Amigo Arón,
Soy Narciso Doval, e por pouco não cruzamos nossas cabeleiras por aí. Cantei para subirse exatos cinco meses antes de você nascer. Fui juntamente com a delegación rubro-negra brindar uma bela vitória do Flamengo em Buenos Aires, em 1991, e na saída do restaurante meu coração parou. Tirando isso, atuação perfeita do Júnior, meu velho cupincha. Estudiantes 0, Flamengo 2, gols de Zinho e Gaúcho, na antiga Supercopa.
Arón, antes de tudo por favor avise ao povo que Silva, El Batuta, chegou numa boa por aqui. O samba para recebê-lo foi histórico. A ponto de o Quino, o desenhista que subiu no mesmo cometa, não resistir e ficar com a gente, tomando unas y otras. Aliás, está subindo gente para caramba, tentem dar uma segurada aí.
O motivo desta carta é para te saudar, pois soube pelo Armando Nogueira que você está perto de me ultrapassar em quantidade de partidas pelo Flamengo. Caro Arón, 263 juegos é coisa para cacete, e dou meus sinceros parabéns. Agora tu só precisa fazer mais uns 70 gols para empatarmos, hein, ja ja ja…
Hablando sério agora, vesti rubro-negro de 1969 a 1975, e eram outros tempos. Cá entre nós, eu mesmo duvido que duraria tanto na Gávea se fosse hoje. Eu curtia treinar, não era esse loco que espalharam (era só a cara de doido), mas a verdade é que eu curtia mesmo era a praia e as garotas de Ipanema. Será que eu duraria 263 juegos atualmente, com los corneteiros de internet? Sem falar que vocês hoje jogam com um biquíni, uma espécie de porta-pechos. Aquilo não incomoda não, muchacho?
Mas a vida era boa. Eu dava meu mergulhito meio-dia, jogava minhas três partidas de voleibol e voltava caminhando pela areia. Pura saúde, nada de noitadas, cigarro ou bebida. Namoradas, eu tinha umas 55. O Júnior, o Casco (Capacete no Brasil) se divertia comigo, pois sempre que a gente se concentrava eu surgia com a roupa do corpo, uma sunga na mão e uma escova de dente no bolso. A pasta eu sufocava dele, ou do galinho Zico. Irresponsável? Maluco? Eu prefiro despojado.
Acompanhamos daqui o sorteio de las Oitavas de Libertadores 2020, e vibrei com o resultado. Conheço bem o Racing, rival traiçoeiro dos meus grandes tempos no San Lorenzo. Mas me escute: atuei anos no Brasil, joguei pela seleção argentina também, e sempre disse que não há ninguém mais malicioso e inteligente que o jogador brasileiro. Não caiam nessa de que argentino é mais malandro. Se fossem, vocês não estavam no pôster da Libertadores 2019, cierto? Com a tática certa, tempo de treino e sangre frio, vocês têm tudo para avançar.
Não sei se você reparou, Arón, mas saiba o seguinte: você faz parte do primeiro time do Flamengo com um elenco de verdade. Não um bom time, um elenco completo. Um banco com jugadores prontos, tão bons quanto os titulares. É a primeira geração do Flamengo que tem esse luxo. Antes, a pindaíba só permitia um banco no máximo razoável, e tome prata da casa. E o que isso quer dizer? Para o Campeonato Brasileiro, é um senhor trunfo. Para o mata-mata da Libertadores… Nem tanto.
Você ainda lembra o time do Flamengo de 1983, o primeiro e único da história rubro-negra a segurar a pressão e bisar o título brasileiro? O Capita Carlos Alberto Torres, aqui, não cansa de listar de cor, eram os seus comandandos: Raul, Leandro, Marinho, Figueiredo e Júnior; Vitor, Adílio, Zico e Elder; Baltazar e Júlio César. Na final com o Santos, lembra quem precisou entrar, tamanha a falta de banco? Ele, novinho, Bebeto.
Arón, vocês estão com o queso e o cuchillo na mão para igular, ou quem sabe superar esse timaço de 1983. O ataque, ao menos, é muito melhor. Vão ter a valentia necessária?
Acham que eu era maluco, pois tinha um carro laranja e só andava de sunga, mas a verdade é que para mim só uma coisa importava na vida: terminar a jogada com ela dentro do gol. Bons treinadores levam a finais, mas só a vontade do jogador conquista taças, Arón. E foi assim que virei ídolo da nação, por minha disposición para morrer em campo, se fosse preciso.
Hoje entendo que eu não jogava futebol, eu sentia o futebol. No Maracanã ou no Viejo Gasometro, eu partia para cima de acordo com o som do estádio. Se a arquibancada rival se calava, eu sentia que era a hora. E lá ia eu pela ponta direita, insano. Se minha torcida cantava alto, eu corria o triplo. Ouvi o que você falou no ouvido do Lincoln, outro dia, e percebi enfim que você encontrou seu papel. O de ensinar, motivar e liderar, pela experiência.
Eu não era bom de papinho, o Zico, mais novo, é que me dava conselhos, mas sempre dei o melhor dos exemplos em campo. Que era jamais aceitar que a bola estava perdida. Pegou la visión?
Arón, faço votos que seja feliz, e quebre todos os recordes com o Manto. Porém, caso sonhe em ingressar na lista dos dez jogadores com mais partidas no Flamengo, lembre-se que vai precisar atingir os 500 jogos. La lista? Júnior, Zico, Adílio, Jordan, Andrade, Cantareli, Léo Moura, Carlinhos, Liminha e Jadir. Tienes la valentía?
Hasta la victoria siempre,
Narciso Horacio Doval
PS: Barbosa está loco com o garoto Hugo Neneca. Disse que será o segundo maior goleiro negro da história do Brasil, ja ja ja. Gran Barbosa.
PPS: Outro dia o maestro Fleitas Solich e o craque Rubens discutiram feio por conta do Vitinho. O treinador paraguaio o acha útil, mas pouco ousado, carente de criatividade. O “Dr. Rúbis” então pulou: “Ah, mas naquele 4-2-4 seu quando eu arriscava uns dribles você me tirava, né?”. Senhora treta.
PPPS: Fui jogar cartas com Carlinhos e Valido, e perguntei sobre o Michael e suas arrancadas, que lembram as minhas. Disse o Carlinhos: “Vai dar alegrias. Só está sem confiança. Além do mais, perde tempo ao chutar, olhando o chão e a bola, e o defensor bloqueia. Valido emendou: “Ele está ansioso para fazer gols como em 2019. É simples. Basta alguém chegar nele: ô Michael, tu só vai ganhar bicho agora por assistência. Gol não conta. E solta o garoto na pista.”
Filipe Luis é um excelente apoiador e um marcador mediano que não tem mais oxigênio para correr todo o campo atrás de ponteiro velocista durante 90 minutos.
Ramom tem fôlego para isso.. Então, a lógica é Ramom na lateral e Filipe Luis como meia armador, alternando com Arrascaeta.
Domenec gosta de testar múltiplas combinações, está faltando esta.
Dunlop voando!
Que maravilha poder ler e saborear texto tão lindo,lúdico e que atiça ainda mais minha alma Flamenga.Parabéns Dunlop,primeiro por não deixar de lembrar dos nossos ídolos e segundo por nos fazer refletir sobre o quão importante pode ser qualquer jogador que vista o manto.Torço pra que o Arão seja leitor daqui e siga o conselho do gringo hermano,ou caso ele não acredite em psicografia,que ao menos te dê os créditos.SRN sempre com muita P&A.
SRN! Foi meu primeiro ídolo, seguido de Zanata, argentino carioca e rubro negro até a morte! Saudades desse gringo, me vieram lágrimas!
O único senão foi ter ido jogar pelo Fluminense, nao fosse esse incidente poderia ser o autêntico “Deus da Raça” rubro negro.
Maravilhoso, obrigado pelo belíssimo texto, principalmente que vi Doval jogar
Belíssimo e evocativo artigo.
Chamou-me a atenção, entre muitas citações, o ano da despedida rubro-negra do Doval – 1975.
Porra, parece-me ontem e já se foram 45 anos.
O meu amigo, colega e grande jogador amador, Francisco Horta, passou a perna em nós, naquele ano.
Inventou um tal de troca-troca e acabou levando o Doval.
Um ídolo argentino do Flamengo.
Amado pela torcida, retribuia não só com gols, mas, acima de tudo, por um espírito de luta insuperável.
Diziam que era chegado ao maluco, mas, para nós, rubro-negros, o que interessava era o craque e seu inseparável empenho.
SRN
FLAMENGO SEMPRE
PS – a discussão celestial entre o Feiticeiro e o Doutor não foram tão famosas, enquanto terrenas, do que a do Doval com o técnico Yustrich, que levou o gringo, em 1971, a retornar momentaneamente para a Argentina.
PS 2 – ainda ontem, secundando a comentarista Vãnia, escrevi contra o apelido Neneca, lembrando até um goleiro nosso do mesmo apelido, que jogou em 1991. Por um extremo acaso, creio que foi o nosso goleiro no jogo fatídico. Com certeza, pois assisti, em Caio Martins, atuou em um jogo da aludida Copa, que ganhamos, mas acabamos perdendo nos pênaltis, exatamente para o clube argentino que levou Doval à fama, o time do nosso querido Papa Francisco, o San Lorenzo.
PS 3 – outra coincidência, em relação ao noticiário esportivo/policial do momento, Doval, antes de vir para o Flamengo, teve um período longo de suspensão, em razão de um quiproquó aéreo com uma aeromoça, quando estava com a seleção argentina. Era um tremendo mulherengo.
Sensacional, Dunlop. Saudades desse Gringo.
SRN. Pra cima deles, Flamengo!
Caramba, Dunlop, que coisa linda foi isso que você escreveu aqui?
Vou até tirar minha bunda da cadeira para terminar esse agradecimento de pé: muito obrigado por prestigiar nosso presente e passado sem se limitar a comparações equivocadas.
Que texto, fera!
SRN
Vai pra cima deles, Mengooo
Caralho, Dunlop, que beleza!
Vi muito El Gringo em campo com o manto, e fiz pra ele um dos 110 choros rubro-negros.
SRN
Mauricio, com esse sobrenome e fez choro só pode ser parente do fantástico Altamiro que meu pai não cansava de ouvir e foi com ele que aprendi a sentir no choro o melhor da música brasileira de todos os tempos. Sou jovem mas saudosista de um passado que não tive. Como é que posso ouvir os teus choros?