No Flamengo nada é por acaso. Todas as coisas têm uma hora certa pra acontecer. Pode até ser que as coisas não aconteçam na hora programada, mas acabam acontecendo. Independente dos resultados obtidos em campo. Uma coisa que acontece religiosamente todo ano, embora quase nunca na hora mais indicada, é a encenação da tragédia apócrifa em 3 atos Meu Técnico, Minha Vida. Uma das obras teatrais mais chatas, repetitivas e despropositadas da dramaturgia nacional. Mas que segue sendo reprisada ano após ano pelo Flamengo. Só mudam os atores, a cenografia, o texto e o figurino são sempre os mesmos.

No primeiro ato desse abacaxi, A Escolha, os personagens são apresentados à plateia e começam a mostrar seus talentos e a angariar simpatias e inimigos. Ou não, às vezes a plateia paga paixão. Certo é que no segundo ato, A Manutenção, o personagem Técnico começa a ser cobrado por decisões tomadas no primeiro ato, que geralmente envolvem a contratação, dispensa e a manutenção de jogadores do elenco. A Diretoria e a figuração dos passa-pano se unem para neutralizar os descontentes, que são derrotados pelo oba-oba narcotizante após o time realizar a façanha de conquistar  mais um incrível Campeonato Carioca.

No terceiro ato, A Demissão, os efeitos psicoativos do Carioca já passaram e a plateia iracunda já está atirando objetos no palco e soltando seus cães na Diretoria, exigindo a cabeça do treinador numa bandeja de prata. A Diretoria, sempre presente na hora da festa, se fecha em copas e hesita em atender aos populares porque geralmente não está preparada para demitir alguém antes de encontrar um substituto. No final da peça, com raríssimas exceções, morre todo mundo.

O que faltava pra precipitar o início do terceiro ato da peça era uma boa derrota. Poderia ter começado após a desclassificação pro Florminense na Taça Guanabara, mas o clima era de tragédia e fomos em frente. Podia ter começado após a derrota em casa pro Penãrol. As brigadas de incêndio agiram rápido e relativizaram o dano causado, mas a chapa continuou quentona. Esquentou ainda mais depois de perder pra LDU de boca aberta, mas Abel escapou pela tangente. Estranhamente, foi a derrota de ontem pro Inter no Uruguay del Norte, derrota mais do que previsível, que entornou o caldo.

Como toda derrota, foi muito ruim de se ver. Porque o Flamengo esteve reconhecível, um time cheio de talentos aparentemente sem nenhum esquema pensado para faze-los jogar uns com os outros. Pior ainda de ver é gol de Guerrero, que ficou 15 anos na Gávea só fazendo gol em Portuguesa, Bacaxá e quejandos, numa bobeira absurda da zaga. No esquema do Abel o Arão deve fazer a função semelhante ao do Iniesta no Barcelona. O problema é que o time obedece ao Abel e passa 300 bolas por jogo pro Arão, que por não ser o Iniesta, evidentemente não dá conta. E ainda por cima o Arão não marca ninguém.

Perdemos bem merecidamente e não fica bem chorar, mas é covardia não dizer com todas as letras que o Flamengo foi roubado em 2 lances que mudariam os rumos da partida. No gol do Rodholfo anulado no 1º tempo o cara tava discosta com o braço colado ao corpo, gol legitimo em qualquer planeta da galáxia. E no chute que BH deu no braço do beque dentro da área no 2º tempo. Arbitragem caseira das mais safadas e com o VAR atuando por conveniência. É aquele conhecido Grande Acordo Nacional pra Fuder o Flamengo. Com VAR, com tudo.

Que, aliás, não é Deus. São só uns caras suspeitos vendo TV numa salinha e se comunicando com o árbitro. Mais gente pra errar. Como diz um sábio provérbio yiddish, 3 rabinos, 4 opiniões. A insistência acrítica na falácia de que um computador pode fazer tudo melhor que um humano se chama tecnochauvinismo. Um juiz qualquer, sem o VAR no seu cangote, jamais anularia o gol do Rodholfo. Até agora a única novidade trazida pelo VAR no campo da cleptocracia futebolística foi inibir a espontaneidade na comemoração de gols por jogadores e torcedores. Os gols ilegais continuam sendo feitos e validados. Ladrões! Mil vezes ladrões!

Não interessa que a International Board mudou a regra sobre a mão na bola ontem à tarde e os macaquitos da CBF resolveram adotar as mudanças antes dos gringos, a regra pode mudar 500 vezes, mas o roubo continua sendo roubo. O estudo da história nos mostra que há milênios é perfeitamente possível cometer os maiores crimes e atrocidades agindo sempre dentro da lei. Agora se a bola toca na mão em lances ofensivos é falta, mas se for em lances defensivos passa a ser uma questão de interpretação. Como é que alguém pode ousar acreditar que isso vai funcionar no Brasil, Campeão do Mundo de Má Interpretação de Textos e atual Líder Mundial da Cruzada contra a inteligência?

Nada do que foi relatado com a máxima isenção e sem clubismo nos parágrafos anteriores exime os jogadores do Flamengo de culpa pela derrota e pela queda vertiginosa na tabela de classificação. Jogaram mal à beça e não entregaram. Por isso o terceiro ato daquela peça, começou com tudo. A plateia, sempre fiel ao texto original, exige a demissão imediata do Abel, quer nem saber se tem algum mané pra ocupar a vaga. A grande ironia do bagulho, e símbolo dos tempos atuais, é que nego nem fica mais puto com o Abel porque o time é mal treinado. O que revoltou a rafaméia com archotes e forcados cercando o castelo foi ele ter dito duas verdades na coletiva. Uma é que para o Flamengo perder lá em Porto Alegre é normal. Fato que a estatística confirma às gargalhadas. E a segunda verdade foi ter dito que o Beira-Rio é muito mais legal que o Maracanã. Ora, nem é preciso ter frequentado os respectivos estádios em épocas remotas para saber que o Beira-Rio sobreviveu à reforma pra Copa e manteve suas características intimidatórias enquanto o Maracanã não conseguiu e se transformou num campo neutro.

O Abel treinando o Flamengo é um pouco como aquela história de termos eleito em 2018 o pior Congresso da história do Brasil. Só falamos isso porque ainda não vimos quão ruim vai ser o próximo. Mas em termos práticos, adianta demitir o Abel hoje e manter quem o contratou, planificou e está tocando o futebol no clube? A chance desse alguém optar por uma outra linha de trabalho é mínima, insignificante. Provavelmente vai trazer outro tiozão bom de vestiário pra validar sua ideia inicial. É assim que se combatem os erros nas organizações, dobrando as apostas erradas.

Sei que agora todo mundo vai apresentar suas carteirinhas do Clube Fora Abel e dizer que é sócio antigo, mas a real é que o Abel está sendo no Flamengo em maio o que sempre foi desde janeiro. Mas considerando a agenda dos próximos compromissos do time parece que tirar o cara agora à la loka é ainda mais inconsequente do que foi contrata-lo. Mudar o treinador agora é fornecer mais uma desculpa excelente pra qualquer eventual, e não improvável, fracasso na Libertadores. Apesar de estar muito feliz em não ter responsabilidade nenhuma em resolver esse problema do Abel porque essa pica é de quem o contratou contrariando a voz rouca das ruas, desconfio que não exista um Plano B. Os caras apostaram mesmo tudo que tinham num par de 8 e devem estar desesperados agora ligando pra Joéis, Antônios Lopes e Jaires Venturas.

O treinador ideal pro Flamengo deveria ser contratado não pra apagar um incêndio, mas para estabelecer um trabalho de longo prazo, estruturante, que dê uma cara a time que perdeu algo no caminho entre a pobreza honrada e a afluência que não se traduziu em grandeza. Pra isso acontecer tem que ser um contrato blindado, de 2 anos no mínimo, imune às pisadas de bola no Carioca. Mas o ideal mesmo sabemos que é impossível. Que era o Flamengo agora contratar um técnico mascarado, que não revelasse a sua identidade. Assim, quem sabe, seria julgado apenas pelo que o time mostrasse em campo, sem biografia ou folha corrida pra influenciar nossas opiniões. Tragam o Mister M! Tenho certeza que ia ser a ultima vez que encenariam essa peça chata.

Mengão Sempre