Esta semana o mundo e a Muda perderam o bardo Aldir Blanc, tremendo compositor. Comovido como o diabo (apud Drummond), me vi então tomado por um impulso insano: vestir por um dia, em tributo ao mestre vascaíno, uma camisa cruzmaltina. Por não encontrar nenhuma em casa acabei por adiar o desvario, mas só de me imaginar daquele jeito me peguei, ajoelhado num canto do quarto, beijando e implorando perdão ao Manto Sagrado rubro-negro. O pior foi explicar a cena para a patroa, imaginem a desculpa que inventei.
Assim, numa tentativa de desagravo ao símbolo maior do nosso Flamengo, e também para espantar a tristeza pela partida do nosso “Proust de Vila Isabel”, decidi lascar aqui, de bate-pronto, uma breve história do Manto preto e vermelho. Só usem em teses de mestrado e pesquisa escolar se o professor tiver bom humor. Para um estudo aprofundado, bebam na verdadeira fonte: o livro da pesquisadora Ana Carolina Malachine, “A evolução do uniforme de futebol do Clube de Regatas do Flamengo”, que alguém me presenteou exatamente como ela escreveu: no amor.
*** Uma história do uniforme do Flamengo ***
* 1857: No princípio era o caos. Os gramados eram enlameados. Pelas regras, vagabundo só podia tocar a bola para trás, o que facilitava muito a marcação do impedimento: estavam todos impedidos, sempre. Uniformes? Você deve estar brincando. Colegas da Trivela escarafuncharam uma regra do futebol inglês daquele ano: “Cada jogador deve providenciar para si um chapéu de flanela, ou azul escuro ou vermelho, e cada time deve usar uma das cores”. Imaginou?
– Hello sir. What is isso na sua cabeça?
– Indeed. Perdi meu chapéu de flanela, mister…
– OK, mas um sombrero? Get out. Out!
* 1870: Surgem os primeiros uniformes, ufa! Deviam ser encomendados pelos jogadores junto a seus alfaiates ingleses favoritos, ou serem feitos por mamãe. A cor de camisa mais comum era a branca, pelo pano mais barato e fácil de obter. A tradição foi em frente e hoje quase todo time tem um segundo uniforme branco. Raros bonitos como o do Flamengo, claro.
* 1888: Clubes ingleses começam a cobrar ingresso, como você já deve ter visto na série “The English Game”, na Netflix. Com público pagante, passaram a dar mais importância para que os times fossem facilmente diferenciados. O jogo melhora bastante, pois os atletas começam a saber para quem passar, aleluia. Surgem então, para contrastar com os uniformes bonitos, as camisas feionas que você conhece bem.
* 1895: Jovens remadores fundam um grupo de regatas. As cores são logo aclamadas, provavelmente pela turma totalmente mamada vindo do Lamas: azul e dourado! Para piorar, escrevia-se “doirado”. A justificativa oficial: ah não, era o azul da Baía da Guanabara, o ouro das riquezas brasileiras… Sei, pinguços!
* 1896: A ressaca termina e os fundadores voltam à razão. “Rapeize, bora alegar que os panos ouro e azul desbotam, ou que o tecido inglês é muito caro? Bora de vermelho e preto!” Curiosidade: as cores rubro-negras constam, de fato, já na primeira bandeira do clube, só que no cantinho, em dois remos entrelaçados. Ou seja, a bandeira do Mengo tinha quatro cores: preto, vermelho, azul e doira… digo, dourado.
* 1897: O primeiro uniforme descrito no estatuto do Flamengo, traje de nosso valentes remadores, é digno de nota: “Camisa de meia de seda, bonet preto, calça de brim branco, cinto branco e sapato de lona (…); o segundo será: camisa de meia preta com duas âncoras encarnadas cruzadas, bonet preto, cinto branco e calção preto ou calça branca, à vontade.” O uniforme é então simplificado para camisetas com listras horizontais – pretas e vermelhas, simples e lindão.
* 1912: Nasce o futebol rubro-negro, e o clube se divide. A história registra que nossos remadores, enciumados ou talvez achando-se os legítimos herdeiros do nauta grego Odisseu, não viram com bons olhos que os ludopédicos chutadores de bola usassem uniforme igual aos deles. (Minha tese é mais singela: a rouparia era uma zona, e eles tinham receio de chegar para remar e não ter camisa limpa.) Entra em cena mais um herói anônimo rubro-negro: o alfaiate ou a tia costureira que bolou a camisa com quatro quadrantes de pano, a mítica armadura apelidada de, tan-ran!, Papagaio de Vintém (por outro anônimo sacana e genial, por sinal). Se você souber quem criou a camisa ou o apelido, não me conte. Prefiro imaginar o próprio Deus, barbudão com seu dedão em riste, a apontar para a praia do Flamengo e dar vida à sagrada camisa.
* 1914: Após derrota no Carioca de 1912 (campeão: Paisandu) e novamente em 1913 (campeão: América), nosso xerifão Píndaro entrou no vestiário de cabeça inchada e bradou: “Nosso time é o melhor, só perdemos por causa da camisa. Aquele quadriculado é feio, só podia dar azar”. Píndaro, o primeiro herege! O primeiro flamengo a chamar de feia uma camisa do Flamengo, blasfêmia! O papo de pé-frio pega nos bares e botequins e surge (esconjuro!) uma camisa flamenga de três cores: listrada em preto, vermelho e branco. A famigerada Cobra-Coral. Cheio do veneno, o Flamengo é enfim campeão nos gramados em 1914.
* 1916: A Guerra Mundial está no ápice na Europa. Como a camisa Cobra-Coral lembrava muito a bandeira alemã, inimiga dos aliados, os dirigentes rubro-negros optam por matar qualquer mal-entendido na raiz. Era época em que o fascismo pegava mal… Sob o presidente rubro-negro Raul Ferreira Serpa, os remadores topam unificar o Manto Sagrado e permitir o uso da camisa com listras rubro e negras por todos os desportistas. Imaginem a festa naquela noite! A estreia da mítica camisa, agora com o CRF branquinho no peito, se dá no dia 4 de junho de 1916, num amistoso. Placar: Flamengo 3, São Bento 1. Mengoooo!
* 1917: Fuzuê muito doido na Rússia, que vai dar origem, no futuro, a craques como Yuri, Alexei e o revolucionário Marx Lenin. Além, claro, de influenciar o nome do nosso goleirão Czar.
* 1933: Fiquemos pela Europa: em 29 de abril, a Copa da Inglaterra inova, com uma final com jogadores com números às costas: Everton x Manchester City! Cada time usava seus números – uma equipe usou de 1 a 11, o outro time de 12 a 22. A elite britânica reagiu: “Número nas costas? This is coisa de presidiários!” Algum gaiato sugeriu então que os números fossem colados nas camisas dos dirigentes, mas a ideia não pegou e hoje temos aí o futebol brasileiro.
* 1938: O húngaro Izidor “Dori” Kürschner, célebre treinador do Flamengo, sugere a criação de um segundo uniforme, branco, para os jogos noturnos ou mal iluminados. Ninguém o entende em húngaro, e ele chama um tradutor. O Flamengo, naquele ano, passa assim a ser o primeiro time brasileiro com uniforme titular e reserva, e os outros nos imitam e vêm atrás. Novidade…
* 1942: Um maluco total chamado Jaime de Carvalho decide ir de camisa do time para as arquibancadas, deixando o terno em casa. Todos se espantam! Na certa o Jaime esperava ser chamado para jogar, o que não acontece. Uma legião de flamengos decide segui-lo, com bumbos e cornetas e caminhadas barulhentas até o estádio. Nasciam as primeiras torcidas organizadas, os fogos de artifício nos estádios e os caras que cantam tudo errado na arquiba.
* 1950: Os números nas camisas enfim se tornam obrigatórios, a partir da Copa de 1950. O Flamengo faz sua estreia em jogo-treino no Maracanã, que momento! Nascem então, no mesmo dia, a camisa 10 do Flamengo, a “mística da camisa 10” e o lugar-comum da imprensa esportiva.
* 1955: Nelson Rodrigues, tricolor mas esperto, percebe: “Para qualquer um, a camisa vale tanto quanto uma gravata. Não para o Flamengo. Para o Flamengo a camisa é tudo. Já tem acontecido várias vezes o seguinte:- quando o time não dá nada, a camisa é içada, desfraldada, por invisíveis mãos. Adversários, juízes, bandeirinhas, tremem, então, intimidados, acovardados, batidos.” Amém.
* Década de 1970: Lojas com visão começam a vender camisas de futebol para o torcedor, veja você! No Rio de Janeiro, a mais lembrada é a Mariu’s Sport, no Méier.
* 1980: O Manto, antes produzido por diversas camisarias, passa a ser peça exclusiva da empresa Adidas. A marca já estreia com o nosso primeiro troféu brasileiro. Nasce, assim, a pirataria.
* 1981: O Manto Sagrado assombra o mundo: Buuuu… Adílio, no livro de Ana Carolina Malachine, revela o sentimento verdadeiro de trajar aquelas camisas encharcadas de algodão furadinho: “Acham que eu corria muito por ser bom jogador? Nada, eu corria rápido para tentar pegar um vento nos furinhos da camisa, para dar uma refrescada!”.
* 1984: Surge na Gávea o primeiro patrocínio no uniforme do Flamengo: a marca Lub… Ah, quer aparecer aqui de graça? Aqui ó.
* 1994: Os nomes de jogadores começam a estampar camisas pelo mundo, a partir da Copa de 1994. O Flamengo mais uma vez havia sido pioneiro: no Manto de 1981, na final com o Liverpool, já constava o nome dos campeões mundiais.
* 1995: O Flamengo cria, na certa para disfarçar a bagunça no departamento de futebol, um terceiro uniforme. Surge uma enxurrada de processos por danos à retina, por parte de torcedores que olharam por três segundo para aquela camisa azul-abadá. Para celebrar nosso centenário, o time volta a jogar com a famigerada Papagaio de Vintém, inclusive num jogão entre Flamengo e Uruguai. Após cinco empates e quatro derrotas, a camisa é novamente aposentada. Dá hoje essa camisa na mão da turma do Jesus para ver se não ganhamos tudo! Rá!
* 2000: Pela primeira vez, as letras CRF deixam o peito do Manto, substituídas pelo nosso escudinho. É a linda camisa do Tri do Pet, que completa 20 anos. Como era da Nike, a Adidas disfarça e não relança.
* 2002: O Flamengo adota de vez o nome dos atletas nas costas da camisa. Começa então a moda de escreverem qualquer troço no Manto Sagrado, coisas como “Irineu” e “Josiel”.
* 2004: O habilidoso meia Felipe “Playboy” marca um golaço pelo Flamengo, ajuda a salvar o time do rebaixamento e celebra largando a camisa 10 do Mengo no gramado. O gesto gera uma das mais hilárias brigas ao vivo da história da TV, entre Renato Mauricio Prado e Galvão Bueno no Sportv. Coisa boa a faixa das reprises do canal não mostra, né? Dói a barriga só de lembrar o quanto eu ria.
* 2012: Um roubo cinematográfico ocorre na sede da Gávea: um gordinho sai da loja oficial com 40 itens, entre camisas e roupas infantis. Anos depois, o meliante é localizado numa cadeia do Paraguai. É irmão, aqui se faz, Assis se paga (ui!).
* 2013: O músico Moacyr Luz escreve memorável crônica no jornal “O Dia” sobre uma partida com bola laranja e preta e camisas de cores estranhas. A crônica termina assim: “Controle remoto nas mãos, descubro que estou torcendo pro time errado! O Flamengo veste azul e amarelo, cores de homenagem, sei lá. Ah, minhas referências.”
* 2019: A Adidas, já de volta ao clube, lança então uma das camisas mais exóticas da nossa história, quase roxa-negra. De roxo mesmo, o rolo compressor de Jorge Jesus passa por cima de geral. Que ano! A camisa torna-se a mais vendida da história do clube, esgotada em todas as prateleiras do Oiapoque ao Chuí. Vamos dar um desconto para a Adidas, que só veste o Flamengo desde 1980 e não conhecia bem seu público…
* 2020: Além de leves alterações nas listras, um novo modelo de Manto Sagrado é estudado: uma camisa de força, em vermelho e preto, para dirigentes, atletas e para a comissão técnica que falar em volta ao futebol em pleno surto do coronavírus, que já ceifou 10 mil vidas no Brasil. Flamengo até morrer sim, minha gente, mas calma lá!
O Manto do esquadrão de 2019. Foto: Divulgação/Flamengo
Dunlop, PQP! Show de bola. Foi a melhor coleção de acertos e tiradas espetaculares que vc já fez nesse espaço.
Saúde, meu camarada!
Amigo Carrilho, ando lendo sem parar o “Porta de Tinturaria”, seleção hilária das crônicas de Aldir. Aproveite para ler o “Proust de Vila Isabel”, nas palavras do Jaguar. Aquilo sim é craque!
Caraca, que honra ter meu livro citado e tido como fonte dessa incrível crônica. Fiquei feliz pra caramba!
Muitíssimo obrigada, de todo o coração, me emocionei!!
Siga-me em meu insta do Flamengo @vestirubronegro, em breve terão novidades sobre meu livro lá!
gostei bastante do texto…..
quem não tem uma boa historia com o manto sagrado ????
uma vez indo pro maracanã acompanhado de dois turistas da noruega,eu tinha somente dois mantos em casa e eramos três,o que fazer já que a hora do jogo se aproximava.
estavamos em copacabana e vi um homem com um daquelas carroças que leva jornais e ele estava com uma camisa do mengão.
ofereci 10 reais e comprei a camisa.
isso foi lá pelo ano 2000,portanto uma boa grana para uma camisa toda suada e fedida.
o gringo vestiu o manto e ficou amarradão.
SRN !!!
Excelente!!!
Só fascismo em 1916 que não rola. O movimento só foi criado em 1922.
Mas valeu pela mensagem que quis transmitir.
Saudações
Pô Trooper, como cantava o tenor Latino, “você já foi mais humilde”.
Claro que a coisa engrossa apenas nos gloriosos anos 1920, lindamente retratados em “O grande Gatsby” e nesse último livraço do Ruy Castro, imperdíveis ambos.
Mas dá uma lida lá depois nos seus alfarrábios:
“O fascismo italiano resulta dessa divisão, primeiro com Angelo Oliviero Olivetti formando um pró-intervencionismo fasci chamado Fasci d’Azione Internazionalista em outubro de 1914.[184] Benito Mussolini após ser expulso de sua posição como editor-chefe do jornal Avanti! do PSI por sua postura pró-Entente, aderiu à causa intervencionista em um fasci separado.[186] O termo “fascismo” foi usado pela primeira vez em 1915 por membros do movimento de Mussolini, o Fasci d’Azione Rivoluzionaria.”
Um abraço antifascista para todos.
Perfeito, Dunlop!
Teu texto é muito bom, alias, Muita informaçao e coisas super engraçadas!
Abraço antifascista rubro-negro !
Adorei cada tirada magistral deste texto idem.Sobre a Papagaio de Vintém,de 1995,uma pequena história particular;Nesse ano,eu com meus 18 anos(saudades) e morando ainda na minha cidade natal,com seus poucos mais de 50 mil habitantes,Campo Belo MG.Me deparei com um problemaço,na única loja de vestimentas esportivas local,não tinham a comemorativa camisa,ops manto.Teria que tentar encontrá-la em cidades maiores da região.Como sou filho de caminhoneiro,oportunidades vez ou outra apareciam de viajar com meu velho,e lá ia eu,em busca do Manto Sagrado Centenário(até parece nome de filme do Indiana Jones).Mas como as viagens eram a trabalho nem sempre eu conseguia um tempo pra procurá-la.Depois de algumas cidades,sem exito,eis que numa cidade ainda menor do que a minha,finalmente dei “sorte”.E aí vem a explicação da palavra sorte estar entre aspas,acabei por encontrar o uniforme comemorativo,mas só tinham tais camisas no tamanho P e M,e eu já naquela época trajava G ou GG pra ficar mais “confortável”.Daí num rompante comprei o Manto mesmo sabendo que ficaria ridículo trajando o modelito baby look,mas que então eu me esforçaria pra que muito em breve eu pudesse entrar em forma e usar a bendita camisa.No fim aconteceu o inevitável,venceu o lado gordo da força e hoje o tal manto está,até hoje intocado e virgem de uso no meu guarda-roupas.
HAHHAA… E em que cidade você achou a Papagaio? Eu acho que eles têm de vender sempre esta camisa, é lendária demais. Abraços e aproveite a quarentena para perder uns quilinhos!
Achei a camisa justamente na cidade onde moro atualmente,Arcos,também em MG.Quanto a perder uns quilinhos,já desisti e me entreguei aos prazeres gastronômicos,sem dor na consciência.Coisas de um gordo preguiçoso,mas feliz.SRN e muita P&A.
Em pé: Chamorro, Pavão, Jadir, não sei, Tomires e Jordan;
Agachados: Joel, Duca, Evaristo, Paulinho(?) e Babá.
Acertei? Quem é o “não sei”? e o Paulinho(?)
Índio? Leone? Benitez?
O “não sei” é o Milton Copolillo.
E o Paulinho(?), tá certo?
O tal “não sei” é o zagueiro Milton Copollillo.