Caro senhor Eduardo Bandeira de Mello,
Sou Afonso Henriques de Lima Barreto, ex-aluno da Escola Politécnica e funcionário público como tu, teu pai e teu avô. Deixei também uns dous ou três livros de pouca importância, até falecer no ano de 1922. (Guardas ainda o scratch rubro-negro de 1922? Kuntz, Telefone e Pennaforte; Rodrigo, Sidney Pullen e Dino; Alvaro Galvão Bueno, Candiota, Nonô, Segreto e Orlando. Galvão Bueno! Que cousa.)
Perdoa estas mal traçadas, em estilo mal-ajambrado; a verdade é que não escrevo já vai mais de 95 anos. Mas não resisti, ao ver-te tristonhamente, mais uma vez, indo às compras por um novo treinador, como uma dona-de-casa bongando frutas na feira. Que fatal inclinação do Flamengo!
O que espanta, aqui no além-túmulo, são três questões: qual será a validade de começar um trabalho e uma nova filosofia no meio de agosto? Por que cargas d’água uma administração moderna e responsável permanece arcaica na hora de trocar de comando e demitir um coach, como nesse pé nos glúteos do sr. José Ricardo? Por fim, por que ninguém usa mais o verbo “bongar”, ó Deus!?
Não penses que meu fito aqui é o de ironizar os problemas do Club de Regatas do Flamengo, denodado presidente. Já foi época de eu meter meu bedelho e polemizar sobre todo e qualquer assunto pelos jornais. Mas é como aprendi: honestidade de político, honra de donzela e confiança dos torcedores flamengos só se perde uma vez. Dureza!
Lula Carlos, cronista pernambucano, cá insiste que cartolas são todos iguais. É dele o mantra, que devia estar grafado em alguma sala da Gávea: “O dirigente é aquele cara que aparece mais que o jogador, fala mais que o locutor e gasta menos que o torcedor”. Só que ainda há muita gente boa torcendo por ti, caro presidente. Muita.
Por exemplo, meus companheiros de carteado aqui nas nuvens, todos amuados por estes dias. José Lins do Rego anda com os lábios cerrados, descontente. Ary Barroso passa rilhando os dentes e soltando fumacinhas, levando os anjos a sair de perto. E o jornalista Mario Filho? Melhor nem comentar. Podes imaginar como ele está, ao espiar seu Maracanã às moscas como uma carcaça de baleia.
O boa-praça Jaime de Carvalho, fundador da Charanga Rubro-Negra, nem a jogo vai mais, pois acha as partidas de um silêncio modorrento (e olha que daqui até a Ilha do Governador é uma reta). Falar nisto: por onde andaria a Charanga? Está proibida de se postar nas arquibancadas da Ilha, ou isso é para poupar uns caraminguás? Que tempos…
O presidente Eduardo Bandeira de Mello. Foto: Gilvan de Souza/Divulgação
Bem sei, presidente, que meus palpites cá de cima tem pouco ou nenhum valor, afinal ninguém me deixa esquecer que fui um dos fundadores da extinta Liga Brasileira Contra o Football, em 1918. Tinha lá minhas razões: a Guerra Mundial ceifando vidas e nosso povaréu nas esquinas debatendo o esporte bretão após partidas que invariavelmente terminavam em sururus tremendos, facadas e até mortes. Além do mais, o “jogo dos trancos e pontapés”, como apelidei, só permitia moços brancos. Está aqui o Francisco Carregal que não me deixa mentir, o primeiro negro e operário a disputar o Campeonato Carioca, pelo The Bangu Athletic Club. (Ele te manda um abraço e diz que bota a maior fé no Vinicius Júnior.)
Apesar de ser um fã tardio, fui bem aceito aqui nas rodas de bar e nas tertúlias desportivas, com seus debates intermináveis sobre o “football do meu tempo” versus o “football empresa”. A última mesa foi animada, com meu amigo Nabokov, George Orwell, Nelson Rodrigues, Camus, Garrincha, João Saldanha e outras feras. (Eles não cansam de azucrinar o dr. Ruy Barbosa, por ter proibido a seleção brasileira de 1916 de acompanhá-lo num navio que rumava para Buenos Aires com uma comissão de diplomatas. “Doutor Ruy! Já viu o novo barco do Neymar? De repente ele te dá uma caroninha”, provoca o Sandro Moreyra sempre que o vê, para risadas gerais. Faz mais de cem anos, mas o pessoal não perdoa…)
Senhor Bandeira de Mello, não sou doutor em cousa alguma – graças a Deus! – mas receba o humilde conselho de quem aprendeu a gostar do Flamengo com os goals de Leônidas, Carlinhos e do garoto Adílio, que jamais disputou uma Copa do Mundo, sabe-se lá por que razões de pele e preconceito: não é demissão ou troca de treinador que ganha jogo. O que ganha jogo é a alma, como diz o outro. Gana tem de vir antes da grana. Seus dirigentes já provaram competência para injetar gaita no clube; quem será capaz de injetar nos jogadores a volúpia de vencer, a vontade de ir na bola como num prato de comida, como nos teams de antigamente? Quem fará deste grupo “mosca-morta” um elenco com o sol no sangue, como se costumava falar em minha época? É esta contratação que falta.
Fui recentemente a um jogo, arrastado pelo Zé Lins, um tarado que não perde uma partida. Tu sabes, eu vivi num hospício, mas a quantidade de birutas que há na torcida do Flamengo nunca vi igual. Perto da gente, uma negrinha linda, sem uma das pernas, se esgoelava, agitando a muletinha. Achei a cena bonita. De repente, nossos zagueiros falharam mais uma vez, e ouvi acima da gente o grito de voz masculina: “Paçocaram de novo, não é possível! Ai meu santo saco!”. Era o Judas Tadeu, furioso dentro dos seus mantos. Prova de que qualquer um pode perder a paciência.
Despeço-me com o sincero desejo de sorte, para o bem da gente pobre do Brasil, especialmente os de cor, por quem sempre me enterneci. Para mim o brasileiro continua um povo vaidoso e guloso de títulos ocos e honrarias chocas, satisfeito com distinções de anéis, condecorações e por andar pela rua cheio de dourados. Já o povo flamengo é nobre e só deseja uma cousa: a faixa no peito.
Com estima,
Lima Barreto
PS1: Peço que não divulgues o que contarei, mas houve mesmo interferência externa de um jornalista no jogo contra o Santos pela Copa do Brasil; não, que Eric Faria o quê! Quem soprou no ouvido do juiz de fora foi o Ary Barroso, que assistia ao jogo trepado no telhado da Vila Belmiro, o gaiato.
PS2: O Rubem Braga, sábio torcedor flamengo, perguntou o que eu estava escrevendo e soprou a frase: “Não há problema algum no Márcio Araújo ser o volante do Flamengo. O problema é o Márcio Araújo ser o motor do Flamengo”. Anotado e enviado.
PS3: Não te tortures mais com a eliminação da Libertadores. Posso te adiantar que a pressão cá em cima está forte em cima de São Pedro por parte da turma do Vinicius de Moraes e do Fernando Sabino, reforçada por outros botafoguenses recém-chegados. Nesta o sr. José Ricardo não teve culpa.
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http://globoesporte.globo.com/futebol/times/flamengo/noticia/popoca-aponta-interferencia-e-sabotagem-no-sub-20-do-fla-diretor-defende-trabalho.ghtml
Fiquei preocupadíssimo com tudo o que foi exposto nessa matéria pelo Popoca. Sendo verdade, e tudo aponta nesse sentido, há algo de muito podre justo no meio-ambiente onde os meninos, garotos e jovens têm maior facilidade de aprendizado, não só na área esportiva-profissional, mas de valores éticos e morais que se impõem como regras muitas vezes não ditas, porém óbvias, em qualquer interação social. Se ainda em fase de formação têm como exemplos mutretas e favorecimentos, desrespeito à hierarquia e atos covardes, reprováveis por si só e por instalarem o vírus da discórdia, da competição predatória e da separação e divergência de meios pra atingir o mesmo propósito, qual pode vir a ser o futuro desses meninos no que diz respeito à formação de caráter, exemplo maior que elevou Sua Majestade Zico ao posto de ídolo máximo não só de seus súditos rubro-negros, mas de torcedores e jogadores de muitos outros clubes por sua integridade, humildade e imensa capacidade de agregar com o fluir de sua generosidade?
Esse fato merece um esclarecimento maior. A direção sempre se gaba da transparência nas contas, o que é uma obrigação. Assim como é uma obrigação a transparência no departamento de futebol. Volta e meia uma nuvem paira por lá, especialmente depois que o Bandeira resolveu encampar a vice-presidência. Não tô colocando em xeque a honestidade formal dele, mas as sucessivas lambanças com gastos absurdos e injustificáveis, minando grande parte do trabalho dos departamentos jurídico e de finanças pra equacionar e pagar dívidas, têm que ser questionadas e cobradas pela torcida. É ela que banca essa bagaça toda e é ela que tem a responsabilidade de, educada e civilizadamente, primeiro, lembrar ao iludido “Imperador” Banana, que ele deve, SIM, satisfações à torcida que faz possível a existência do Flamengo e tudo o que daí decorre; segundo, essa conversa mole de “assuntos internos” é papo de FBI, polícia secreta e coisas do gênero. Preservar o meio-ambiente e não dar munição pros adversários é uma coisa. Deixar plantada a dúvida e a suspeita de que alguém ou alguéns está querendo levar vantagem às custas da instituição Flamengo é outra completamente diferente. E esta última não é assunto pros “Assuntos Internos”.
srnp&a
Que texto maravilhoso! De um rubroneguismo de raiz! Parabéns! SRN!
” Por fim, por que ninguém usa mais o verbo “bongar”, ó Deus!?” Eu uso e muito.
Nós separados nas arqubancadas estamos tão unidos na desolação,(Grande Chico) ,Muito talento para pouco time.( Chico,não tão grande) Parabens Marcelo
Eu não ia me manifestar sobre o texto, tamanha a incongruência( epa), escolher logo o Lima Barreto, meu pai, meu criador para falar sobre futebol, ou “jogo do ponta pé”, mas já que nosso Carlos Moraes se manifestou lá vou eu. Eu mesmo sou uma contradição pura, e não faço mistério disso, além do que, tanto na terra e, especialmente, no céu tudo pode acontecer. Talvez vivo fosse o Lima ainda estaria com a pulga atrás da orelha em se tratando do velho esporte bretão ( uma das implicações dele era essa a alienação cultural do esporte que, além do mais era elite, foi trazido por filhos dessa camada social da época que foram estudar na Inglaterra,etc.). Já na época era violentíssimo, não sei se surgiu aí o complemento “…e violento esporte bretão”, não só em campo como fora, conta-se que um jogador puxou um revólver para outro, uma mulher grávida perdera o filho ao ser agredida e outras sandices que, infelizmente, continuam. As diferenças sociais, aos poucos vai voltando: com os preços exorbitantes dos ingressos, já não se vê mais o sorriso desdentado do negão como se via no Jornal do Niemeyer, “que bonito é, etc.,além, claro, de não admitir pretos como jogador, mas isso é outra história. Talvez nesse quesito o Lima , se ele mudasse de opinião, torcesse pelo Vasco, pois diz a lenda que foi o anão do montículo que primeiro colocou pretos no time, mas parece que na realidade foi o Bangu ( houve até um tempo que o Bangu era chamado de “mulatinhos rosados”, pasmem! maior preconceito, impossível). Quanto a mim fui um advogado, se agora cheio de contradições na minha nova pele de rubro-negro improvável, na época era bem coerente, pois só admitia como lei, o que estava escrito, pra mim a tal lei da gravidade não existiria, pois eu não a vi escrita em código penal nenhum.Pelo visto tão diferente dos juízes de hoje que justamente julgam por leis que não existem, só estão escritas na cabeça deles, a tal presunção de culpa, e estão botando gente aos borbotões na cadeia, tornou-se fácil julgar, valendo-se de métodos modernos (power point, por exemplo) “eu acho que é, porque é”, cana sem mais delongas, cadeia nele, o que, nós do futebol chamamos de “achismo”. No mais até concordo com essa falta de alma do Flamengo e acho esse o grande problema que nos persegue há anos, portanto, mais pra Freud do que pra técnico.
Obs. Uma homenagem também ao Murtinho, pois essas minhas opiniões estão espalhadas por aí em inúmeros comentários, estou rouco de tanto me ouvir, e com uma preguiça enorme de ficar batendo na mesma tecla, o que hodiernamente quer dizer, não tenho mais saco.
O TEXTO É MUITO MELHOR DO QUE O FLAMENGO: TIMINHO CHINFRIM QUE SE ASSEMELHA AO CONGRESSO NACIONAL PELA FALTA DE INTERESSE EM CUMPRIR SUAS OBRIGAÇÕES. BELO TEXTO POREM O OBJETO NÃO MERECE….
Mais um texto desse ás da escrita… Desses textos que você vai lendo devagar, com pena de que está acabando… parabéns!
[…] […]
Fui ao dicionário e constatei que o MD usou o termo no exato sentido que consta do Policarpo Quaresma.
Como já li há uns trocentos anos, desculpo a minha abalada memória.
fRaternas SRN
FLAMENGO SEMPRE
Tenho uma conclusão, da qual não abro mão.
O Dunlop, do alto dos seus pneus, quis sacanear o nosso Xisto Beldroegas.
Só pode ter sido isto.
O Lima Barreto, JAMAIS EM TEMPO ALGUM, gostou de futebol.
A única hipótese que poderia – escrevi, apenas, nesta porra do pretériro do futuro, outra sacanagem, desta vez com o saudoso e sempre querido CONDICIONAL – ter deslumbrado o escritor está na FLIP deste ano.
Comovido com a homenagem, também de cunho popular, resolveu aderir de última hora.
Da minha parte, nem na probabilidade acredito.
Por isto mesmo, sem dar crédito aos conselhos dados, vou procurar o significado de BONGAR.
De futebol, quem entende mesmo, é o seu representante em terras cariocas, o Xisto, com seu gato vesgo e sua máquina enferrujada.
Faternas SRN
FLAMENGO SEMPRE
Amigo Carlos, não conhecia ainda o dr. Xisto Beldroegas, fui ler sobre. Obrigado pela dica. Espero que o grande Lima não baixe novamente por uns tempos, ele chega devagarzinho mas para ir-se embora é um problema, vai ficando, pede dez saideiras… Forte abraço
Brilhante!
Curto muito que nesse blog, mais do que meramente futebol, se faz Literatura.
Belo texto, nos faz pensar aonde nosso time chegou, ou não chegou, ou se vai chegar …
Cheguei agora de outra República.
Logo, não tive tempo de ler (até porque é bem grande).
Desde já, no entanto, antecipo. O Xisto vai protestar. Não foi ele que ^recebeu^ o grande Lima Barreto, como seria de lei …
Fraternas SRN
FLAMENGO SEMPRE
Enfim um grande texto.
(e olha que já contentaria com um texto tão-somente pois ter apenas vídeos com gritos e palavrões não é programa para o qual anseio ser chamado)
SRN
Grande texto ou texto grande, amigo Fred? KKK. Valeu a força, digo, a raça.
Belíssimo texto. O Flamengo me lembra aquele ditado que diz “Quem nunca comeu melado, quando come, se lambuza”. Nunca tivemos dinheiro para gastar como neste ano, mas me parece que estamos gastando mal. O clube deveria propor a sua filosofia, e não o deixar que cada técnico que chega implementar a sua, e por aí vai… Que esta nova contratação tenha como base alguma filosofia acordada entre clube e treinador. Que não seja só um treinador para calar a boca de uma parte da torcida, a do Twitter…
Eu continuo achando que Renato Gaúcho tem a cara do Flamengo, embora o Tite seja uma excelente opção para depois da Copa da Rússia. Este último tenho certeza que gostaria de pegar o Flamengo com este plantel e dinheiro no bolso.
SRN