Recomenda-se muito cuidado com os desejos, porque eles muitas vezes são atendidos. É conhecido o mito do Rei Midas. Recompensado por Dioniso (o deus Baco dos romanos) por ter tratado bem a Sileno, pai adotivo do deus do vinho, que se perdera depois de uma bebedeira, a Midas foi permitido escolher qualquer coisa que desejasse.

Olho grande e dinheirista, o rei da Frígia tolamente pediu a Dioniso, também deus da doideira e da intoxicação que funde o bebedor com a deidade, que lhe fosse concedido o poder de transformar em ouro tudo o que tocasse. Mesmo lamentando um pedido tão idiota Dioniso o atendeu.

Foi a desgraça de Midas, que logo descobriu que não conseguia comer, beber ou mesmo abraçar a própria filha, que inadvertidamente o tocou e se transformou numa estátua de ouro. O drama de Midas só terminou quando Dioniso atendeu aos seus apelos desesperados e lhe indicou a cura, a água corrente do Rio Pactolo, com a qual Midas lavou a si e à princesa. A areia da margem do rio em que Midas pisou desde então tem como característica as suas areias douradas.

O desejo todo errado de Midas, que a princípio poderia até parecer uma ideia esperta, é uma daquelas lições que todo mundo sabe, mas esquece de colocar em prática. Nós, torcedores do Flamengo, cultivamos o hábito de a qualquer tropeço do time ou quebra da rígida etiqueta pela qual nos pautamos invocarmos logo o mantra Quero Meu Flamengo de Volta. Que é um ótimo slogan, mas é ao mesmo tempo uma maldição.

Porque de tempos em tempo o que acontece é que o desejo é realizado e temos que lidar com o Flamengo de volta. Não o Flamengo rolo compressor que não se entrega nunca, mas o Flamengo muquirana e calça frouxa que não atinge as metas e falha clamorosamente exatamente no único quesito onde não se tolera qualquer falha: jogar com raça e se necessário, deixar um pouco de sangue no gramado.

Pior, às vezes o Flamengo que volta é aquele Flamengo inábil e incompetente também fora de campo. Decisões erradas, associações espúrias, declarações desastradas e a arrogância de rigueur dos equivocados que se recusam a reconhecer seus vacilos preferindo ocultá-los com justificativas pueris para o que é injustificável. Esse é o risco de ficar toda hora querendo o Flamengo de volta. O desgraçado volta.

É a história que mostra que o Flamengo passou a maior parte dos 126 anos de sua existência no sofrimento, sem grana e jogando só com a camisa e o gogó da torcida. Zicos, Didas e Zizinhos que nos dão a ilusão boa da invencibilidade eterna aparecem de século em século. Esse é o estado natural do Flamengo, que só se livra dessa condição quando cada um, em campo e fora dele, é capaz de fazer algo além do que dele se espera. A nossa galeria de fotos dos times campeões está repleta de equipes apenas esforçadas, mas com vontade de ferro e inegociável compromisso de não se entregar nunca. As fotos dos nossos grandes times repletos de craques que suavam pouco não estão na galeria.

Do time de 2020 muito se esperava, parecia natural que a manutenção de quase todo o elenco e a mesma filosofia do annus mirabilis de 2019 nos levaria inevitavelmente aos primeiros lugares das competições que participássemos. Um exemplo típico de péssima administração de expectativas pelo qual só podemos culpar a nós mesmos. O Flamengo em 2020 só se fodeu e a sete jogos do fim da temporada o balanço é extremamente desfavorável.

Em campo o Flamengo jogou pouca bola em comparação com o que mostrou na temporada passada, ninguém brilhou e os títulos conquistados têm pouca relevância. Mas fora de campo foi a mesma coisa. A diretoria que alcançou um aproveitamento animal nas contratações em 2019, trazendo Bruno Henrique, Gabigol, Rodrigo Caio, Rafinha, Gérson e Pablo Marí, só deu bola fora em 2020. Vou nem citar o nome dos contratados, todo mundo sabe quem são e sabe também que não entregaram nada.

O derradeiro erro da cartolagem foi trazer Rogério Ceni, para complementar com requintes de inépcia a precipitada demissão de Domènec, motivada muito mais por motivos políticos do que técnicos. O resultado dessa barbeiragem é o que estamos vendo nos jogos, com Diego reabilitado como líder da equipe e Vitinho como peixe do técnico. Quem estava vivo de 2015 pra cá já sabia que isso não ia prestar. A tendência para o desfecho dessa sequência de aberrações é mais uma daquelas embaraçosas comemorações por vaga na Libertadores, com o elenco afetando alegria e orgulho por ter chegado a lugar nenhum, como rolou naquele patético fim de 2017.

Hoje, após a decepcionante derrota em Curitiba, circulam notícias de que o Flamengo pensa em manter Ceni até o fim do Brasileiro, para então avaliar a possibilidade de renovação do seu contrato. O que seria um erro de gestão crasso, rombudo, imperdoável. Até minha dermatologista, que costuma perguntar quem é a bola, ao examinar minhas perebas de fundo nervoso percebeu que Rogério é inadequado pra função que exerce.

Ainda assim, mesmo contabilizando os prejuízos, esportivos e financeiros, causados pela grotesca passagem de Ceni pelo Flamengo, a direção parece incapaz de reconhecer que pisou na bola e cogita estender o nosso sofrimento por mais 12 meses. Manter Rogério Ceni até o fim do Brasileiro é negacionismo, puro e simples. É uma maneira diferente, mas ainda covarde, de jogar a toalha no Brasileiro só pra não assumir a culpa de uma decisão errada.

Depois do que ele aprontou ontem Fora, Rogério é vírgula. Só não vê quem não quer. Ou quem esqueceu que a missão do Flamengo não é dar lucro, eleger dirigentes para cargos públicos ou bancar o simpático com governantes com prazo de validade vencido. A missão do Flamengo é ganhar títulos e dividir o mundo entre os bem e os mal vestidos. O Flamengo é quem está do outro lado do muro, sempre foi e sempre será.

Quando ficamos sabendo, horrorizados, que o nome de Luxemburgo foi especulado pelos dirigentes a única conclusão possível é que a vaca foi pro brejo, que o Flamengo é terra arrasada. Ou seja, o Flamengo normal e corrente, aquele que aprendemos a amar, está de volta. Palmas pra quem pediu.

Depois que foi salvo por Dioniso o ganancioso Midas desbundou, decidiu abandonar a vida palaciana e se tornar um seguidor de Pã, deus dos bosques. Um dia Pã, na doideira, afirmou tocar melhor do que Apolo, deus da razão, da harmonia e do equilíbrio. Apolo ouviu e resolveu fazer um duelo com Pã, julgado por Tmolo, deus das montanhas. Pã mandou muito bem na flauta, mas depois que Apolo esmerilhou na lira Tmolo deu o prêmio a ele. Midas indignou-se, questionou a decisão, achava que seu líder fora melhor. Apolo ficou putão e deu a Midas orelhas de burro. Fim do mito.

Já existem mais de 23 motivos e até mesmo clima político pra mandar Ceni pra vala, mas, infelizmente, falta a rua e sobram orelhas de burro.

Mengão Sempre