No princípio era a palavra, e a palavra estava com deus, e a palavra era deus. E assim, com um bonito e curto discurso de abertura de Zico, o Museu Flamengo foi declarado aberto para a Nação.

A magia já havia rolado antes, na visita de funcionários e imprensa. A Camila, condecorada atleta do nado sincronizado rubro-negro, sem saber, emprestara para uns amigos um antigo maiô de estimação. Quando ela passeava pelo Museu e viu seu traje sob as luzes da vitrina, junto a outros itens históricos, dobrou os joelhos e chorou feito uma bebê nadadora.

Enquanto a Charanga Rubro-Negra descansava e o presidente Rodolfo Landim dedicava o Museu aos esportistas da história flamenga, eu me espremia entre o Anjinho do Fla e o escritor David Butter, duas entidades etéreas do clube. Usávamos cada um sua pulseira, que organizava a multidão por diferentes cores e grupos, por ordem de chegada. Era essa minha pulseira negra que mais tarde me daria acesso à mais nova atração turística do Rio de Janeiro.

(Em ordem, agora temos: a praia de Ipanema, o Pão de Açúcar, o Redentor, o Museu Flamengo, o bar Bip-Bip e o heliporto do Rio Sul, a melhor vista da cidade, infelizmente apenas para magnatas.)

Perto da estátua lustradíssima do Zico, dois velhos repórteres papeavam sobre o dolorido (este sim) murro que abalou a temporada flamenga. “O que a imprensa ainda não conseguiu abordar é que Pedro e Sampaoli têm convicções conflitantes e dificuldade em dialogar. Um é argentino, ateu e profundamente de esquerda; o outro é jovem, religioso e além disso…” Mas o garçom do uísque passou e fui atrás.

Abracei o velho torcedor Almir, amigo de Zico desde Quintino e dono da maior coleção de ingressos do Brasil, talvez mais valiosa que a do Dudu Vinicius. Meu irmão pediu uma foto entre Andrade e Mozer, num blazer impecável, que toparam, para depois soprarem: “Só não saia sem uma foto com aquele cara ali, para não lamentar depois…” Era um mais-velho de cabelos brancos, reserva do time de 1981 e longe da velha forma. Brindamos com ele e, após uns 21 minutos de bate-papo, não resisti e fui buscar um amigo: “Com licença, mestre. Deixa eu apresentar vocês: Arthur Muhlenberg, esse é o nosso herói Anselmo. Anselmo, Arthur.” Foi mais legal que apresentar meu sobrinho ao Sonic.

Mais para lá do que para cá, vi que o saguão do clube estava bem menos apinhado, e parti porta adentro do Museu, saudado pelo velho segurança Pinheiro com vistosa gravata vermelha.

A visita começa por um túnel com filmes e cenas de diversos esportes rubro-negros, com melodias que todos rubro-negros conhecem. É o primeiro arrepio. O visitante então dá de cara com um prédio de taças, copas, troféus e peças que justificam até um óculos escuros. Fiquei maluco com uma caravela colossal que ganhamos sei lá quando, achei que pudesse ser contra o Benfica ou o Vasco. No monitor, meti o dedão cheio de gordura de canapé (perdão, Museu) cliquei, passei pro lado e aprendi. Troféu Colombino, 14 quilos. Conquistado em Huelva, Espanha, em agosto de 1988. Após gol de Aldair.

Num telão, o Zico falou alguma coisa comigo mas segui em frente, já fungando. Um mapa gigante em vermelho e preto mostra onde estão as principais torcidas do Fla, quem fundou e quando. Está lá o nome do Lucio de Castro, eternizado como co-fundador da Falange em 1981. Surgiu ao meu lado uma velha guarda da Raça e eu me meti a perguntar: “Fundadores da Raça: Wellington Ceguinho! Conheceram essa lenda?” Ouvi um “hein? Claro, porra”, quase tomei um piparote na orelha e achei melhor me adiantar.

Um remo antigo, a coleção de caixinhas de fósforos de 1953 que vocês certamente já viram foto (tem Zagallo, Dida e até o padre Góes), os tesouros não paravam de sair da arca.

Fiquei um bom tempo a rever em telão os gols de Nunes no Liverpool, inebriado pelos sons e cheiros do Museu. Foi quando adentrei a segunda maior atração do Museu. Trata-se de um cinema tubular com o filme do Roberto Berliner que, em seis minutos, busca resumir o que é ser flamengo. A primeira cena é de deixar Orson Welles fazendo beicinho, humilhado. São cenas épicas da torcida do Mengo enchendo trens, entrecortadas com os jogadores a entrar no ônibus para o estádio. Lá pelas tantas, ainda aparece meu amigo de infância Cristiano Cury, enfurecido a cornetar algum árbitro. Logo ele, talvez o carioca mais pacífico que conheci na vida.

No caminho para a saída, uma boa sacada. Em destaque, o último troféu conquistado pelo time, e os dizeres “Atenção: área em constante atualização.” Eu já me dirigia para fora, após abanar para o mítico torcedor Moraes a chorar no telão no gol em Lima, quando percebi um casal saindo de caverna meio discreta, no canto. Entrei e quase não consegui sair: no telão, Zico e Junior sentam-se para um papo de bar, a relembrar vários episódios que viveram juntos com o Flamengo, com o típico bom humor carioca – espinafram árbitros, brincam com o goleiro Raul, recordam seus primeiros treinadores, jogos um contra o outro no salão… Vi e revi quatro vezes, até ouvir: “Ei, ainda tem um cara aqui!”

É, o Museu precisava fechar. Agradeci o estafe, me despedi, e ao passar pela galeria dos bicampeões mundiais de basquete, não resisti: catei uma bolinha de guardanapo perdida no bolso da calça, encestei no aro e fui embora gigante, me sentindo o próprio Algodão. Ou o Guguta, se o coração do povo não for forte feito o do historiador João, que semanas antes de ver o Museu pronto quase teve um piripaque. Danado, João!

Ao sair, brindei com o busto do fundador Agostinho Pereira da Cunha e enfim espiei os preços, justos.

Cariocas pagam 60 mangos para entrar, fora as lágrimas.