
Creia, não é pitaco de torcedor não, homem de Deus. Oferto esse conselho por conta de duas frases ouvidas aqui. A primeira, do Dr. Gilberto Cardoso: “O Flamengo não para, porque o Flamengo é uma força em marcha. Seu destino é a eternidade”. A outra, do alvinegro João Saldanha, o rei da resenha: “Besteira o Jesus querer voltar pra Europa. Num Real Madrid daria alegria a uns 50 milhões de pessoas. Se fica no Flamengo mais um ano, faz a festa de 40 milhões e em breve assume a seleção, para ser reverenciado – para sempre – por mais de 200 milhões de corações, fora os gringos.”
Eu conheço o Flamengo pelo avesso, Jesus, e já tive de vender chaveirinhos do Popeye para comprar uniforme para os meus atletas – o conselho do clube tentou me punir pela ousadia. O que mais desejaria era viver tudo aquilo de novo, agora num clube estruturado. Já que está aí, desfrute – até que a seleção o convoque, para você ir à forra por Telê, pela geração de 1982. Eu, que já vivi altos e baixos com a amarelinha (pesquise sobre o boicote que me fizeram nos Jogos de Munique-1972), afirmo: valerá a pena.
Vou chegando.
Um abraço do
Togo Renan Soares, o “Kanela”
PS: Avise ao povo que a Marilene Dabus, linda e esfuziante, foi recepcionada com uma senhora festa. Bem informada como sempre, ela nos garantiu que o Pelaipe já estava te enchendo o saco e saiu em boa hora. Menos mal – menos uma crise na Gávea.
PPS: Visite aí no Rio o Velho Adonis, restaurante no bairro de Benfica que é um ou dois anos mais velho que você. Chame o Marcos Braz e encare o bacalhau à portuguesa com aquela montanha de alho. Se não quiser atrapalhar a preleção, mande vir o polvo. E as empadinhas? Divinas! Hein? Ah, você não come empadinhas? Porque engorda… Mas é uma delícia, pode pedir. Ou vai fazer essa desfeita? Tá pensando o quê? Nesse cangote aqui ninguém monta! Em mim ninguém monta! (Calma, respira Kanela…)
ESPETÁCULAR!!!! Esta carta precisa ser entregue ao Mister…
Fodaaaaaa !!! SRN
sensacional !!!
SRN !
Prometi, vou cumprir.
Comentar um texto perfeito, impossível.
Vou fazer uns adendos, eis que vivi intensamente a era Kanela.
Em primeiro lugar, uma omissão, que, de forma alguma, atinge a beleza do texto.
Kanela, técnico de futebol.
Foi, nem sei o motivo, apenas no ano de 1949.
Não foi feliz, não ganhou o título, que, para variar, à época, acabou com o Vasco.
Um detalhe que me parece importante.
Rasiko e eu já escrevemos aqui mais de uma vez.
A histórica vitória do Flamengo sobre o Arsenal, em São Januário, por 3 x 1, na estréia do nosso melhor goleiro de todos os tempos, o paraguaio Sinforiano Garcia.
Kanela o nosso técnico, na oportunidade.
Vermelho (a pele, não na politica) como poucos, brigão como poucos, imaginem a cor que ficava no meio das confusões.
Uma figuraça.
No basquete, uma partida muito mais do que curiosa.
Em 1950, salvo engano.
O Fluminense, no Cariocão, estava se metendo a besta.
Reforçou o seu time e badalou que ia ser o campeão.
Jogo à noite, lá longe (para mim), no Ginásio do Municipal.
As regras eram totalmente diferentes.
Não havia limite de tempo de bola, muito menos cesta de três pontos e por aí vai.
O resultado final, a minha memória está falhando,
Posso garantir que ganhamos fazendo apenas DEZOITO pontos.
Prendemos a bola o tempo todo e os tricolores, de bico aberto, a correr atrás.
Coisas do Kanela.
Como escreví, apenas umas recordações.
Pessoais, sem dúvida, mas sobre momentos marcantes na vida flamenga e ^kaneliana^.
Agradecidas SRN
FLAMENGO SEMPRE
PS – Nunca ouvira falar no livro, também na autora. Maria Célia Kanela. Com a mais absoluta certeza, Kanela morreu (já com bem mais de oitenta) solteirão e sem deixar filhos. Quem é ela, indago.
Não faço ideia, desconfio que uma irmã ou sobrinha. Jô Soares pode nos esclarecer. Ótimas lembranças! Kanela também foi o louco genial que mandou o Jair Rosa Pinto embora da Gávea. Além desta vitória contra o Arsenal, ele também meteu um 2 a 1 no Chelsea, há quase cem anos, num torneio em que ele dirigia a Seleção do Rio. Graaande Kanela!
Domingo de chuva, campo da Gávea.
Lá estava eu.
Em 10 minutos, fizemos 2 x 0.
No final, V asco 5 x 2.
Consequência – Jair da Rosa Pinto, o famoso Jajá de Barra Mansa, foi defenestrado, acusado de ter amolecido o jogo. Teve a sua camisa queimada.
… acabou por inspirar o nome de um certo alguém. Não podia dar certo, mesmo.
SRN
FLAMENGO SEMPRE
Eu amo basquete e o Flamengo.
Que espetáculo.
Isso sim é um textaço flamengo.
Obrigado, Dunlop.
Em sua homenagem, já tirei uma The Trooper na guitarra, com uma paleta com seu nome escrito.
Tenho uma dessas, com uma tartaruga desenhada? Ou é outra? Kkkkk
O Mister Jorge Jesus precisa ler essa carta com urgência…
Você é f…, Dunlop!
Esse e o verdadeiro espirito que move o Flamengo!!!! Força viva da natureza!!!!
Ter esse local e desfrutar todos os dia é impagável, indescritível o que vcs fazem por amor , cada um trás a emoção , a paixão ao seu modo de vista, cada jóia que temos o deleite de ler quantas vezes possível, eu como um amante da leitura só tenho a agradecer de coração aberto e cheio de energia flamenga ao universo por conseguir juntar e misturar essa constelação de estrelas nesse magnífico e autêntico blog de puro amor ao Flamengo, obrigado, obrigado e muito obrigado de uma alma flamenguista .
Como é ótimo ser flamenguista e saber que temos uma nação que ama e segue religiosamente o Flamengo assim como o quinteto rubro-negro e eu.
Muito obrigado Dunlop.
Muito obrigado Murtinho.
Muito obrigado Nvinha.
Muito obrigado Bela Vivi.
Muito obrigado Arthur.
Vocês são jóias raras de incalculável valor que temos um enorme prazer de ler e se deliciar com as crônicas flamengas de todo dia.
Quero um “Belo Dunlop” na próxima!
Depois de ler esse belo texto, acabo de saber: Marilene Dabus morreu, tristeza absoluta. O Flamengo de luto.
Lindo de morrer !
Quando passar a emoçção, escrevo mais !
Mais do que emocionadas SRN
FLAMENGO SEMPRE
*Acabei de ler o texto do Dunlop… simplesmente SENSACIONAL!!!…com certeza minha velha avó paraibana e flamenguista de sete costados, prima de outro paraibano flamenguista, José Lins do Rego, diria do alto da sua sabedoria quase se secular que “esse menino escreve como se estivesse com a mulestia da gota serena !!!”*
*E com a licença do mestre Moraes… palmas de pé e pedindo Bis como nos espetaculos do antigo Theatro Municipal”*
SRN
Depois de publicar percebi que Zé Lins, Suassuna e Edilberto Coutinho, conterrâneos de Kanela, ficaram fora da carta. Mas certamente ajudaram a escrever e revisar.
Bruxo, já tive gota, um dia que bebi muito e comi bastante carne, mas não sei se serena. Obrigado pelos cumprimentos, sempre. SRN!
Pra satisfazer sua curiosidade liguei para algumas velhas tias lá da Paraíba perguntando o significado de “gota serena”….vamos lá…
Gota serena (ou gota-serena) é uma expressão popular da região Nordeste do Brasil, principalmente pras bandas de Ingá do Bacamarte…Itatuba e Serra Velha na Paraíba, onde se criou minha velha avó, cujo significado se refere a um, impaciência, nervosismo ou exaltação.
Quando se diz que alguém está “com a gota serena” ou a “dar a gota serena”, significa o mesmo que estar furioso, bravo, irritado e danado com algo ou alguém.
Em alguns casos, seria o seu, a expressão também é usada para indicar surpresa ou admiração, se referindo a algo muito bom, ou ainda, quando um determinado acontecimento é incrível, grandioso e memorável. E é aonde se encaixa esse seu texto…
SRN
Sensacional! Suas crônicas merecem estar no site do nosso mengão! SRN
HEPTACULAR!
SRN!
Como é bom ser Flamengo!
Essas referências aos que tornaram o Flamengo o que ele é hoje são fundamentais para que as gerações mais novas tenham esse sentimento de pertencimento, de que essa história também é a deles, embora não tenham visto e vivido os fatos narrados.
É como eu sempre digo à minha sobrinha, rubro-negra trazida para o lado claro da força apesar dos protestos do pai: um dia será sua responsabilidade fazer com que essa história e esses heróis não sejam esquecidos. E passar adiante o que você aprendeu.
Graças aos céus e a essas inspirações que nos vêm dos que habitam aquelas paragens, ela tem se mostrado à altura da responsabilidade.
E, verdade seja dita, o Mengão em fase rolo compressor tem ajudado muito…
SRN, Dunlop. Mais do que parabéns, seu texto merece um agradecimento. Obrigado por ele.
Só mesmo aqui para ler um Ogrão sensível. Caro Ogrão, é exatamente isso. Oitenta por cento das informações desta carta do grande mestre Togo Renan estão em “A Era Kanela”, de Maria Célia Kanela e Pedro Zamora, livro inestimável para quem trabalha com basquete e torce para o Flamengo. Comprei na Estante Virtual, há uns anos, na certeza de que um dia renderia crônica. Obrigado, Jesus, e viva Kanela!
Caramba! Que texto! Sensacional!
Dunlop, meu camarada, tu é o Arrascaeta do teclado.
Lendo sasporra aí que tu publica no RP&A, a gente fica achando que escrever é a coisa mais fácil do mundo.
Abração. SRN. Paz & Amor.
Você digita isso para todos. SRN!
Um homão desse tamanho, e ciumento.
Próxima vez que for ao Rio, terei uma conversa séria com a Flavinha.
Abração. SRN. Paz & Amor.
Clap, clap.clap!!!