José Carlos Araújo estava doente. Padecia de um distúrbio tão corriqueiro que a maioria das pessoas o considera trivial. Mas, quando acontece com o Garotinho da rádio Tupi, ele pode mergulhar uma nação inteira num estado de angústia, desespero, pânico e até em ataques de risos nervosos – ainda mais se o mal se manifesta em pleno Maracanã, durante um jogo do Flamengo. Sim, Garotinho estava com soluço.
A voz, sua maior joia, começou a trair o locutor esportivo mais querido do Rio no último domingo 26 de maio, às cinco e quarenta da tarde – mais ou menos como se deu com um Frank Sinatra gribado, na reportagem de Gay Talese escrita há mais de 50 anos (e plagiada no parágrafo de abertura). De fato, Garotinho com soluço é Sinatra resfriado, Picasso sem tinta, Ferrari sem combustível — só que pior.
Líder de audiência, o narrador de 79 anos completados no dia 7 de maio alimenta a esperança e a fantasia de boa parte dos quase 40 milhões de flamengos espalhados pelo país e pelo planeta. Sua verve, impostação e emoção inflam ou fazem murchar os humores de toda uma torcida, incluindo os presentes no estádio, que buscam informações, sinais de substituições, comentários em cima do lance. Era precisamente esse o caso dos 52.667 aflitos torcedores que enchiam o estádio no último Flamengo x Athletico Paranaense, partida que o sábio comentarista Washington Rodrigues, o Apolinho, do alto de seus 82 anos, resumiria com argúcia: “Foi um parto de porco-espinho”.
Eram 33 minutos jogados, sei lá quantos para terminar pelas interrupções do VAR, quando “O Fenômeno do Rádio”, pulmão da Tupi, tomou a rasteira de seu diafragma, interrompendo o fluxo de ar na laringe e causando aquele “Hic” característico que ribombava nas cordas vocais do âncora. Garotinho, craque, nem se abalava e seguia o jogo.
No gramado, o Flamengo também jogava por espasmos quase involuntários. O time de Abel já tomara a virada, com dois gols do nosso ex Marcelo Cirino – repetindo, por sinal, o resultado do time de Dorival Júnior ano passado.
Um soluço pode ser provocado por mudanças bruscas de temperatura, por quadros de estresse ou ingestão de bebidas, como as várias que José Carlos anuncia com bordões antológicos, casos da caninha Oncinha, Brahma chope, café Canaã (“sempre tem no Maracanã!”), conhaque São João da Barra. Porém, como locutores mal têm tempo de virar um copo d’água, as causas só podem ter sido externas, culpa de fatores vindos de fora da cabine. Três hipóteses me pareciam as mais lógicas:
1ª) José Carlos Araújo, 60 anos de carreira, mais jogos narrados do que o canal Warner reprisou o filme “Legalmente loira”, via seu organismo em colapso ao perceber, meu deus do céu, que estava prestes a narrar um “hat trick” de Cirino, que não marcava desde 2018. Um “truque da cartola” (ou o bom e velho “barba, cabelo e bigode”) do atacante seria tão improvável quando o citado Sinatra pegar o microfone no Maracanã, durante seu concerto em 1980, e puxar a canção “Fuscão preto”. Bizarro demais, até para o interminável fôlego do Garotinho;
2ª) O soluço teria razões fonéticas – Garotinho teria ficado com a língua embaralhada de tanto falar “Athletico”, clube agora rebatizado com este “th” anacrônico, o que só piorava diante da presença em campo dos bravos Thuler e Thony Anderson;
E a 3ª), a mais provável, motivada pela intervenção do trepidante Marcos Coelho segundos antes do primeiro soluço:
– Rodinei!
– Hein… – Garotinho cedeu-lhe a palavra.
– Vem aí Rodinei! Torcida do Flamengo vai ao desespero, Garotinho.
Se o caro leitor ou a fiel leitora já visitou uma fornalha no Senegal ou o banheiro de um pé-sujo na Lapa, pode medir o calor produzido por 52 mil torcedores em fúria ao escutar que, em vez de Arrascaeta, a esperança da virada seria o lateral Rodinei, ainda por cima de cabelos platinados. Nem a glote do âncora podia suportar sem convulsionar.
– Bola para Éverton Ribeiro! É o Flamengo do Ziraldo, o papai do Meni… – HIC – Maluquinho!
Ouvido colado no radinho, a torcida agora era só agonia: será que ele aguenta até o fim? Vai pedir para sair ou largar tudo para tomar um pouco de água? Coitado, como ele vai sair dessa, se faltam 15 minutos? Como se percebe, no caldeirão em ebulição em que se transformava o Maraca, o Garotinho e o treinador Abel viviam dramas até parecidos.
O árbitro, esse profissional do sadismo, tratou então de estender o suspense: sete minutos de acréscimos, e o Garotinho narrava assim:
– E olha o Mengão de novo! Bola para Wi..HIC Arão!
– Chutão de loooonge… A bola vai pra fora! Arriscou bem o – HIC – Diego, Gilsão?
– O Flamengo tá desorga- HIC – nizado, cara…
E então o imprevisto:
– GOOOOOOOOOOOOL! (Narrado com todas as letras O, sem nenhum soluço, em prova cabal de que quem sabe, sabe.)
– Foi ele, Bruno Henrique! Numa cabeçada quase sem ân – HIC – gulo… (Aí sim, não teve jeito.)
O ar engasgado na traqueia de José Carlos, de fato, se libertaria de uma vez por todas aos 50 minutos, quando Renê alçou a bola e o barbichinha Rodrigo Caio, tal qual um jovem rei Artur, cravou a bola no barbante como quem enfiava sua Excalibur no ventre do monstro inimigo. Golaço.
Gritos nas janelas, lágrimas de raiva, socos no volante (“Obrigado a você – HIC – pela carona que me dá!”), choro de Abel e abraços ensandecidos em campo, tudo era permitido. Enquanto os ânimos ainda serenavam, e José Carlos provavelmente gargarejava ou plantava bananeira para solucionar o soluço, o bom e velho Apolinho fazia o sagaz comentário final.
– Ufa, Garotinho! – disse o ex-treinador rubro-negro no conturbado ano de 1995. – Da antessala do inferno o Flamengo foi ao céu. O clube, como se sabe, não tem purgatório, é céu ou inferno. Abel já fazia as contas do fundo de garantia, o torcedor berrava “Fora Abel” e já pensava o que ia arremessar em campo – o chinelo, o sapato ou a dentadura. Veio o gol de Rodrigo Caio e deu-se o milagre, todo mundo em festa, doentes jogando a cadeira de rodas para cima e saindo pulando. É o que acontece sempre que São Judas Tadeu está de plantão no Maracanã. E hoje o santo veio: 3 a 2 no placar, Mengão na cabeça e tá acabado. Festa na favela, Garotinho!
– Voltei… E você, já saboreou o café Canaã? Hmmm, eu prefiro o meu extra-forte!
Genial, Dunlop.
Como disse Carlos Morares, entre outros: recentemente, encontramos mais satisfação ao entrar aqui e ler crônicas e comentários que são aula de Flamengo do que ao assistir aos jogos.
Genial! Hilário!
Há tempos não me divertia tanto com uma crônica. Quanta emoção diferente! Melhor lugar da internet flamenga, sem dúvida.
Entre um soluço e outro do Garotinho o Abel foi demitido.
HAHAHA… Abraços, grande Xisto, e obrigado ao povo que curtiu, é gente que se liga na gente. Apite comigo galera, semana que vem tem mais.
Flamengo, oh meu Flamengo
Eu gosto tanto de você.
Obrigado pelo texto.
Vai, Flamengo!
Esse site é foda! Cada um no seu estilo. Cada um melhor que o outro e o outro melhor que o um. (Acho que copiei e colei de mim mesmo).
srn p&a
E o grand finale:
Ganhamos, e mesmo assim Abel vai sacar seu FGTS (metaforicamente claro, já que a CLT é tão boa para o trabalhador, mas tão boa, que nenhum treinador de primeira divisão submete seus contratos aos seus ditames).
Ganhou e não virou bestial, como sugeriu um comentarista por aqui outro dia. Continuou besta.
É algo bem fora dos paradigmas vigentes no futebol brasileiro e entre os torcedores em geral.
O mimimi vitimista lamentável de dizer que saiu porque “foi traído” pelo clube, que fez uma sondagem a outro treinador, é a calda podre de um bolo vencido e mofado, digno de fechar com chave de lata mais uma passagem fracassada desse cidadão rude, mal educado, pedante, ultrapassado e com postura incompatível com um profissional que vive do esporte, pelo clube que ele tem menos identificação na vida.
Flamengo contratar Abel depois do episódio Santo André é absurdo equivalente à CBF contratar novamente o Felipão para treinar a seleção após o 1 x 7.
Festival de horrores esperado.
Que nunca mais alguém tenha a ideia de pôr esse cara novamente dentro do clube. Dêem a ele uma placa de agradecimento por permitir a cabeçada do Rondinelli e o esqueçam de uma vez.
A minha preguiça mental em produzir um comentário que signifique alguma coisa positiva pro Flamengo é tão grande que prefiro entrar nos assuntos dos comentaristas e comentar o que os comentaristas escreveram.
Tô contigo, The Trooper! Essa coisa pegajosa lacrimosa e vitimista do brasileiro é simplesmente repugnante. O Abel é tudo isso que vc escreveu e muito mais. Impressionante como as pessoas se deixam seduzir com facilidade por qualquer personalidade medíocre, porque toca piano, tem bons vinhos pra beber, bom de papo e de afeto, eu acho que até gostaria de estar com ele nessas condições pra fazer a minha checagem pessoal. Mas, como torcedor, não posso perdoar o fato de que ele, EM MOMENTO NENHUM, teve a humildade e sabedoria necessárias pra perceber, reconhecer e assumir que estava fazendo merda, que não sabia muito bem o que fazer com tanto material humano à disposição, onde até selecionáveis de outros países ficavam no banco. Abel teve tudo nas mãos, estrutura perfeita com todos os departamentos funcionando a pleno, CT first world, jogadores pagos a peso de ouro, base forte e louca pra mostrar serviço… quer dizer, não fez acontecer, não conseguiu ver o timaço que tinha à disposição se tivesse a humildade de reconhecer que estava perdidaço e precisava de ajuda pra criar um belo ornamento com o ouro puro que foi entregue a ele. Ele mesmo tratou de abrir brechas na relação com a torcida desde o início, chamando o Flamengo de Fluminense, depois a declaração sobre o Beira-Rio em comparação com o Maracanã na semana em que o clube,depois de 20 anos de luta conseguia sua concessão. Adiante, “Os Normais”. A irritante e inaceitável (pro torcedor, claro) insistência com o Arão e o Pará, especialmente estes 2 e, não bastasse, dando ao Soneca um status de equilibrista que é exatamente o oposto na vida real. Todo mundo já viu que é nas subidas sem bilhete de volta do Arão que a cratera se abre na nossa intermediária e o adversário entra como quer. E vai pra conta dos zagueiros, quando na verdade o senhor desequilibrista é que varreu a avenida pruzinimigo passar. Quem vem? Sei lá. Não gosto muito da ideia de técnico velho e o tal do Jesus tá com 64 anos. Se tiver a mente jovem, flexível e ousada misturada com a maturidade da experiência, pode ser que a inteligência predomine e saia alguma coisa que preste. As informações sobre ele e seu estilo de jogo são boas. Vamos ver dentro de campo, onde o papo é reto.
srn p&a
The Trooper e Rasiko: que textos maravilhosos! Ouso afirmar que o RP&A prima pela inigualável qualidade de seus cronistas e comentaristas. Além do melhor: todos rubro-negros de raiz! Aqui, respira-se Flamengo, para nosso deleite! Seja bem-vindo, novo treinador! SRN!
queria ver o PET treinando o flamengo.
SRN!
🙂 Sério? Craque. Chato além do limite. Ego que beira o insuportável. Só recomendável pra times formados por jogadores em fim de carreira. É o tipo do cara que traumatiza crianças. Prefiro não, temos muitos jovens no elenco.
srn p&a
sabe que vc tem toda razão…
retiro a minha indicação!
SRN !
Espetacular, Dunlop. Texto para ser devidamente comemorado com uma cervejada daquelas de fechar o BG, na segunda quinzena de junho. Tá marcado?
Abração. SRN. Paz & Amor.
Ótimo texto! O Garotinho é um grande craque, mas pra mim o Penido é o Zico do rádio! SRN
Essa do HIC foi do fundo da cartola. Será que o Abelão supera esses soluços? Mais uma bela crônica
P*&_#! M&$#! que texto, que fina ironia, que homenagem mais oportuna ao mestre Garotinho…
Sou teu fã Dunlop, sem qualquer tricoletagem, beleza?
Foi mal Dunlop… Parabéns e abraços!
Sensacional Arthur,vc é foda…Sou locutor tbem,e o soluço é o terror.Nunca aconteceu comigo e uma vez uma fonoaudiologia me disse que pela entonação da voz, é impossível ter soluço apresentando ou narrando,mas pelo jeito ela se enganou, né?Rsrs
Se eu fosse capaz de escrever como o Dunlop eu tava rico, morando em Paris, nao tava escrevendo blog .
Como é que dizia aquele personagem da Escolinha do Professor Raimundo, passando as mãos no cabelo? “Modéstia, mestre, modéstia!”
Brilhantes e imperdíveis, cada um no seu estilo. Vocês não podem parar. Somos o seu público e a exigência tende a crescer. O título de melhor site de futebol do mundo deve ser honrado com uma produção cada vez mais criativa sempre com o foco de beneficiar o Flamengo. Alta responsa. Contem comigo na plateia.
srn p&a
Sensacional Arthur,vc é foda…Sou locutor tbem,e o soluço é o terror.Nunca aconteceu comigo e uma vez uma fonoaudiologia me disse que pela entonação da voz, é impossível ter solução apresentando ou narrando,mas pelo jeito ela se enganou, né?Rsrs
Quer dizer que o Abel já era ! ! !
Quem virá (Int,)
Ai, Jesus, este não !
pior que parece que vem…vai receber o que renato está ganhando no grêmio ou seja,dava pra ter trazido o gaucho que era o q a galera pedia….
SRN !
Meu bom Chacal, será que vc não está simplificando, não? A torcida queria, sim, mas ele não veio porque não quis. Preferiu o Grêmio, mesmo que de olho no Flamengo. Talvez ele tenha razão: um dia o Renato Gaúcho vai ser técnico do Flamengo.
Lamento, mas, mesmo sendo apenas dois anos mais velho que o Garotinho, no futebol sou muito, mas MUUIIIITO mais.
Sou dos tempos do ^Lobo não come Lobo, Fla-Flu é na Radio Globo^, do quarteto fantástico (o verdadeiro) formado por WalDIr Ama-RAL, JorgeCury, JOÃO Saldanha, Mário ViaNNa. Tentei uma ^sonoplastia^ por meio das letras …
José Carlos Araújo, como simples torcedor, também devia ser.
Saudades, muitas saudades.
Sofri muito na época do rádio. Todo jogo era uma emoção insuportável. Visto na tv, seria uma pelada. Os locutores eram verdadeiros artistas da interpretação através da voz descrevendo jogadas que só existiam na imaginação deles. Era um sofrimento. No fim do jogo eu desabava exausto onde estivesse. Mas não largava o radinho.