Era quase hora de fechar quando entrei ruidosamente na Folha Seca (blém-blóm), e o Rodrigão me espiou por cima dos óculos. Cotovelos fincados no balcão, ele travava animado papo com o Alvaro Marechal, cliente número 6 ou 7 da livraria da rua do Ouvidor, ambos debruçados sobre um livro descascado.

Dei aquela forçada na amizade, perguntei por um lançamento e estiquei os olhos curiosos para a relíquia. Sem poder evitar, o bom livreiro me pôs na roda:

– Sente essa joia que o Loredano achou e me presenteou.

– O autor é uma figuraça, um cubano que foi morar na Itália e terminou no Rio de Janeiro – emendou Marechal. – Repararam na dedicatória? “Para os fiéis torcedores da Vascaxias, do amigo Ramalho Talho de Mamona. Saudações cruzmaltinas etc”.

Tratava-se de uma brochura artesanal, sem a capa, com crônicas e ensaios sobre futebol. Rodrigo me piscou:

– A melhor é essa da página 81, avalia aí.

Como a porta de ferro estava para baixar e o Marechal anunciou que vinha outra tempestade, fotografei as páginas amareladas de qualquer jeito e zarpei. Antes de sair, ainda escutei do Rodrigo:

– Depois de ler, duvido não comprar ingresso para o Flamengo x Palmeiras, apesar de tudo!

O ensaio, devidamente devorado no vagão do metrô, segue transcrito a seguir.

Por: Italo Calvície, o popular Careca do Andaraí

4. O que nos leva a mais uma definição. Chama-se de clássico uma partida que se confunde com a vida e é capaz de tudo explicar. O verdadeiro clássico é um equivalente do universo que nos cerca, à semelhança dos antigos talismãs. Bem, você tem de estar meio doidão para sacar isso.

5. Um sábio mestre afirmou: “Um homem só conhece outro homem depois que joga uma pelada com o semelhante”. Pois o torcedor só conhece um jogador depois que o vê jogar um clássico. É no clássico que o bagre se agiganta, o jovem cria casca e o burro velho se revela, ao tomar aquele cartão vermelho na hora exata em que o time parecia reagir.

6. Clássicos são jogos que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis. Mas também quando se ocultam nas sobras da memória, como aquela vez em que você sentiu o bafo fumegante do cavalão da PM, com sua cara de caixão, e foi salvo por um geraldino desconhecido a quem jamais conseguiu agradecer.

7. Se os clássicos da literatura pedem uma boa poltrona, o clássico no futebol também demanda um lugar e um clima propício. A laje. O sofá de casa. O estádio. Botequim, me perdoem, não combina com clássico. A não ser, claro, que seja o bar de estimação, com turma pequena e o garçom velho de guerra que jamais fica paradão na sua frente.

8. Esmagados que somos pela avalanche de vídeos e coisas para fazer, onde encontrar tempo e motivo para ver os clássicos? É fácil, para tal basta recordar que os clássicos servem para entender quem somos e aonde chegamos.

9. Ao mesmo tempo, é preciso lembrar a lei pétrea: clássicos não devem ser vistos porque “servem” para qualquer coisa. A única razão que se apode apresentar é que ver os clássicos é melhor do que não ver os clássicos.

Por fim, se alguém objetar que não vale a pena tanto esforço e tanto tempo diante da TV, citarei o filósofo romeno Emil Cioran: “Enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma ária com a flauta. ‘Para que lhe servirá?’, perguntaram-lhe. ‘Para aprender esta ária antes de morrer’”.

O metrô chegou ao Jardim de Alah bem na última frase, com letrinhas miudinhas que me esforcei para ler. Diziam:

“Mal aê, Calvino.”