Certa feita, num botequim desaparecido há décadas no Rio de Janeiro, o garçom conhecedor da alma humana abordou o cliente:
– Preocupado, doutor?
O boêmio, pensativo entre as mesas do Grande de Espanha – era este o nome do bar – rebateu:
– E eu lá sou homem de preocupação? Eu sou um pobre-diabo!
Lembrei do episódio, sei lá por que, ao assistir ao vídeo do Michael, o viral e pungente vídeo do Michael, quando ele recapitulou, para o entrevistador Rafael Cotta, uma das conversas mais tocantes da história do Flamengo.
Michael Richard Delgado de Oliveira nasceu para ser, também ele, um pobre-diabo. Quando criança, só queria saber de matar aula para bater sua bolinha. Conseguiu assim ser “convidado a sair” de todas as escolas de sua cidade, Poxoréu (ora vamos, abra um Atlas). Aos 14 anos, o vício venceu o futebol e Michael mergulhou fundo nas drogas – foi alvo de seis tentativas de morte por conta de dívidas.
A vida-louca o fez zarpar em 2012 para a casa das tias, em Goiânia. Passou por quatro peneiras de diferentes clubes, e foi despojado em todas elas. Não era a pepita que buscavam. Para tirar algum, jogava futebol a 20 reais por partida, na várzea. Num dia de bela atuação, conseguiu cem mangos – para tal, precisou atuar em cinco jogos seguidos.
Em 2015, Michael encontrou seu estilo: o moleque peladeiro enfim conseguiu ser contratado, pelo Monte Cristo da terceira divisão do Campeonato Goiano. Dali, ele acendeu: foi para o Goianésia, fez três gols em alguns jogos, e em 2017 era atacante do Goiás, na série B. Ajudou o time a subir e, em 2019, pintou (e bordou) como a revelação do Campeonato Brasileiro. No dia 20 de janeiro de 2020, foi comprado pelo badalado Flamengo de Jorge Jesus por 7,5 milhões de euros. Que saga.
O tal diálogo, o tocante diálogo, deu-se ali pelo dia 11 de julho, véspera de um Fla-Flu, não um Fla-Flu qualquer mas o da decisão do Estadual 2020. Michael já era figurinha carimbada, reconhecida em todo o país. Segundo ele, o fato de tentar ajudar tudo que era conhecido o transformou num “escravo da bondade”. Sua tranquilidade sumiu, seu bem-estar mental foi para as cucuias. Foi nesse estado que ele adentrou, do alto de seus 24 anos, a sala de Jorge Jesus para uma das conversas mais importantes de sua curta vida:
– Mister, não consigo mais concentrar. Não estou conseguindo ficar sozinho, não durmo, sinto pânico até no banho. Não dá, pode me mandar embora do Flamengo se quiser, faça o que bem entender.
Michael estava aos prantos.
Os olhos de Jorge Jesus transbordaram, mas o português respirou e devolveu:
– Foda-se? Eu não vou te mandaire embora, queralho…
(Nota do editor: “Foda-se”, no Além-Mar, tem o sentido de “Macacos me mordam” ou um similar de baixo calão, e não de “Que se exploda”).
Jesus então emendou:
– Em casa com sua esposa você dorme melhor? Vá para casa. E descanse, que você vai entrar no Fla-Flu.
Em vez de voltar a dormir no carro após o último treino, em vez de se jogar do alto do hotel, como passou por sua cabeça, Michael respirou aliviado. Uma betoneira começava a sair de suas costas. No domingo, aos 28 do segundo tempo, arrancou lépido e fagueiro para, num contra-ataque puxado por Rafinha e Gabigol, marcar o gol decisivo do clássico, 2 a 1 – com tentos de Pedro e Evanílson.
“Minha mulher uma noite me encontrou tremendo no chão. O que me salvou foi gritar por socorro. Depois de chutar longe o orgulho e a vergonha e admitir o problema, me senti abraçado por todos no Flamengo, como ninguém antes tinha agido comigo”, contou o camisa 19, grato por toda ajuda que teve do grupo e dos terapeutas profissionais (seis consultas por semana). O amor demonstrado pelos jogadores o fez, por fim, vencer o medo paralisante: “Quando mais precisei de um amigo, o Flamengo estendeu a mão para mim”.
Aquele lugar-comum de que “o jogador está sentindo o peso do Manto Sagrado” pode ser, como Michael demonstrou, uma questão bem mais séria – e até curável. Ou, como Juca Kfouri resumiu, o problema com o craque muitas vezes não está mais no pé, e sim na cabeça.
Após seu gol decisivo, Michael tomou nas bochechas um daqueles bofetões carinhosos de Jorge Jesus. Conversaram:
– Como se sentes, Baixinho? Por dentro, digo.
– Ah, Mister. Eu me sinto quebrado. Mas aos poucos estou me reerguendo.
Hoje, após meses de aceitação, conversas e tratamentos, Michael se desmarcou de vez desse mal desleal e invisível, que ele decidiu verbalizar após o rumoroso caso de Simone Biles, a ginasta americana: “E nunca mais tive depressão”, vibrou o ponta-esquerda.
Vitória, irmãos e irmãs flamengas. Vitória gigante – mais uma, desse Sanatório de Regatas do Flamengo, instituição acostumada a curar a alma e distrair a mente de 40 milhões de pacientes.
Afinal, como o escritor Marques Rebelo, torcedor do América, um dia percebeu, “a felicidade não é um fim. Mas a alma tem necessidade vital de etapas felizes para se revigorar.”
Que o Flamengo siga em sua vital missão de revigorar nossa alma, semana a semana, em doses muito bem administradas. Afinal, como o time de Renato Gaúcho parece ensinar, viver não é ficar 100% do tempo atacando e martelando, é preciso às vezes respirar, dosar, defender-se, para então reunir forças e partir para cima de novo.
Uma lição e tanto aprendida na prática graças à história de vida, das sete vidas, do imenso baixinho Michael.
Será que eu não vou ter nunca descanso? Já tinha aposentado meu Rovotril, o velho Teacher envelhecido em 12 minutos estava lá jogado num canto envolto em teias de aranha e de repente lá vem a rebordosa. Mais uma, eu até lembrei do velho Vinícius de Moraes naquela história de que ninguém pode se achar dono e senhor do material, reverberei até numa resposta, se eu não me engano, pro Chacal, falando de minhas preocupações obaobescas, e não é que nem demorou muito? Será que o problema é minha boca de azar? Caceta, já estou cheio de culpa, até porque meio me achando com tanto poder assim, vai se onipotente assim na casa do cacete. Mas falando um pouco de futebol esse negócio que eu não entendo muito, mas ouso falar já que os cronistas esportivos (epa!) também não entendem porra nenhuma do riscado e desandam a falar, falam o tempo todo besteiras e mais besteiras e ainda descolam uma graninha. Será que esse time do Flamengo vai virar aquele Grêmio do Renight que levou de cinco? Uma coisa primária, se o time continuar nessa obsessão de jogar lá na frente à procura incessante do gol, tem que imprensar de vez os caras na defesa, só deixar os becões chutarem a chamada bola quebrada, se der chance a passes em profundidade, nossos dois zagueiros não têm pernas pra correr atrás de atacantes por medíocres que sejam. Ou então que essa diretoria bozoasna contrate dois Bolts, ou na falta desses, tentem dois jamaicanos ou kenianos (esses que o genial Saldanha dizia, já naquele tempo, que eles ganhavam tudo que era maratona porque estavam acostumados a correr de leão).
Precisava externar com vc Arthur, pois achei muita associação backtraumas passados, mais recentes, tipo cenidome, colocaram em vc um pavor com o Renight. Precisamos entender que trazer para o futebol neuroses e ou fobias trará consequências terríveis, inclusive na vida pessoal. Não existe time ou ser humano imbatível, principalmente qdo este(s) se colocam como onipotentes e façam da falta de humildade um lema. Vamos dar um crédito para todos, mas eu falei aqui há uns dias atrás que esta fase de jogos não tão decisivos é sempre a mais perigosa, quem não escorregou é bateu qdo ligou o piloto automático e relaxou. Foi isso que ocorreu, idéia de jogo banal e apenas protocolar. Assim é a vida, caímos qdo imaginamos facilidades e autossuficiência. Cobrar o propalado profissionalismo e maturidade deste grupo tem que ser a partir de agora, aí sim te darei razão em críticas inclusive individuais e exageradas, mas entendo a sua passionalidade. Acredito que se o grupo tem a estrutura e casca que ganhou desde de 2019, será um imprevisto que iniciará a nossa arrancada rumo ao topo. É esperar para ver. Valeu.
Espetacular passe com a tinta virtual que soa como very aprendizado que o escritor assina. 👏
Só posso repetir o Grão Mestre.
EXCELENTE !
Uma lição para todos.
SRN
FLAMENGO SEMPRE
Excelente!
Bela a lição de Michael de que temos que dominar nossos medos e seguir em frente, mas para isso precisamos de amigos , pois só fica muito mais difícil, espero que ele tenha superado essa fase e continuei serelepe e intrépido infernizando os adversários , sorte do flamengo ter esse empenho pois vamos precisar nos meses vindouros , teremos muitos desfalques por culpa da CBF.
Agora nada como boas notícias, https://ge.globo.com/futebol/times/flamengo/noticia/flamengo-refina-filtro-na-base-e-fatura-r-65-milhoes-com-departamento-de-transicao.ghtml, acho que esse é o caminho .
Como é ótimo ser flamenguista e saber que temos uma nação que ama e apoia o Flamengo assim como eu.
Grande paraense que não respondeu o meu questionamento paternal ! Afinal, ontem, além da goleada, foi o Dia dos Pais !
Excelente o artigo constante de suas letrinhas azuis.
Não tinha lida, muito menos tinha conhecimento da brilhante iniciativa rubro-negra.
Não gosto dele, mas nessa o Landim merece nossos parabéns.
SRN
FLAMENGO SEMPRE
Meu amigo Carlos Moraes , nasceu mais uma flamenguista, Elisa , sapeca , fez um ano no último dia 29 de julho, obrigado pela consideração, e vamos que vamos rumo aos títulos, mas convenhamos , não é de bom tom levar uma goleada em plena casa, espero que seja apenas acidente de percurso, rsrsrs, um grande abraço a vc e todos os nobres cavaleiros da nação, Bruxolobo, Carlos sp e muitos que com certeza ainda estão por lá.
Como é ótimo ser flamenguista e saber que temos uma nação que ama o Flamengo assim como o Moraes e eu.