Meio sem querer, sem se comprometer ou mesmo parecer estar muito interessado, o Flamengo conquistou a sua 23ª Taça Guanabara. Mais um souvenir a assinalar a escandalosa inutilidade do Campeonato Carioca e sua insignificância diante das reais grandezas do mundo. Mas o Flamengo não era nem besta de ousar perdê-la. A torcida torce o nariz, desdenha do baixo valor da conquista, mas finda a batalha se permite erguer a taça da vitória e, quando encontra algum de bobeira, zoar os adversários sobrepujados.
É um apego irracional à impermanência do mundo material e, ao mesmo tempo, uma contradição com a ideia de que Taças Guanabaras nada valem. Mas no caso o preço da coerência seria pago com a moeda da covardia. Só aqueles que tem o poder, a capacidade fazer algo, é que podem realmente renunciar, quem não tem, deve primeiro conquistar esse poder. Não se deve entrar numa batalha desejando ou repudiando os frutos da ação. Só aquele que permanece sereno e imperturbável diante do prazer e da dor alcança a libertação. Não se deixem levar pelas aparências, o sentido das batalhas que o Flamengo luta não são os títulos.
Como qualquer outro torcedor de qualquer outro time do mundo, o torcedor do Flamengo, acima de todas as outras coisas, inclusive as publicamente declaradas, busca a autorrealização. Não existe só uma definição para o termo autorrealização, no Aurélio, pai eterno, encontramos “alcançar seu objetivo ou ideal”. O Merrian Webster, o pai dos burros na gringa, também é conciso: “Realização por si próprio das possibilidades de caráter ou personalidade.”
Os gregos da antiga davam uma extraordinária importância à autorrealização, que para eles significava viver de acordo com a natureza. Aristóteles, que era consagradamente foda, disse que todos os homens estão de acordo em perseguir a Eudaimonia, o estado de ser habitado por um bom daemon (um bom gênio), mas em desacordo sobre o que ela consiste. Mas por via das dúvidas deixou para os pósteros umas boas dicas de como identificar a bandida caso fosse encontrada.
A autorrealização é um bem perfeito, que se busca por si mesmo e não por outro superior a ele, ou seja, não é transcendente. Que ela é boa por si só, para que quem o possua não queira mais nada. Ela se alcança com o exercício da atividade mais típica do ser humano, de ser homem, segundo a virtude mais excelente. Ela é alcançada com atividade contínua.
Os ensinamentos dos gregos, dos gregos da escola estoica em especial, estão na base do tomismo de São Tomás de Aquino. Para o Doutor da Igreja a autorrealização é como uma necessidade existencial, um postulado básico do desenvolvimento psicológico da pessoa humana. Até o bom velhinho Marx pitacou nesse campo do conhecimento. Na tradição marxista a autorrealização é a efetivação e externalização plenas e livres dos poderes e capacidades do indivíduo. A ideia de que o indivíduo pode realizar plenamente todos os poderes e capacidades que tem é um dos elementos mais utópicos no pensamento de Marx.
Os indianos, que são ainda mais utópicos que Marx e mais da antiga que os gregos das antigas, consideravam a autorrealização a porta de entrada para a felicidade eterna. Saber quem se é é autorrealização. Se alguém realiza seu próprio Eu, então ele próprio é uma Alma Suprema Absoluta (Parmatma). O Bagavahd-Gita, poema épico que faz parte do Mahabharata, é o relato do diálogo entre o príncipe-guerreiro Arjuna e o Senhor Krishna na Guerra de Kurukshetra. A Guerra do Kurukshetra entre os Pândavas e os Káuravas rolou mesmo, 3 mil anos antes da Era Cristã, mas o Gita é uma alegoria para a eterna batalha interna e cotidiana para encontrar a autorrealização.
Um dos ensinamentos centrais do Senhor Krishna ao arqueiro Arjuna é: “Não cedas a fraqueza que de nada serve. Enche-te de coragem contra teus inimigos e sê o que realmente és! Aceitando prazer e dor, ganho e perda, vitória e derrota com a mesma serenidade de espírito, entra na peleja e não perderás! Os sentidos descontrolados, ó Arjuna, arrebatam com violência até mesmo a mente daquele que tem discernimento e se esforça em controlá-los. Aquele que dominou os sentidos e a mente, que é capaz de não rejeitar e nem se apegar a nada, alcançou a sabedoria perfeita.
A distância incalculável entre a rejeição e o apego está na raiz da injustificada permanência das Taças Guanabaras entre os nossos mais inúteis objetos de desejo. A única maneira do Flamengo provar que elas não valem nada é conquistá-la sempre, banalizando o fruto do próprio esforço e abrindo a porta para que se manifeste em nós a ambição por tudo aquilo que ainda não possuímos.
A cada Taça Guanabara que empilhamos nos almoxarifados da Gávea são dois passos para trás que damos na estrada rumo à autorrealização. Todos os esforços para sermos humildes e desapegados são baldados. Vence o Flamengo, triunfa o ego.
Claro está que a autorrealização vermelha e preta não se medirá pelos títulos conquistados, mas pelo quão inteiros lutamos cada guerra. Hoje, a inteireza da alma rubro-negra não está mais no Carioca, mas na Libertadores. É nesse campo de batalha que o Flamengo tem condições de mostrar que alcançou o discernimento e mantém os sentidos sobre controle.
Ao mesmo tempo, a Libertadores é também onde nós podemos nos conceder a suprema indulgência de perder o controle e deixar que os sentidos nos arrebatem, explanando para o mundo o nosso apego ao mundo material. Pra cima deles, Flamengo. Esquece essas porra de Carioca. O TRI da Libertadores é o único caminho para Tóquio.
Mengão Sempre
Tenho que deixar de lado minha implicância com o baba-ovismo e aplaudir de pé. What a fucking chronic!
Ao lado de onde moro existe um bar que transmite pela gatonet todos os possíveis jogos de futebol. Desafiando a pandemia da covid-19, a aglomeração é constante.
Pois bem, quando o Flamengo perdeu para o Fluminense, a comemoração no bar foi tanta que parecia final de copa do mundo. Quando perdemos para o Vasco foi ensurdecedora a barulheira.
Eu tenho um problema em relação a esse bar. O sinal da minha televisão chega uns quatro segundos depois do sinal dele. Assim, as vezes para mim Arrascaeta ainda domina a bola no meio de campo e a gritaria de gol do Flamengo já chega aos meus ouvidos.
Ora, acreditem se quiser, mas ao fim do jogo de sábado, ao conquistarmos a Taça Guanabara, o silêncio no bar era de cemitério. Da minha varanda, olhei para baixo e vi que o bar estava completamente lotado de torcedores.
Conclusão: essa conquista pouco representou para a maioria dos torcedores do Flamengo. Entretanto, a perda seria a autorrealização da torcida arco-íris. Essa turma vive pelo prazer da derrota do Flamengo. Trago abaixo um bom artigo sobre “O prazer perante a desgraça alheia”, no esporte.
https://comunicacaoeesporte.com/2018/08/14/o-prazer-perante-a-desgraca-alheia/
E, como disse o meu amigo Carlos Moraes, efetivamente essa Taça Guanabara serviu muito mais pela magnífica lição do Arthur sobre autorrealização, do que pela conquista do Flamengo.
Porém, independentemente da significância da competição, o Flamengo tem que ganhar tudo. Aliás, com todas as suas imperfeições que o nosso time ainda possui, de uma coisa ninguém pode criticar: esse elenco está sempre jogando para ganhar tudo. Não deixa por menos.
Sempre Flamengo.
Ola a todos que estao fechados com o Fla! Apos a conquista da 23° Taça Guanabara, o comenrarista Mauro Cezar publicou um video falando do extraordinario feito do Flamengo em conquistar a 11° taça em 2 anos e 24 dias. Porem, os feitos do atual elenco do time sao muitos mais profundos: no periodo que vai da final da Copa do Brasil 2017 (2° jogo – 27/set) a decisao da Recopa Sulamericana 2020 (2° jogo – 26/fev), o Flamengo participou de todas as finais possiveis para um time do RJ e tambem do pais, ficando no minimo em 2° lugar. Nesse calculo, nao se contabilizou a pouco expressiva Copa Suruga Bank porque é jogo unico e, saindo da America do Sul, so o campeao da Sula participa. Como adendo, ainda houve a conquista da Florida Cup, no comeco de 2019. Com excecao a tres campeonatos (Mundial, Copa do Brasil e Sulamericana) todos os demais torneios possiveis foram conquistados nesse incrivel periodo de 2 anos e cinco meses! SRN de Bayeux, PB.
Upa, upa !
Finalmente entendi para que serve a Taça Guanabara.
Para uma verdadeira aula de autorrealização.
Brilhante, como poucas !
SRN, em bussca da autorrealização.
FLAMENGO SEMPRE
Artur já era diferenciado desde os longínquos tempos dos “Blogs dos Torcedores” no antigo GE. Eu lia o texto dos blogueiros dos outros times e a diferença era brutal. Alguns por sinal eram até bem grosseiros quando tentavam ser engraçados. Artur sempre mesclou irreverência e inteligência nas crônicas “urublogianas”, nas vitórias ou nas derrotas. Textos como esse que ele nos ofereceu agora só comprovam o que estou falando.
KKKK, muito boa!
“A única maneira do Flamengo provar que elas não valem nada é conquistá-la sempre, banalizando o fruto do próprio esforço (…)”
Kkkkkk !
Parabens e obrigado pela conduçao nessa viagem !
Estava com saudades desse tipo de texto que sempre me impressionou e me ensinou também. Foda! Foi o melhor do ano até aqui e espero que venham mais desse nível junto com novas conquistas do mengão!
SRN
Um primor. O seu jeito de conduzir o texto é muito difícil de fazer. Eu tento, um dia chego lá.