Onde a gente estava mesmo? Ah, sim, em volta do Maracanã, desviando de bandidos e policiais, enquanto o pau cantava e a velha gorda já pigarreava afinando os gogós.
Seguirá tudo como dantes no quartel de Abrantes, em 2018? Detesto spoilers, mas adianto: em dezembro saberemos. O pontapé inicial de um ano penoso ou feliz para o Flamengo, contudo, será dado hoje, neste dia quente e úmido de 28 de fevereiro.
Por ocasião da última partida do ano passado, a cronista Vivi Mariano rolou aqui no blog uma bola açucarada, pronta para ser bicada com estilo, na gaveta ou na geral. Ela suplicava aos desportistas flamengos, do arqueiro ao ponta-esquerda – Jogai por nós! Jogai pela torcida que mais sofre e vibra do Brasil. Nessa crônica de 10 de dezembro, Vivi nos apresentou a Sara, uma amiga que perdeu a visão mas não perde uma exibição do Flamengo, um clube que ela enxerga melhor que muito Zé MBA por aí.
Por quem, afinal, os times se dobram e desdobram? De fato, se um grupo de jogadores não é capaz de jogar por Sara, uma menina que não precisa dos olhos para fitar o vermelho e o preto, vai jogar por quem?
Ao passar próximo à bola rolada por Vivi, dou aquela aceleradinha, miro na direção do elenco e preparo o chute tal qual um Kléberson na final de 2009 do Campeonato Carioca (* 1906–2014 *). Melhor sair da frente porque não sei até onde esse negócio pode chegar:
Joguem, antes de tudo, joguem.
Joguem o que vocês sabem, em nome de deus, dos seus e dos nossos, dos presentes e ausentes; joguem pelos vivos e mortos da história rubro-negra, a mesma que vocês agora podem rescrever com louvor, élan e sacrifícios.
Joguem, claro, por Sara, e pelos colegas rubro-negros de Sara no Benjamin Constant, e pelo saudoso professor Ascânio da Silva, célebre poeta cego que amava o Flamengo acima de tudo e jurava que os maus árbitros eram mais cegos do que ele.
Joguem por Zico e por sua geração encantada, que adoraria ver garotos como vocês os sucedendo como mitos. Sim, pelo Zico que se feria, sangrava e sofria nos treinos, e que ensinou: “Quando a fase é ruim, o jeito é suar mais.” A fase é ruim. Suem mais!
Joguem pelos jovens destaques da Taça das Favelas 2018, que sonham ser como vocês um dia, e que por ora são craques dos escretes do Caixa D’Água de Padre Miguel, de Vila Kennedy, do Barro Branco e da favela do Sangrilá Rosa. Joguem pelos rubro-negros do Barro Branco e do Sangrilá Rosa!
Joguem pelo uruguaio Eduardo Galeano, um fã do grandioso futebol sul-americano, que um dia nos soprou em livro: “Futebol sem torcida é como dançar sem música”…
Joguem por Chico Buarque e seu netinho flamengo, pelo Chico Buarque que cantou há 25 anos, em seu samba “Biscate” que só queria ouvir Flamengo x River Plate (numa rima magistral com leite).
Joguem por Mario Filho, que teve sua cabeça de bronze roubada do estádio que tanto amou – não há, ainda, nenhuma pista das autoridades competentes. O roubo completou um ano.
Joguem pelo porteiro Zé Roberto, que perturbava do Bussunda, o morador da cobertura, até o zelador Miguel quando o papo era Flamengo. O boa-praça Zé Roberto, infelizmente, não vai poder ver o jogo hoje – morreu de bobeira pelas mãos de milicianos em Caxias, sem que sua mãe pudesse enterrá-lo.
Joguem pelos meninos do morro do Urubu, pelos rubro-negros do morro do Urubu, e joguem em especial pela família do menino Emerson Porto, que talvez sonhasse em aparecer nos jornais como vocês. Acabou aparecendo aos 13 anos, num rodapé tristíssimo, ao ser morto por brincar com um cavalo. O dono do cavalo, num acesso de fúria desumana, esganou o menino – apenas mais uma das 30 crianças assassinadas todos os dias no Brasil.
Joguem também pelo tenente rubro-negro de 26 anos Guilherme Lopes da Cruz, subcomandante de UPP que tampouco vai poder ver o jogo, mas gostaria. Caiu tombado este mês durante assalto na estrada do Gabinal.
Joguem, no silêncio do Engenhão, pelos rubro-negros enlutados, pelos cegos e videntes, pelos órfãos e viúvos, pelas crianças e pelos velhos cronistas. E joguem em especial por quem, apesar de tudo, sente que coisas simples como o futebol e o amor pelo Flamengo ainda compensam o que passamos por morar neste mundinho mais miserável que o morro do Urubu.
Belo texto.
Pena que muitos jogadores frouxos do Flamengo se contentam com dispensa de clássico e que a maioria da torcida acha normal um 4 x 0 de rival.
Zico dizia que em 1979-1980 o Flamengo e seus jogadores queriam jogar todo dia, tinham tesão em correr atrás da bola e tesão em ganhar.
Não era Carpegiani, um boneco de posto no banco. Era o time. Inaceitável na época que algum jogador pedisse para ser poupado num clássico num sábado com o próximo jogo sendo quarta-feira. Isso é feio, é covarde.
Os novos não lembram, mas em 1981 o Flamengo decidiu o carioca contra um rival, decidiu a libertadores contra outro time de pancada e brincou com o liverpool. Nenhum jogador pediu para ser poupado. Ganhamos a porra toda.
Talvez por isso o Flamengo seja tão decepcionante hoje. Quem já viu um time com culhão jogar não acredita na facilidade com a qual este time entrega o jogo.
Comovente de verdade!
Belo texto, Dunlop. Belo texto.
Um texto muito maior que o flamengo.
Mas até aí, tudo bem…
O Flamengo é muito maior que o Flamengo.
Parabéns.
Comentário prévio.
Brilhante, Dunlop.
Nem me lembrava mais de Biscate, a história de um rubronegro biscateiro, vendedor de mate e de sua amada, chegada também a biscateira, de outra natureza.
Chico, o fenomenal Chico. Tricolor, criando música com Flamengo versus River Plate.
Mais uma que é INACREDITÁVEL
SRN
FLAMENGO PRÉVIO
Manda colar no vestiário hj!!