O jogo do Flamengo com a LDU foi uma experiência sensorial de grande complexidade. Durante os 96 minutos de bola rolando o torcedor pôde viver os mais variados estados de alma. Fomos dos píncaros da euforia justificada, com direito a consultar aos preços das tarifas dos voos pra Tóquio, — no gol de Gabigol aos 2 minutos; passamos pelos plácidos vales da fé restaurada com a gloriosa ressurreição de Everton Ribeiro; e na base da mancada despencamos, atarantados e sem fôlego, até as sombrias grotas do desespero genuíno de quem tinha a certeza mais absoluta de que o Flamengo ia perder pra queles equatorianos arrombados outra vez.
Foi daqueles jogos malvados em que o torcedor se pergunta se há sentido em passar o dia inteiro, a semana inteira, esperando por um evento de desfecho duvidoso em que vai passar mal como um desgraçado. Claro que há, é exatamente por isso que o sujeito nasce com um determinado número de células que vão definir para qual time vai torcer.
Se as tais células torcedoras forem no número certo o sujeito vai ser Flamengo. Um acontecimento feliz da genética, mas que não garante em absoluto que o sujeito geneticamente premiado só vá se divertir. Pelo contrário, com o tempo o felizardo vai aprender que vai ganhar muito, se divertir à beça, mas sempre vai ser tudo no maior perrengue possível. E nesse joguinho de ontem o perrengue foi extremado, a mozarela quase derreteu.
O jogo começou maravilhoso, combinando muito com o pré-jogo animadíssimo no Roda-Roda Jequiti. O Flamengo entrou todo bonito, apesar do calção preto, e teve boa estratégia no cara-ou-coroa, escolhendo atacar pro gol certo no segundo tempo. Com a bola rolando nem parecia que era o Flamengo o time que habitava a região costeira do continente. Os cara da LDU não viram a cor do balão, a posse do Flamengo chegou a escandalosos 70%, houve risco que os delegados da Conmebol, ou observadores das Nações Unidas, interditassem a partida.
O gol saiu logo, dando ainda mais confiança aos nossos, que exibiram seus talentos sem nenhum constrangimento. Faltou um pouco de pontaria, como de hábito, mas rolaram inúmeras jogadinhas bonitas e o domínio rubro-negro era absoluto. A LDU, a não ser pelo nojento rodízio de faltas, não esboçava a menor intenção de perturbar a exibição do Flamengo. É até compreensível, não é todo dia que se tem a oportunidade de assistir ao melhor time da América de tão pertinho. O que também não os impediu de baixar a madeira.
O Flamengo soube se aproveitar desse momento de admiração da LDU e em uma troca de passes coreografados Bruno Henrique mete o seu 10º gol em Libertadores pelo Flamengo, coroando pictoricamente uma jogada de videogame. O Flamengo também é uma experiência mística, quando joga bonito exalta os sentidos, inspira e acalma. Naqueles breves minutos entre o segundo gol e o fim da etapa regulamentar o Flamengo era temido, secado e admirado. Quando o Flamengo foi pro vestiário eram 40 milhões de rubro-negros no mundo tocando os pés de lótus de Krishna.
Mas o Flamengo que voltou do vestiário era outro. Sem Diego Alves, sem fôlego, sem ânimo, sem iniciativa, astênico e malsão, o Flamengo não acertava lé com cré. Até El Alcatro errava passes. Na defesa a boca aberta era generalizada. Os cara mandando a bola na área sem parar e a nossa comunidade zagueira parecia cimentada ao solo equatoriano, ninguém pulava pra cortar os cruze.
O barata-voa se instalou em nossa cidadela. O gol de Borja nem surpreendeu, estava escrito há mais de 10 mil anos em caracteres cuneiformes, em tabletes de argila descobertos em escavações na Assíria. Mas bem que o Hugo podia ter simulado alguma intenção de pular na bola. O gol atarantou ainda mais a mente da rapaziada, os equador só não nos saraivaram de gols porque são dramaticamente perebas. Pra nossa sorte fizeram só mais um gol antes de pregarem também. O que já era suficiente para por areia nas pretensões de dominação absoluta cultivadas pelas hordas bem vestidas.
Era evidente que o Flamengo, como um todo, do goleiro ao ponta esquerda, passando pelo emérito professor Rogério, padecia dos nefastos sintomas da hipóxia. Fadiga, palpitações, atordoamento, desorientação, movimentos descoordenados, confusão, perda de memória e problemas cognitivos causados pela baixa concentração de oxigênio no sangue. Condição clínica a qual os times que visitam os antiesportivos 2.850 metros de Quito ainda não sabem como driblar. Cérebros insuficientemente oxigenados fazem merda. Em 2019, ainda sob o jugo de Abel, também apanhamos lá.
Felizmente, a ciência é como o show business, não para nunca. Em 2019, um annus mirabilis em muitos campos do conhecimento, William Kaelin, Gregg Semenza e Sir Peter Ratcliffe ganharam o Nobel de Medicina com seu trabalho conjunto sobre a resposta hipóxica das células. Para não sucumbir num ambiente com escassez de oxigênio como o Casa Blanca o corpo precisa começar a produzir mais hemoglobina – quanto mais células vermelhas trabalhando, maior será o aproveitamento do oxigênio disponível. Pobrema é que essa produção é difícil pra caramba pros organismos não andinos ou himalaios.
Os sábios laureados descobriram que um complexo de proteínas chamado HIF (Hipoxia Inducible Factor) faz com que os genes aumentem a produção de um hormônio chamado eritropoietina (EPO), que por sua vez, faz aumentar a quantidade de células vermelhas que transportam oxigênio pelo nosso organismo.
Os caras terem descoberto como esse mecanismo funciona foi importante pra ajudar a produzir melhores medicamentos contra a anemia, usando o HIF pra estimular a produção de hemoglobinas. Ou seja, a malandragem dos times que jogam no morrão, um doping aeróbico descarado, inexplicavelmente não combatido nem pela Conmebol e nem pela WADA, está com seus dias contados. O bonde sem freio da ciência é brabo. Quem não é burro ou mal intencionado tem que respeitar.
Pelo bem da credibilidade e do interesse popular no futebol do continente, acabou prevalecendo a fé inabalável em todos os santos da ecumênica e politeísta torcida do Flamengo. Aos 39 do segundo tempo os apelos aos céus foram atendidos pela intercessão impositiva de São José Roberto Wright. Uma graça que se materializou através do amigo Corozo cometendo um dos penaltis mais idiotas e escandalosos da história da Libertadores da América.
Penalidade convertida com a habitual eficiência de Gabigol, que com seu 16º gol se tornou o artilheiro histórico do Flamengo na Libertadores. Conquistando o raro privilégio de ser citado em livros, jornais, revistas e verbetes de Wikipédia na mesma linha que Zico per omnia saecula saeculorum. Difícil até para os criativos conceber glória maior.
Foi um sufoco do cacete, mas o Flamengo conseguiu escapar daquela atmosfera maligna e muquirana em oxigênio com três valiosos pontos, a liderança consolidada em seu grupo e a façanha inédita de ter ganho as três primeiras partidas da Libertadores pela primeira vez em 17 participações. A classificação está bem encaminhada, já sabemos que os três adversários são fracos. O Flamengo só depende dele mesmo. É aí que mora o perigo.
Sapato, sapato, sapato.
Mengão Sempre
Peço de novo uma ajuda – nao consigo encontrar a integra do segundo tempo de LDU x Mengao. Imagens, claro. Alguem sabe um link?
Obrigado – SRN
O único que encontrei foi esse, companheiro.
Abs e SRN
http://disq.us/p/2gw9pja
Estou aqui rezando para que o Hugo logo mais quebre a tenebrosa estatística dele de 100% de desaproveitamento, ou seja, toda bola que vai para o gol, entra.
https://globoesporte.globo.com/futebol/times/flamengo/noticia/analise-a-exigencia-e-eficiencia-defensiva-que-ajuda-a-desvendar-o-misterio-de-ribeiro-no-flamengo.ghtml
Muito boa a matéria do Cahe Mota explicando as atuações do ERibeiro desde que Arão foi pra zaga, ficando claro que a queda de rendimento do Miteiro tem nome e sobrenome: Rogério Ceni.
Comentei que achava ser hora de largar o pé do Ceni, mas colocar o ERibeiro pra marcar lateral é dose. O Isla não marca ninguém, só chega atrasado e atrapalha.
Aí, sem nada pra fazer além de coçar meu cansado saco, resolvi dar uma força pro RC escalando o time ideal:
Diego Alves (quando sair da intubação)
Rodrigo Caio e Filipe Luís
Arão, Gérson e Diego
Éverton Ribeiro e Arrascaeta
Gabigol, Pedro e Bruno Henrique
Agora é com ele. Já fiz a minha parte.
Rasiko, taí gostei, um belo 2,3,5 como se jogava antigamente. Só falta o Flávio Costa com seu WM, diagonal o escambau aliás dizem que ele copiou o tal WM de um gringo que andou por aqui.
Quando eu leio por aí que o Ceni diz que vai dar um descanso ao Diego Alves, eu tremo na base. Vocês se lembram de um senhor chamado Muralha?, pois é, alguém inventou o nome pro cara e se não for o Diego o Hugo “Muralha” vai se nosso goleiro. Por que não o Cesar? Não digo “dai a Cesar, etc.” pra ninguém me gozar.
Pelas goleadas que os times brasileiros andam aplicando por aí nos outros sul-americanos, podemos concluir: os nossos times estão muito bons, ou os outros estão uma merda. Voto na segunda hipótese.
Diego, com muita garra, ganha a disputa antes da linha divisória mesmo caído, passa pro João Gomes, este de calcanhar pro BHenrique que avança, passa pro Arrascaeta no meio da intermediária adversária que faz o corta-luz, deixa pro Gabriel que devolve pro BH mandar de fora da área na gaveta por cobertura.
Portanto, a pintura não foi só a conclusão do BH, mas a jogada toda em 2 toques verticais e 2 horizontais perfeitos, de pé em pé, além da participação fundamental do Arrascaeta sem tocar na bola atraindo a marcação e deixando espaço livre pro Gabigol servir o BH na medida.
Um dos gols mais bonitos que já vi. Não à toa a fifa sugere o prêmio puskas. Isso é futebol de alto nível.
Foi lindo!
Bonito mesmo. Mas eu ainda acho o do Arrascaeta contra o Vélez mais bonito, como comentei no último texto do Dunlop. As pessoas elogiaram mas não deram a devida importância, na minha opinião. O “gesto técnico” foi inédito, ao menos para mim. Ainda não sei com que parte do pé ele acertou a bola. Passado algum tempo de 2019 e no ombro do gigante, vejo o Arrascaeta como o grande craque desse time. O seu estrabismo parece lhe proporcionar uma visão de 300 graus. Sei lá, parece um magarefe. Craque.
O Arrascaeta tá em outro patamar. A inteligência dele impressiona e a visão do jogo, como vc diz, impressiona mais ainda. Nesse lance ele fez o corta luz de costas pro Gabigol.
Lendo o que a diretoria fala, se for assim mesmo, sera o seguinte:
O Ceni vai ter que ativar todos os zagueiros que temos. Léo P e Noga, tb.
O Arao vai ter que sair la de tras, ele nao é zagueiro.
Se o Zico desculpa a imbecilidade do Caio no puxao de camisa por ele jogar do “lado errado”, eu desculpo entao as besteiras do Arao por ele nao ser defensor.
Hugo como goleiro é brincadeira. Tiraram toda confiança do rapaz depois do drible e hoje ele é uma piada. Com piadas nao se ganha nada.
Goleiro é a posiçao mais carente do time. Aqui a diretoria é obrigada a investir. E nao pouco.
Bem, talvez o Ceni inventa colocar o Arao de goleiro?
Estamos ganhando tudo e eu estou reclamando sem fim, com medo do adversario realmente forte.
Cada uma, Henrique, cada uma!
SRN
Não há muito que escrever a respeito do jogo.
Fizemos um primeiro tempo de alta categoria, mas há que se convir. Como jogou mal a LDU. Não acertava um mísero passe de dois metros. Poucas vezes vi um time errar tanto, pelo menos em jogos da Libertadores, vale dizer, entre times supostamente de boa categoria.
No intervalo, ou na PAUSA, como colocou muito bem o Henrique, aconteceu o improvável. Fenômenos terrestres não explicáveis fez com que aumentasse a altitude de Quito.
Com seis minutinhos tomamos um gol e com mais nove o segundo.
Nunca vi, sinceramente, a altitude funcionar em tão pouco tempo.
A coisa foi tão estapúrdia que, da incrível posse de bola da etapa inicial, acabamos o encontro com os equatorianos predominando neste aspecto.
Nossa posse deve ter ficado apenas perto dos 30%. Não há altitude que justifique.
Para sorte nossa, um dos mais fracos jogadores do fraco time do morro alto, como bem frisou o Grão Mestre, cometeu um dos penalties mais inconcebíveis de todos os tempos, e emplacamos a terceira vitória consecutiva na Libertadores.
Como já estava escrito há mais de seis mil anos, a nossa classificação é certa. Resta saber – e torcer para tanto – que cheguemos aos 18 pontos ganhos, eis que mais é impossível, se não surgir um Florentino Perez sudamericano que resolva modificar o regulamento.
Tranquilas SRN
FLAMENGO SEMPRE
PS – já que citei o Florentino, aproveito para ME congratular, com extrema modéstia. De há muito venho dizendo que se joga na Premier League o melhor futebol do mundo. Este ano, vão extrapolar. Manchester City versus Arsenal já está certo. Dentro de poucas horas o Manchester United vai confirmar a sua classificação e, espero com muita convicção, o Arsenal vai conseguir a sua.
Será a consagração total, e, em contrapartida, a desmoralização para os demais países europeus.
Há muitos erros que o mal uso das teclas justifica, mas fenômenos fez não dá.
Arthur, para mim o jogo do Flamengo só termina quando eu leio tua crônica.
EXCELENTE.
Flamengo sempre.
Sequei o Arsenal.Não há de ser nada. Manchester, ainda neste mês, será a Capital da Europa.