O choro é um efeito fisiológico próprio dos seres humanos. Quando estamos em um estado emocional alterado nosso sistema límbico, responsável pelos sentimentos, associa um estímulo emotivo com aqueles que já temos guardados na memória. O que detona um processo interno em que várias drogas legais que o nosso corpo produz, como a noradrenalina e a serotonina, começam a ser liberadas. Aí o sistema nervoso contrai a glândula lacrimal e já era, malandragem. Lágrimas rolam.
Nunca fui muito de chorar. Pelo Flamengo a última vez em que as lágrimas irrigaram essa cara que mamãe beijou foi no dia de Iemanjá de 1979. O que provocou o choro do moleque Arthur foi o gol odioso feito no Flamengo pelo Renato Sá, um ponta esquerda que tinha vindo do Grêmio e se orgulhava de ter as pernas cabeludas por jamais ter tomado massagem.
Esse gol bandido, somado à impecável atuação de José Luiz de Moura, o Borrachinha (filho do grande Luiz Borracha, reserva de Jurandir no primeiro Tri do Flamengo e defensor da ultima cidadela rubro-negra em 154 partidas), fechando o gol alvinegro, terminaram com a promissora série de 52 partidas sem derrota daquele Flamengo espetacular de Raul, Junior, Adílio e Zico que ainda ganharia tudo que havia para se ganhar.
Na ancestral arquibancada, naquela adolescente entrega extremada às coisas de menor importância, o moleque Arthur chorou. Chorei mesmo, sem controle, soluçando, aos prantos como só um moleque de 15 anos é capaz de fazer sem parecer forçado. Cada defesa de Borrachinha era um punhal cravado no meu peito. Os amigos que foram comigo no Maracanã nem me zoaram, sentiam também a mesma dor.
E olha que no ano anterior eu tinha chorado, não pelo Flamengo, mas pela Seleção, o que julguei ter sido então meu último choro por futebol na vida. Quando a Argentina, com extrema facilidade, meteu o terceiro gol no Peru na última partida do Grupo B que classificaria uma seleção pra grande final percebi que o jogo que eu amava, e entendia como a expressão mais pura da justiça e do mérito, fora miseravelmente comprado e que o mundo não tinha mais remédio. Foi traumático e ao mesmo tempo libertador.
Já assisti a final daquela Copa da Ditadura Militar com o distanciamento e a maturidade de quem tinha 14 anos e achava que já tinha entendido tudo. Nem o gol de Nanninga que empatou pros holandeses quase no finzinho do jogo me tirou a certeza conformada de que a Argentina ia levar aquela Copa de qualquer jeito. Soube exatamente ali que o futebol era uma farsa, show business, que só enganava aos tolos. Inconscientemente, estava decidindo ali também que seria um tolo voluntário pelos anos à frente.
Depois da minha fraquejada no funesto Flamengo x Botafogo de fevereiro de 79 os caras correndo atrás da bola nunca mais me fizeram chorar. Claro que desde então chorei outras vezes. Chorei de felicidade pelo nascimento das filhas, de tristeza por algumas perdas difíceis, por uma fratura de dois dedinhos do pé numa pelada de salão, vendo a cena em que Whoopy Goldberg reencontra os filhos em “A cor púrpura” e numas duas separações amorosas com as quais não estava 100% de acordo.
E assim fui levando minha vida, convicto de que possuía absoluto controle sobre as bolsas lacrimais, me achando um dos últimos durões desse crepúsculo do macho em que vivemos. Até que um dia, do nada, sem aviso e, aparentemente, sem motivo, chorei de novo quando lia uns comentários feitos em vídeos de músicas antigas no Youtube.
Nos últimos tempos a leitura desses comentários se tornou um vício pra mim. Alguns comentários são previsíveis, sempre tem quem pergunte se alguém está ouvindo aquela obra musical originária do Plioceno em 2020, ou criticando o atual cenário musical e, em um tom que mistura lamento e admoestação, afirmando que na época em que Rock’n Roll Lullaby era o tema de Simone Marques e Cristiano Vilhena em Selva de Pedra (First Edition, 1972) é que se fazia música de verdade, que as músicas de hoje em dia não prestam e que, assim como a honestidade e o respeito aos mais velhos, tudo que era bom acabou.
Mas alguns comentários não tem esse ranço. Trazem memórias, pentimentos descobertos pelas velhas canções. Relatos ternos de tempos passados de felicidades idealizadas. São esses os que mais me emocionam. E por causa de um deles que voltei — a contragosto, confesso — ao hábito de chorar sem ser pelo nascimento de mais uma garota na família.
Foi num vídeo de Arranha Céu, uma seresta de Silvio Caldas e Orestes Barbosa, que meu pai adorava e trazia os densos versos Nestes delírios nervosos/ Dos anúncios luminosos/ Que são a vida a mentir/ E cada vez que subia/ O elevador não trazia/ Essa mulher, maldição. O comentário era de um viúvo, contemporâneo do lançamento da canção, no lado B do mesmo 78 rpm que trazia o grande sucesso da dupla Caldas – Barbosa de 1937, a clássica Chão de Estrelas.
Em seu comentário, o já macróbio internauta contava como Arranha Céu tinha sido decisiva para a conquista do coração da mulher com quem se casaria e viveria por mais de 60 anos em sacramental coabitação. E então passava a descrever as qualidades ímpares da amada, sua seriedade, beleza e desvelo como esposa, mãe e avó.
Empolgado, e provavelmente sem nenhum controle sobre as próprias bolsas lacrimais, após os elogios introdutórios o comentarista abandonava o tom panegírico e confessava, da maneira mais desabrida, sincera e tocante, a falta que a mulher lhe fazia e as saudades que lhe provocavam dores físicas. Pelo menos pra mim foi impossível prosseguir na leitura sem levar a palma da mão aos olhos como se fosse uma esponja. Aquele comentário tinha sido escrito, ou melhor, rasgado, com o coração mais pleno.
Foi inevitável compartilhar a mesma emoção do comentarista. Chorei só de ler aquele relato de amor e saudade. Hoje, se ouvir Arranha Céu de novo, é bem capaz da noradrenalina e da serotonina me fazerem chorar outra vez. E quando um sujeito tá chorando só de ouvir Silvio Caldas ele já não tem mais salvação. Ontem, há 91 dias sem Flamengo, mexendo num hardisk antigo achei umas fotos da marquise do velho Maracanã. Aquela elipse sinuosa e elegante em concreto armado, o chiaroscuro do lusco-fusco carioca, aquele mistério maracanesco que há muito se perdeu. . . Já podem imaginar o que aconteceu.
Quero meu Flamengo de volta.
Mengão Sempre
[…] com o certo (Mengão sempre!), foi inevitável sentir a emoção, não segurando as lágrimas — a contragosto, como ele mesmo confessa. Aquele comentário tinha sido escrito, ou melhor, rasgado, com o […]
Caro Arthur, texto excepcional. Em toda a minha jornada de torcedor do Mengão, chorei poucas vezes, afinal sempre fui otimista e a grande maioria dos jogos, assistia em grupo, onde diluia as eventuais tristezas. Mas na final da taça libertadores onde nosso Gabigol meteu dois no final dos 90 minutos. Rapaz, no Bar, ao final uns rubro negros choraram no meu ombro e eu tive de acompanha-los no choro. Foi um alivio. Felicidades em seguida.
Abs.
Orlando Silva
Arthur, grande Arthur.
Só tenho a agradecer por esse duplo presente: tanto o seu texto quanto essa incrível imagem no final. Obrigado!
Na verdade, mais que agradecer também gostaria de aproveitar para fazer um convite. Estou coordenando um projeto junto com alguns amigos, o Zensacionalista (zensacionalista.wordpress.com) e uma das seções que temos na página é Entrevistas. Seria uma honra para nós publicar uma entrevista com você. Deixo meu email caso aceite o convite: jdneo@hotmail.com
SRN.
Abraço
Taí, neste aspecto somos diferentes.
Choro a toa, menos no futebol.
Cinema, é uma tragédia.
Tinha que ^driblar^ as namoradas, que permaneciam sérias, enquanto chorava às pampas.
Dou um exemplo.
^A Ponte de Waterloo^.
Inacreditavelmente linda, Vivien Leigh, uma das minhas muitas paixões cinematográficas.
Estava no Maracanã, no dia 16 de julho de 1950, sentado nas cadeiras cativas ao lado do meu pai, todo mundo chorando, eu não.
Decepcionadíssimo, sem dúvida, mas sem chorar. Afinal de contas, os uruguaios jogaram bem melhor do que nós.
Em homenagem ao Luiz Borracha, pai do Borrachinha, vou contar um jogo em que não resisti.
Já coloquei na lista dos meus OITO melhores em comentário ao artigo do Murtinho.
1945, sete anos de idade, estádio da Gávea, cadeira numeada, que ficava no mesmo plano do gramado.
O time do Flamengo o mesmo do tricampeonato, com Borracha no gol (Jurandir se aposentara), Adilson e Tião pelas extremas (Valido já estava aposentado ressugindo para o milagre, Vevé creio que contundido).
Era a última chance do tetra.
Perdemos
Neste jogo, quando findo, chorei em pleno estádio.
SRN
FLAMENGO SEMPRE
Correção mais do que rápida.
16 de julho.
O Arthur é Bamba!
Arthur faz rir e se emocionar com a mesma maestria…é um monstro SRN
Porra Arthur, eu tambám quero !
Mais que isso, eu preciso dele.
“Me tiraram” grande parte da minha alegria e isso não se faz …..
Caro Arthur,se vc que se diz ser de pouco chorar já está revendo isto pelo tempos fúnebres em que vivemos,e ainda sem nem ter nosso Mengão pra nos desafogar dessas lágrimas,imagine um manteiga derretida como eu,que já no primeiro acorde de qualquer música dos Beatles me derramo em lágrimas.Mas como outro gênio da música já disse,”amanhã há de ser outro dia”,e assim o espero.E que venha acompanhado de um emocionante Flamengo versus … .SRN com muita P&A.
Assim vc machuca, papai!
Bravo!!!
Bom Dia Grande Arthur.
Belo texto de antigas lembranças.
Já ouvi que “recordar é viver” e, não poucas, mas também não muitas vezes, excitam a noradrenalina junto com a serotonina em ambas dão início a esse processo interno.
Para alguns sinal de fraqueza… para outros sinal de nobreza. Fico com os últimos.
Também já chorei por várias razões. Todas muito válidas. Afinal esse é um recurso que recebemos do Universo como uma válvula de escape.
Pelo Flamengo chorei muitas vezes. Algumas de raiva porque quando o Flamengo perde nem sempre as lágrimas aparecem mas, todas as vezes eu “não quero almoçar nem quero jantar”.
Que falta faz o Flamengo, olha aonde chegamos.
Grande abraço e SRN.
Parabéns Arthur por mais esse belo texto, que mais parece uma confissão. Como sempre brilhante.