Quando nóis era menino pequeno lá em Barbacena aprendemos com a tia que lecionava Ciências que existiam três dimensões espaciais – altura, largura e comprimento – e que o passar do tempo nada tinha a ver com essas três grandezas, deixem o tempo quieto, meninos! Mas as tias, apesar do bom coração, escondiam o jogo pra caramba e depois, com professores futuros e leituras complementares, descobrimos que o conteúdo que a tia botava na roda pra nós era só parte da verdade.
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O espaço tá todo enrolado com o tempo, ou, como disse um desses físicos fodões bons de frase: “O espaço está irremediavelmente associado ao tempo, em um mundo quadridimensional”. Vou nem pirar aqui e falar das teorias modernas, altamente alucinógenas, que indicam que pode haver um numero quase infinito de dimensões.
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A realidade é que enquanto na mecânica clássica não-relativista do Seu Newton o tempo é tomado como uma unidade de medida universal, uniforme por todo o espaço, e independente de qualquer movimentação, no contexto da relatividade especial do Cumpadi Einstein o tempo é tratado como uma dimensão adicional às três dimensões espaciais, não podendo ser separado dessas, pois a taxa de passagem do tempo observada para um determinado objeto depende de sua velocidade em relação à velocidade do observador. Uma conclusão genialmente foda e acessível, que até idiotas do meu naipe conseguem entender.
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Depois desses três parágrafos bizarros que você teve que ler talvez esteja nesse instante pensando — O Flamengo nessa situação e esse otário vai ficar de letrinha de física? — e não posso sequer dizer que você não tem um pouco de razão. Mas estar familiarizado com o conceito das deformações da malha espaço-tempo é importante para entender o que está acontecendo com o Mengão no Brasileiro.
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Não vejo motivos para me estender sobre o jogo com o São Paulo em si. Resultado previsível em cima de um adversário em crise com um elenco mais fraco e uma camisa mais leve. Um desempenho sofrível do Flamengo diante das altas expectativas da Nação, mas foram três pontos pro saco. Tudo isso era visível a olho nu e em tempo real naquela janela de 90 minutos regulamentares em que o Brasil parou, pra torcer ou pra secar o Flamengo. Apenas rotina na vida do líder de audiência e maior produtor de conteúdo do Brasil.
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O que foi altamente não rotineiro foram as consequências do 2×1 muquirana. Nem vou mencionar que o resultado serviu pra mandarem pro Carpini, técnico dos saopaulers, aquele email dizendo Favor Comparecer ASAP ao Departamento de Recursos Humanos. O Flamengo, incorrigível bombador de IDH e gerador de empregos indomável criou mais uma vaga de trabalho no mercado nacional e lá foi o ex-treineiro dos cara buscar novos e excitantes desafios. Um dos bordões corporativos mais calhordas e hipócritas que existem, porque procurar emprego não tem nada de novo e muito menos excitante. Pô, não ia mencionar e acabei mencionando. Foda-se.
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A consequência mais grave e preocupante foi outra. É que com o resultado o Flamengo, que não vencia as duas primeiras partidas do Brasileiro desde 1984, quando tinhamos envergando o Manto invencível apenas os brabos Fillol, Leandro, Mozer, Adalberto; Andrade, Adílio, Bebeto, Tita e Nunes, fora Lico e Edmar. Um time que até ganhou vários jogos seguidos, mas não se deu bem. A ausência do Zicão era uma cicatriz muito recente, não fechava de jeito nenhum e doía pra cacete. Mas tergiverso.
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Pior que tergiversar, eu menti na cara dura. A consequência mais grave e preocupante mesmo da pelada de quarta-feira foi ver o Flamengo, inopinadamente, ocupar a liderança do Campeonato Brasileiro de Futebol Masculino Adulto Profissional. Algo que não acontecia há heróicas 115 rodas do Brasileiro. Mais exatamente desde a 38ª rodada da edição de 2020, que consolidou o título daquele ano e foi disputada em 25 de fevereiro de 2021. Que loucura, meus amigos! O Flamengo líder do Brasileiro e com miseráveis 36 rodadas a serem jogadas. Isso não pode ser de Deus.
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Resta evidente que diante desse fenômeno até os newtonianos mais conservadores, luditas, terraplanistas e Testemunhas de Jeová concordam que a malha espaço-tempo se deformou de forma inequívoca. Um evento cientificamente extraordinário, perfeitamente irregular e, na minha abalizada opinião de leigo, escandalosamente inconcesso. Não percam seu tempo procurando o significado de inconcesso no pai dos burros, é só uma forma afrescalhada de dizer proibido. E o papo de proibido não é exagero. Explico:
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Ocupar a liderança na segunda rodada é algo que agride totalmente os fundamentos mais elementares da doutrina do Deixou Chegar, Fudeu! Doutrina ortodoxa, cheia de regras e liturgias, não é bagunça, não. E tampouco apelo ao misticismo animista, aponto uma impossibilidade lógica, física e dimensional, pois não se pode chegar a algum lugar em que já se esteja. Portanto, no contexto do rubronegrismo racional ocupar a liderança nesse momento precoce é, antes de tudo, um paradoxo lógico, contrário ao nosso sistema de crenças.
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E tudo que desrespeita a lógica, e não pertença às esferas místico-religiosas, é prejudicial para o desenvolvimento, bem estar e paz de espírito de uma nação. Pois a filha primogênita da Dona Ilógica é a burrice, uma praga que exaure a alma de um povo, que passa a acreditar em imponderabilidades e absurdos dos mais cabeludos. No Flamengo não há necessidade de se repetir os mesmos erros cometidos pelo Brasil. Especialmente em ano de eleições. Somos melhores do que isso. Temos que ser muito melhores. É o Brasil que deveria repetir os acertos do Flamengo, principalmente nas paradas de grana.
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Me desculpem os desvios, hoje eu tô foda. Retornemos ao assunto. Notem que os três verbos que nomeiam a doutrina, Deixou Chegar, Fudeu! exprimem movimento, um deslocamento da figura A para a figura B, enfim, exprimem ação e até mesmo reprodução (caso a conversa enveredasse por esse caminho, coisa que não permitirei). O que ele não exprime de jeito nenhum é o Mengão paradão na esquina do alto da tabela por 36 rodadas seguidas.
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Imaginem, o Flamengo, em órbita estacionária, imóvel, inacessível, sem mobilidade, sem a adrenalina ascencional, cultivando banhas pela afluência e sedentarismo. Igualzinho às nossas elites rentistas mais abjetas. Porra, isso combina com o espírito indômito, proleta e pegador da mulambada universal? Forçando um pouco a barra e pisando num campo do conhecimento que desconheço profundamente diria que neuroliguisticamente essa liderança na segunda rodada é broxante. Não nos fala ao pau (perdão pelo androcentrismo). Como disse Manoel, o maior homem do mundo (homem sábio e profundo, semeou conhecimento): Eu tive que subir lá no alto para ver, energia racional, a verdadeira luz da humanidade.
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Do alto é fácil perceber que esta liderança extemporânea, apressadinha, afobada, é uma intromissão indesejada em nossa agenda de costumes e contraria os protocolos elaborados ao longo de anos e anos de observação obsessivamente atenta das massas rubro-negras ao desempenho de seus esquadrões. A torcida do Flamengo sabe se o time desse ou daquele ano vai ser campeão antes mesmo que o próprio time se aperceba do fato. E a torcida, ouso me arvorar em seu porta-voz nesse item da pauta, não tem saco mesmo pra ficar 36 rodadas tomando conta do lugar do Flamengo e tendo que secar os alemão que ficarem de graça pra cima da gente. Vai ser chato demais!
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Como está sendo, exatamente agora, meio chato, melhor dizendo, bastante embaraçoso, o mero fato de ocupar o G4. Nada contra a proximidade com a liderança, é até uma boa estratégia, proximidade com a meta final, amigos por perto e inimigos mais perto ainda, ok. Mas olhem os times que nos acompanham nessa estadia fora de hora no G4. É com essas companhias que o Flamengo deve andar? É com essa galera que ele vai ficar parado na esquina por nove meses? Esses caras em Dezembro estarão, forçosamente, disputando páreos no Jockey Club de Assunción. Não é adequado, conveniente ou inclusivo. O Flamengo deveria deixar essa pá de sujeira ir embora. Apertar, tudo bem, mas jamais acender agora.
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Acredito que todo mundo que chegou até aqui no texto fecha com aquelas ideias sobre o Flamengo seguir, ao seu modo, a lógica. Logo, todos concordam que 2019 foi um cometa (o pequeno corpo gelado do Sistema Solar que dá mole e passa muito perto do Sol, esquenta muito e começa a liberar gases e dar rolés muito loucos galáxias a fora e não o busão em que os cariocas viajam quando obrigados a ir a São Paulo) que não voltará a aparecer na presente era geológica. E notem que aquele time canônico treinado pelo Jesus capeta ficou apenas 22 rodadas na liderança. Não é o pessimismo ou a pouca fé, é a lógica que nos diz que não vai acontecer de novo. Não antes de outros 124 anos.
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Pro Flamengo ganhar esse Brasileiro, que a gente gosta muito de ganhar eles, tem que seguir o protocolo histórico e não o protocolo psicodélico 19 never ends. Tem que ser daquele jeito, vários perrengues homéricos, com sprint na reta final e chegada apoteótica para desespero dos detratores. O Flamengo se encarapitar na liderança agora é ir contra a lógica do tempo, que nós já convencionamos que está imbricada, entrelaçada, superposta às outras três dimensões espaciais que regem o universo em que vivemos.
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Para o rubro-negro todo ano é tempo de ser campeão, é uma condição própria do nosso protagonismo vocacional. Mas nem todo período do ano é pra ser vivido do alto de uma montanha inatingível. Não importa se o local é ideal, tem um tempo certo pra tudo. Liderança de Brasileiro não é alimento pra se comer cru. Todas os manuais de etiqueta desportiva asseveram que não deve ser consumida antes de 36a, 37a rodada, no mínimo.
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E para que não reste dúvida não custa nada lembrar que os gregos tinha dois termos para se referir ao tempo: chronos e kairós. Enquanto o primeiro se referia ao tempo cronológico ou sequencial (o tempo que se pode medir, de natureza quantitativa), Kairós possui natureza qualitativa, o momento indeterminado no tempo em que algo especial acontece: a experiência do momento oportuno. Em teologia kairós é o tempo de Deus, a eternidade, enquanto khronos é de natureza quantitativa, o tempo dos homens. E os homens, vocês sabem, mais cedo ou mais tarde fazem merda. Não dá pra confiar nos cueca.
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No Olimpo, Kairós era o deus do tempo oportuno, o filho caçula de Zeus. Pros retóricos gregos, Kairós caracterizava o momento fugaz em que uma oportunidade ou abertura se apresenta e deve ser encarada com força e destreza para que o sucesso seja alcançado. Porra, isso é muito Flamengo. É óbvio que esse é o nosso tipo de tempo. Kairós é nosso fechamento desde 1895, e todo ele ano ele aparece e nos derrama suas graças, mesmo que a gente às vezes demore um tempão pra perceber.
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Se o Flamengo for mesmo encarar essa façanha inaudita de ser líder da porra toda por 37 rodadas, beleza, onde estiver estarei. Estamos aqui pra qualquer parada, ainda que nos custe os olhos da cara e a saúde física e mental. Claro que não podemos jamais esquecer que o Flamengo não escolheu estar tão cedo nesse sanhaço físico/lógico/filosófico voluntariamente, foram os outros times otários que já largaram dando mancada.
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Não estou terceirizando culpas, mas não podemos ser injustos com o Flamengo. Que está bastante no sapato, sem exibições feéricas e nem dando shows de bola que poderiam chamar a atenção, despertar inveja, ímpetos ou o desânimo nos alemão. Só não dá pra gente pedir pro Flamengo perder uns pontos aí pra sair do flagrante só porque estava na hora errada no local do crime. Isso não vai rolar mesmo.
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O Flamengo está até humilde demais, com uma bolinha meio mixuruca. Jamais imaginaríamos que com duas vitórias água de salsicha e míseros quatro gols seríamos líderes do bagulho, com o melhor ataque e o artilheiro da competição, que, pasmem, não é o Pedro. Isso é quase inacreditável. Mas é o que temos pra hoje.
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Domingo vamos voltar a Porcoland para, se tudo obedecer à física, à lógica, à retórica grega clássica e não ocorrer uma violenta deformação na malha espaço-tempo do tipo errado, dar outra pisa naqueles fregueses que desde 2017 só apanham do Mengão no Brasileiro. Bora lá lógica, física, retórica e ciências culinárias, façam aquelas suas paradas, contamos com vocês. Aqui é Flamengo, as coisas são desse jeito não porque queremos que sejam, mas porque elas simplesmente são assim. Vai, Flamengo, maltrata quem te adora. Brincadeira tem hora.
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Mengão Sempre
Maravilha de texto. O flamengo é uma constante imparável de emoções. Já já voltaremos para nossa rotineira bipolaridade e lá pro fim do brasileiro a máxima do deixou chegar prevalecerá!
Penso diferente. O Mengão, ocupando o centro do universo, parece estático. A posição na tabela condiz com nossa superioridade e, aos poucos, a pontuação também irá refletir isso. A doutrina do “tudo nosso, nada deles” tem seu lugar agora. Vamos nos esquecer que existem pontos perdidos nesse nosso 9o título do Brasileirão. Mengão sempre!
Excelente texto, pra variar!