Os torcedores do Flamengo não assistem aos jogos do time, disse o Ruy Castro certa vez, mergulham nele como se fosse um banho morno. Nada mais verdadeiro, mestre Ruy. Imagine estar na quarta-feira passada solidamente escarrapachado num surrado sofá de couro capitonê, como eu estava, mergulhando naquele imenso banho público, naquela jacuzzi termal, naquela Caxambu tricampeã da América, naquele Ganges, naquele Rio Jordão para 40 milhões de almas que são os jogos do Mengão na Libertadores.
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Em pouco tempo submergi, imponderável, flutuando nas tépidas profundezas do genuíno encantamento, naquele estado peculiar de pura privação sensorial, quando “do nada” um acontecimento extraordinário se deu:
Algo chamou a minha atenção!
E não era o estupefaciente fardamento oficial do Flamengo, com seus característicos calções brancos e os meiões rubro-negros, em conformidade com o que dispõe o estatuto do clube, com o qual os jogadores adentraram o mal cuidado relvado maracanesco.
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Enquanto uma correnteza gentil e morninha me envolvia, tão convidativa e amável que poderia nos próximos 90 minutos me levar flutuando até a injustiçada costa de São Gonçalo, do outro lado da Baía de Guanabara. . . percebi, num rasgo de clarividência inabitual que o Flamengo estava encontrando dificuldades jamais previstas para submeter a primitiva equipe chilena. Que apesar da comovente indigência técnica, se recusava a assumir de uma vez o papel do cordeiro sacrificial que lhe tinha sido previamente designado. Os chile se aferraram ao seu direito de embarreirar o roteiro sonhado por todos os rubro-negros e serem impiedosamente goleados pela equipe mais poderosa, menos vazada e mais bem vestida das três Américas.
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Mas, como assim? Que reviravolta, que peripécia, que plot twist era aquele? O Flamengo exercia seu totalitário controle das ações, não deixava que os palestinos ficassem muito tempo de posse do brinquedo, mas era incapaz de machucar os dimenó. Que foram pouco a pouco se afeiçoando ao jogo, ou melhor, se afeiçoando ao pouco pau duro que o Flamengo exibia na hora de concluir suas tramas ofensivas.
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Não fosse o pictórico gol de Pedro e o Flamengo correria o risco de ir para o vestiário no intervalo amargando um empate em casa com o time mais fraco do Grupo E. Com o perdão da mala dicha, talvez não fosse uma má ideia. Porque o Flamengo voltou para o segundo tempo exibindo os mais conhecidos sintomas relacionados aos jogos na altitude, a falta de fôlego, a baixa estamina e uma peculiar desorientação espacial. Os jogadores do Flamengo são antes de tudo atletas, mas, fora o canonizável Ronaldo Angelim, não são de aço.
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Tais reações físicas seriam até normais não estivesse o jogo em tela sendo disputado ao nível do mar, com o uso do farto estoque de oxigênio produzido pelas diatomáceas vizinhas franqueado a todos e todas. Mas no segundo tempo o Flamengo, fazendo apenas seu segundo jogo da temporada (Carioca não conta) estava mortinho, esfalfado, exangue. Considerando as credenciais do seu uber preparador físico de ascendência armênia e sobrenome impronunciável nas línguas cristãs o Flamengo apresentava um desempenho físico de surpreendente mediocridade.
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O que poderia justificar aquela decadência aeróbica do Mais Querido? Despertado abruptamente do meu semicoma beatífico e aquoso fiz imediatamente o que qualquer um de vocês faria: procurei apontar culpados. E o meu culpado de estimação estava ali, ao alcance das minhas justiças, em suspense, estático, pedindo pra ser grampeado. Que não poderia ser outro que não o malfeitor e mandrião Campeonato Carioca, macróbio e contumaz ladrão do tempo e do dinheiro do Flamengo.
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Como não existe exercício mais satisfatório para o ego do que fazer previsões do passado, imediatamente construí um libelo acusatório mental listando as inconveniências e desnecessidade praticadas pelo Flamengo no último jogo do centenário torneio praiano. Tite precisava ter escalado algum dos titulares para um jogo meramente festivo? Por que colocar em risco a integridade física e o melhor condicionamento físico dos craques capazes de decidir partidas realmente importantes? Por que não poupa-los de maiores esforços e compromissos, descansando não só os corpos, mas principalmente as mentes da nossa rapaziada mais braba?
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Perguntas que, de certa forma, Tite acabou respondendo na coletiva. Revelando, urbi et orbi, que a ínclita diretoria do Flamengo determinou, top down, que a conquista do Carioca tinha primazia sobre a fase de grupos da Libertadores. Anátema! Não é possível que dirigentes do maior clube do universo ousem comparar competições sediadas em galáxias distintas. Qual seria o método axiológico utilizado para atribuir valor às coisas? Bananas e laranjas, corram aos botes, no Flamengo ninguém é de ninguém! A resposta de Tite deixou transparecer que dar um refresco para os titulares no segundo jogo contra o Nova Iguaçu nunca foi uma opção.
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Os otimistas podem erguer as mãos pro céu e afirmar acacianamente que agora, pelo menos, dos Cariocas priorizados nos livramos esse ano. Ao que os realistas contraporiam que agora é que vai ficar complicado, porque são três, e não duas, as competições suscetíveis à priorizações ex-ofício. O que o torcedor médio, tipo, padrão, daqueles que mergulham nos jogos do Flamengo como se afundassem numa fonte magnesiana em Cambuquira, entende é que ainda tá muito cedo pro Flamengo priorizar competições.
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Na verdade, priorizar tudo bem, para o torcedor todas as competições que envolvam o Flamengo são prioridade. Taí mesmo o nosso recente Mundial de Pesca Submarina que não nos deixa mentir. O problema está em secundarizar competições, como se não houvesse capacidade de sobra para que o Flamengo levasse a cabo o seu ambicioso, mas exequível, projeto de abraçar o mundo com as pernas. Achar que dá pra vencer Brasileiro, Copa do Brasil e Libertadores na mesma temporada é o dever do torcedor, não o reprimam.
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Planejar é preciso, viver não é preciso, beleza, mas pra que cortar a onda dos torcedores antes mesmo que as contingências, circunstâncias e imprevistos nos obriguem a eleger uma competição em detrimento de outra? Deixa acontecer naturalmente, não precisa ficar pensando no pior, atraindo baixas vibrações e cortando o barato das massas.
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O torcedor rubro-negro se fez grande porque, a exemplo da própria entidade Flamengo, não tem medo de buscar a grandeza. Não considera o fracasso e jamais coloca a derrota em perspectiva. É maluquice? É, mas tem dado certo. A torcida do Flamengo procura sempre a evolução, está na sua natureza a busca pelo aperfeiçoamento constante.
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Houve um tempo, não muito remoto, que a maior aspiração esportiva dessa massa era o Flamengo disputar a Libertadores todo os anos. As forças arcoíristas se escarneciam do que parecia ser só mais uma bravata rubro-negra desconectada da realidade fática. Como é que pode agora esse mesmo pessoal, que há dez, quinze anos andava faminto de glórias miúdas não consegue mais se satisfazer com nada menos que o título continental? Bendita ambição rubro-negra.
E o processo evolutivo continua, inexorável. Note que ainda se tensionam em excesso os nervos rubro-negros durante a fase de grupos da Libertadores. Nas atuais circunstâncias a presença do Flamengo nas oitavas em todas as edições da copa continental é mandatória, inescapável, impreterível. Não haveria real necessidade de nenhuma angústia ou afobação com o Flamengo jogando num grupo de quatro onde se classificam duas equipes.
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A Libertadores só deveria começar a ser um drama para a torcida do Flamengo a partir do mata-mata. Não é uma meta exagerada, soberba ou malucona. São 32 clubes que começam, o Flamengo, até pelas forças econômicas, sociopolíticas e gravitacionais, TEM que estar sempre entre os 16 remanescentes da fase de grupos. Sempre! A torcida, a cada edição da traiçoeira, leviana, falsa e biscateira Libertadores da América tem aprendido isso.
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Mas para que o aprendizado da torcida seja completo é preciso que os demais estamentos do Flamengo, elite dirigente, comissão técnica, jogadores e funcionários, também nos ajude a ajudá-los. Deixando, por exemplo, de dar mole contra Palestinos no Maraca em função de decisões executivas baseadas em conceitos fluídos tais como segurança, previdência e e-qui-lí-brio.
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Há que se permitir que a moderada e justificada megalomania que embala os desejos rubro-negros tenha espaço e voz em todas as etapas dos processos de decisão que envolvem o Flamengo. Nesse campo do conhecimento a torcida e, por extensão, o Flamengo, é catedrático. Vamo dar uma pirada aí, Flamengo! Tudo o que se pode acreditar já é uma imagem da verdade. A águia nunca perdeu tanto o seu tempo como quando resolveu aprender com a gralha. Esse papo de águia tem nada a ver com o Flamengo, mas quem escreveu isso não fui eu, foi o William Blake.
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Mengão Sempre
O bom escriba Dunlop vinha dando conta (muito bem) do recado, mas a verdade é que estávamos com saudade dos textos ácidos do Arthur.
Com o seu retorno, podemos cravar: o Enea já é realidade!
Agora, a pergunta que não quer calar: cadê o livro do TRI da América?!
Texto primoroso, que reflete fielmente o rubronegrismo racional. Saudações rubro-negras desde Parahyba!
Por ser o adversário chamado de Palestinos, desculpei tudo. Já basta o genocídio. Os palestinos são bravos e merecem respeito!
Houve um tempo em que cantamos, com orgulho injustificado “Iiiih, Libertadores qualquer dia tamo aí”. Essa era a dimensão de nosso delírio.
Se tiver que priorizar, que seja o Brasileirão. Mais seguro e menos incerto que as copas.
Se o Fla tivesse jogado no mesmo nível desse texto, era papo de 13 x 0 e ressurreição do Mario Filho.
Me perdi e me achei “nessa água morna”, sonhar c libertadores é aturar diretoria mequetrefe tramando contra o elenco exigindo empenho e time titular no ruralzinho de pré temporada é de doer! Agora o Fábio massegonharediam q se vire p nos levar as alturas, e voltar com títulos, isso mesmo, no plural! Q esse ano eu quero liberta, brasileiro, copa do Brasil e mundial!! Como já dizia o sapo boi, “…o guardiola, pode esperar…”
Aulas e aulas. Mas confesso que “a injustiçada costa de São Gonçalo” me pegou pelo tornozelo esquerdo (o direito já não funciona tão bem).
Bora tomar uma na Praia das Pedrinhas (uma água tônica para você, uma beberagem obscuramente cervejável para mim) e denater sobre.