Eu poderia estar bebendo, me drogando ou me prostituindo em honra da deusa Puta (uma deusa agrária de menor importância no panteão politeísta do Império Romano) em uma das inúmeras bacanais históricas que ainda estão em curso para as justas e necessárias comemorações da nossa segunda Libertadores. Nas quais os amigos hão de convir que não pode ter miséria,  devem ser adequadas à transcendência da conquista.

Mas estou aqui, interrompendo a minha, e provavelmente a sua cachaça, para falar de Campeonato Brasileiro. Uma aporrinhação, uma inconveniência, uma invasão inaceitável da prerrogativa constitucional de que todo cidadão tem o direito de se chapar o quanto quiser desde que haja escusável medo, surpresa ou violenta emoção. Condições em que todo rubro-negro hoje se enquadra.

O flamenguista tem medo de ir à noite no banheiro e encontrar lá no escuro mais um título do Flamengo pra dar susto. Se surpreende com a capacidade mimética dos mais notórios secadores antiflamenguistas do caralho que se tornaram neoflamenguistas nas últimas 24 horas e estão tirando onda de raçafla nas festinhas. E, obviamente, está sob evidente e justificado estado de violenta, funda, dilacerada e santa emoção.

Cumpridos os pré-requisitos, vamos logo com essa chateação de interromper a festa para falar de uma competição na qual, mesmo muito doidão, tenho certeza absoluta de que o Flamengo não jogou hoje.

E mesmo sem jogar, na verdade mesmo com todos os seus jogadores desde cedo chapadões de latão em cima de um trio elétrico na Presidente Vargas, o Flamengo foi Heptacampeão Brasileiro. Porra, fala sério, Flamengo. Tenha piedade de nós! Ainda não acabamos a festa da Libertadores, não temos a menor condição de emburacar numa comemoração pelo Brasileiro. Nós, que estivemos o tempo todo ao seu lado merecemos alguma consideração. Dá um tempinho, pelo menos pra gente comprar mais carne e a cerveja gelar.

Fiz o apelo pro forma, foi só pra perturbar, não tenho esperança nenhuma em ser atendido. O Flamengo cresceu demais. Já não é mais o mesmo daqueles tempos. O Flamengo já foi um problema. Hoje o Flamengo é solução. E solução não fica esperando os retardatários formarem no bonde. A gente é que tem que correr atrás.

Como estão fazendo, à uma distância bem maior do que a nossa torcida, os outros 19 coadjuvantes de um campeonato eminentemente flamengocêntrico. Os nossos satélites, quando não estavam apanhando da gente, tava reclamando da gente ou botando a culpa na gente enquanto giravam em torno do ciclópico e sagrado umbigo do Flamengo.

Da mesma maneira em que uma vitória sobre o River, um time de reconhecida eficiência, valoriza o Flamengo, ficar ganhando dos times brasileiros pode ser interpretado, principalmente nestes tempos água com açúcar do politicamente correto, como uma espécie de covardia. Um paradoxo que se apresenta diariamente ao Flamengo para o qual não existe uma resposta lógica.

Se o Flamengo ganha de qualquer outro time não fez mais do que a sua obrigação. Porque é mais rico, mais bonito, tem mais torcida e a camisa mais maneira. Mas se o Flamengo perde. . . pera, não estou conseguindo me lembrar exatamente como é quando o Flamengo perde. Vou ficar devendo essa comparação para uma hora em que estiver menos sóbrio. Mas a conclusão era algo do tipo: agora o Flamengo entrou numa ascensão imparável. Como o Flamengo tem o melhor time terá mais torcida e receberá mais dinheiro com que fará melhores times que aumentarão ainda mais a torcida. E assim por diante até o fim dos tempos. É complicado de explicar. Só sei que o Flamengo é campeão e todos chora.

O que aconteceu com o Flamengo nesta rodada 34 que abrimos com prioridade há dias atrás, metendo logo quatro gols na vasca, é o exemplo mais didático possível de como atuam as forças da opressão capitalista. O Flamengo é o patrão burguês que detém os meios de produção, a mais valia e fica com a maior parte dos lucros. Os outros 19 mortos de fome são a classe operária, eternamente fudida e sempre sacaneada pelo patrão. Enquanto o Flamengo comemorava e festejava a sua boa fortuna no meio da massa funkeira na Candelária, cagando e andando pro Brasileiro, o operário Grêmio, com cada vez menos direitos, trabalhava duro no domingo pra abater o porco e fazer o gol do título pro patrão.

Essa configuração das coisas, a história ensina, não muda sem uma violenta ruptura com o sistema pela adesão incondicional das massas ao processo revolucionário. Como o povão está no fechamento blindado com o Flamengo ficam cada vez mais escassas as possibilidades de que uma revolução venha um dia a rolar. O que aconteceu nesse fim de semana mágico foi só começo de um longo período de dominação flamenga.  Já era, o Flamengo agora é o sistema, o establishment, o homem. Se ficar puto é pior.

Hoje, pinguços de todo mundo foram surpreendidos com o Flamengo metendo dois títulos em 24 horas e desorganizando nossos estoques de tudo. Não se encontra um barril de chopp para comprar no Rio de Janeiro. Nem para alugar. Há relatos vindos do país inteiro de churrascos arruinados pela falência da cadeia de suprimentos provocada pela insana sequência de títulos diários do Flamengo.

E a pior consequência dessa irresponsabilidade tão flamenga do Campeão da América é que eu tive que escrever dois textos em menos de 24 horas. E os dois de graça. Acreditem, este é um fenômeno de ocorrência ainda mais rara do que o Flamengo vencer uma Libertadores. Mas é meu dever de patriota deixar patente meu sentimento e fazer uma advertência ao Flamengo.

Se o Flamengo mantiver essa média insensata de conquistas, até o fim do ano atulharemos a Sala de Troféus da Gávea com mais 36 troféus. Temos consciência de que o clube não está preparado, nem mesmo fisicamente, para lidar com os espólios das conquistas que o Flamengo está indo buscar. Não com essa velocidade tresloucada. Com o seu sucesso o Flamengo acaba expondo às suas próprias debilidades estruturais. Mas depois de expor de forma tão altissonante as desigualdades e debilidades estruturais do país inteiro, dar uma explanada em algumas das nossas fraquezas é mixaria.

Ficamos combinados assim, na quarta-feira, com todos de banho tomado e com algum alimento sólido no organismo, festejaremos direito esse Hepta Brasileiro. Do jeito kosher, no Maracanã, com a bola rolando, a torcida na arquibancada, crianças nos ombros dos pais, faixas no peito e volta olímpica com a taça. Dando início aos festejos pelo Hepta que se estenderão até a rodada 38 e durante todo o ano de 2020, e aos trabalhos de fortalecimento mental e espiritual para enfrentar o freguesão Liverpool no mês que vem.

Vê lá, hein, Flamengo! A última coisa que queremos no mundo é acordar desse porre e descobrir que ganhamos mais um campeonato enquanto a gente tava dormindo. Não nos sacaneie.

Mengão Sempre