O que nos resta depois de tomar um gol aos 52 do segundo tempo, chorar os três pontos derramados em pleno Maracanã e despencar até o meio da tabela do Campeonato Brasileiro?

Espernear nas redes sociais é uma saída. Mais válido, porém, é se entupir de filosofia. Com uns pistaches então, fica delícia.

Dia desses, li no jornal sobre uma velha tese de Adorno e Horkheimer, publicada em 1944 – mesmo ano, olha aí, de outra obra crucial: “Histórias do Flamengo”, do cientista social Mario Filho. Mas a descoberta da dupla foi a seguinte: o avanço tecnológico e os barulhos do progresso seriam imitados pelos gestos humanos, que com o tempo iriam se tornando rudes e barulhentos também.

Como exemplo, os alemas mencionavam as portas, os carros e as geladeiras, que tinham de ser fechados com brutalidade, repetindo os maus tratos dos governos autoritários. O colunista da “Folha” Mario Sergio Conti então reparou: “Viva o progresso —as portas de geladeiras e carros caros hoje fecham como plumas.”

Era isso, Conti, era isso! Impressiona como só os profetas enxergam o óbvio (podem me citar). Senão, vejamos:

O Flamengo, desde sempre, foi um clube movido pelo barulho, alimentado pelo escarcéu, e prova disso foi a simbiose, desde os anos 1940, com a algazarra promovida pela Charanga Rubro-Negra. Não à toa, nossos escretes mais triunfais, nossas mais letais equipes poderosas (Furacão 2000) foram carinhosamente apelidadas de máquinas ruidosas e destrutivas. Casos do “Rolo Compressor”, do “Bonde Sem Freio” e, claro, da “Máquina de Títulos” de Jorge Jesus, o comandante que vociferava.

E hoje, com Rogério Ceni? Moderno e esclarecido, o atual treinador busca um Flamengo adequado aos novos tempos, de modos gentis e discretos, anti-truculento na essência, influenciado pelos ventos da mudança que pedem um mundo moderado, sustentável e anti-autoritário. Viva o progresso, passamos a ver um Flamengo cortês, que praticamente pede “licença” e “por favor” antes de atropelar os adversários, que gemem e sucumbem comovidos pela boa educação.

Nas outras cinco partidas – Vélez Sarsfield, Palmeiras, Coritiba, América e Coritiba de novo – o Flamengo foi assim, silencioso e infalível como os possantes modernos e as geladeiras de luxo, o que nos fez passar 23 sossegados dias sem levar um mísero gol. Com direito a classificações na maior paz.

Ceni é um profissional antenado e de alta cultura, que faz de seu time um dispositivo sustentável e ecológico. Foi-se o tempo do bondão sem freio fumegante do Ronaldinho, chegamos enfim à era da bicicletinha elétrica desgovernada, pilotada pelo descacetado Rodrigo Muniz. Muito superior aos selvagens das motocicletas, com seus caronas e canos de descarga incivilizados que empesteiam o Brasil.

Mas não se pode vencer sempre. Para minar nossa cortesia e boas práticas ambientais, surgiram uns-e-outros cheios de bebida enérgica na cabeça. E foi aí que Ceni, que se acostumara a orientar o time da sacrossanta paz do seu lar, soprando no ouvidinho de seus comandados através de um discreto fone, precisou berrar, se exaltar, segurar seus atacantes pelas orelhas. Não podia dar certo, claro.

O silêncio rubro-negro que precedeu o esporro durou até os 12 minutos do jogo de sábado. Foi a hora que o fabuloso Aderlan deu de chaleira do meio da área, em bola que parou no ângulo direito de Diego Alves. Se houvesse o prêmio Puskas para gols cagados, ninguém superava o fabuloso Aderlan, bravo lateral do Bragantino.

A partir daquele gol inacreditável, as engrenagens flamengas voltaram ao estado natural de ruídos. O ribombar de desespero, as britadeiras do caos, as cornetas rigorosas, os corações a palpitar. Que fazer? É assim o Flamengo, uma instituição que há quase 130 anos se equilibra entre a paz e o caos, entre o silencioso remo a cortar as águas e a arcabuzada dos rojões dos torcedores.

Nunca fui filósofo e só estive em Frankfurt para beber cerveja. Mas, se tudo que aprendi nas gerais do Maracanã fizerem sentido, esse tropeço após 16 partidas sem derrota só pode render lições importantes.  Isto, claro, se forem avaliadas de forma tranquila, íntima e pacífica pelos jogadores e comissão técnica.

Por enquanto, o que continua a gritar alto são os números do time: alta incidência de chances claras, boa soma de chutes com perigo, 60% de posse bola e domínio territorial do campo. A bicicletinha não breca, só não pode capotar.

Como o profeta disse um dia, o torcedor flamengo não tem um dia de paz. Mas é preciso que seguremos o barulho desse Bragantino 3 a 2 e não o descarreguemos de maneira bruta nas redes sociais ou nas costas dos jogadores. Afinal, como ensinaram os brilhantes mestres Solich, Carlinhos e Jesus, é no silêncio diário e na calmaria dos treinamentos que se apertam as engrenagens dos grandes Flamengos da história. Pergunte a Adorno e sua turma.