Já dizia o filósofo e ex-goleiro Albert Camus: “Futebol é inteligência em movimento.” Outra definição possível: “Futebol é um esporte que motiva paixões e ótimos livros, que nunca temos tempo de ler por culpa do futebol.”
Pensei nessa durante a Copa do Mundo da Rússia (um dia eu conto mais), quando tentei mas não consegui tempo para ler o “Escola brasileira de futebol”, livraço-aço-aço do PVC publicado em maio deste ano, pela editora Objetiva.
Trata-se do nono livro de Paulo Vinícius Coelho (para os íntimos), e é o melhor deles por diversos motivos, mas adianto o mais importante: só dá Flamengo.
Acostumado a ir atrás da informação como quem vai num prato de comida, PVC remonta em linguagem ágil e saborosa, rei da resenha que é, a história e as histórias do estilo brasileiro de jogar e encantar o mundo. E, como se precisasse provar que sabe do que diz, menciona o Flamengo em 42 páginas, do início até a 270, numa aula de futebol para todos menos alguns.
Tratar de táticas de futebol é para poucos. No Brasil, lembro de Pedro Zamora, João Saldanha e Ricardo Drubscky, que lançaram obras pioneiras, nenhuma das três muito lidas. PVC chega para abalar com um livro para treinadores e torcedores, no qual não faltam lembranças como a do jogo onde um torcedor brigão mordeu um cachorro da PM, sutis comentários que não nos deixam esquecer da tremenda desorganização do nosso futebol.
Mas PVC é antes de tudo um forte, e resiste bravamente às estatísticas insanas que lhe deram fama na TV – bem, pelo menos até a página 239, quase no fim, quando o jornalista palmeirense não resiste e cita que o São Paulo de Telê Santana acertava “mais de 17 passes por minuto”, “com aproveitamento de 85%”. Não seria um livro do PVC sem ao menos uma dessa.
Para o leitor que fecha com o certo, chama especial atenção como o Flamengo participou ativamente de algumas revoluções táticas do nosso esporte. Exemplo: nos tempos de Friedenreich, os times brasileiros jogavam num 2-3-5 franco e amalucado. Isso até 1937, quando o técnico Dori Kürschner foi trazido da Hungria para a Gávea por José Bastos Padilha, o avô do cineasta, para lançar em solo brasileiro o WM, esquema moderníssimo para a época.
De Kürschner para cá, PVC destaca uma série de treinadores que foram contribuindo para a beleza do jogo ou para esquemas vitoriosos, quase todos com passagens pelo rubro-negro carioca, casos de Flávio Costa, Fleitas Solich, Zagallo, Telê Santana, Vanderlei Luxemburgo, Carpegiani e Cláudio Coutinho –
este para PVC, um dos grandes, se não o maior. (Perguntado sobre quem foi o maior treinador brasileiro de todos, o autor respondeu, ao “Correio Braziliense”: “A gente perdeu uma figura, que foi técnico da seleção brasileira antes do tempo, e que se não tivesse morrido tão cedo, teria sido o maior técnico do Brasil – porque conseguia juntar o acadêmico e o empírico, a mistura das coisas, que era o Cláudio Coutinho.”
Nesses tempos em que, como lembrou o jornalista Carlos Eduardo Mansur de “O Globo”, o Maurício Barbieri em uma semana “passou de grande promessa nacional a um jovem despreparado”, vale recordarmos a lição de Coutinho (1939–1981). Gaúcho de Dom Pedrito, o ex-preparador treinou o Flamengo quase ininterruptamente de 1976 a 1980, com algumas paradas pontuais para assumir a seleção. Em quatro anos, ajudou a montar as bases para o maior time da história rubro-negra. Muito do que nos encanta hoje, nos gramados nacionais e internacionais, veio de Coutinho, como assinala PVC quando cita, na página 162, “a pressão ousada no campo de ataque, introduzida por Cláudio Coutinho no Flamengo campeão mundial”.
Quatro anos para um treinador trabalhar seus conceitos e filosofias! Ah, quem dera.
Ao analisar o fim dos anos 1980, PVC rende merecidas e creio que até então inéditas homenagens ao treinador Carlinhos Violino, por coincidência ou não um técnico com identificação e tempo, muito tempo, de Gávea. Para PVC, Carlinhos foi outro revolucionário com o Flamengo tetracampeão de 1987, time que fez do Renato Portaluppi ponta-direita um atacante que cortava para o meio, recuava para o centro e infernizava as defesas. O esquema consagrado por Carlinhos sem centroavantes fixos e com um losango no meio-campo (Andrade, Aílton, Zinho e Zico, snif), com Bebeto e Renato (snif, snif) se movimentando no ataque, ganharia o Brasil aos poucos – e influenciaria decisivamente o Brasil de Parreira na Copa de 1994.
Numa das melhores passagens, o insano PVC mergulha a fundo na criação do carrossel holandês, e recorda como o país entrou numa crise braba sem títulos e idas à Copa, até a formação de um dos times mais fascinantes que eu vi jogar, a Holanda campeã europeia de 1988. “Logo após o último fracasso, a Federação Holandesa convocou todos os treinadores para um debate sobre as razões da crise”, descreve PVC, recordando o colóquio com o lendário Rinus Michels, então diretor técnico, com o técnico da seleção, Leo Beenhakker, e Johan Cruyff, técnico do Ajax à época. “Jamais houve uma iniciativa parecida na história do futebol brasileiro”, arremata PVC.
O leitor bobo, como eu, fecha esse capítulo 18 e fica pensando: rapaz, imagina um clube que fosse capaz de reunir, uma vez por semestre que fosse, um comitê de notáveis apaixonados por suas cores, como Zico, Leonardo, Fábio Luciano, Andrade, Carpegiani, Petkovic, Júnior, Vanderlei Luxemburgo, Evaristo de Macedo e Júlio Cesar, para conversar com o atual treinador sobre ideias e filosofia de jogo para o semestre seguinte?
No fim, o livro de PVC ensina que futebol pode ser aquela caixinha de sempre, mas continua a ser “inteligência em movimento”, como percebeu Camus. Um esporte apaixonante em que o intercâmbio de ideias, planejamento, paciência com o treinador, “jogadores com fome” de mostrar serviço e dois ou três craques entrosados são uma receita e tanto para formar times campeões. Um dia a gente chega lá.
Até que enfim essa diretoria deu uma dentro, tirou o cu da reta no momento exato. Será que foi instrução de nosso famigerado Departamento Jurídico?