O aposentado catou o jornal ainda bocejando, e abriu direto no caderno esportivo, que o resto nunca prestava mesmo. Ajeitou os óculos e teve de rir ao espiar a manchete: “Crise na Gávea…”. Acho que já li isso antes, pensou. Os espertos olhos azuis reluziram ao confirmar a data no topo da página: 10 de setembro de 2047. Era seu aniversário.
Ao chegar na cozinha, foi recebido com carinho pela mulher:
– Oi amor, a família toda já confirmou presença no almoço festivo – disse a esposa, depois de um beijo. – Como o tempo voa! Sete ponto cinco, turbinado! Tá um garoto.
De brincadeira ele pediu detalhes do cardápio do dia, pois já sabia a resposta. Hummm… Franguinho com quiabo! Seu prato predileto, há décadas, aliás. Faltavam apenas alguns ingredientes, se ele pudesse buscar no mercadão…
Topou de bom grado. Era afinal um sujeito de hábitos antigos: ainda lia jornal de papel, fazia as compras pessoalmente, gostava de um carteado com os amigos na mesma mesa, e não em jogos virtuais. Ah, os bons e velhos tempos…
– Aproveita e passa no play para chamar seu neto – lembrou a patroa. – Ele está batendo bola sozinho na parede, enquanto os vizinhos ficam jogando futebol holográfico e caçoando dele.
Arrumou-se e desceu e, após umas tabelinhas com o neto, tocaram para o supermercado. Apesar da banalidade do ato de comprar mantimentos, ele sempre se sentia diferente ao entrar ali. Bastava passar pela antiga estátua na porta para suspirar um sopro discreto de nostalgia.
Enquanto bongavam limões e maracujás para a caipirinha, o neto notou o olhar perdido do aniversariante, a quem nutria a mais profunda admiração. Vovô viera jovem da Europa, depois de perder amigos e testemunhar atrocidades num país em guerra civil. Chegara ao Brasil com 25 anos, e depois de suar a camisa, ganhou fama e colheu glórias no Rio de Janeiro. Pelo que o netinho escutara, antes de ser um avô pacato e babão era dono de uma personalidade turrona.
Perto das verduras orgânicas, a criança resolveu quebrar o silêncio; puxando-o pela mão enrugada, perguntou então:
– Vovô… Foi aqui, não foi?
Com o português carregado de sotaque, ele tentou fazer graça, mexendo na cabeleira do netinho:
– Ih… Mas já faz tanto tempo… Acho que só você lembra, Pingo.
O neto insistiu. Tinha visto a cena várias vezes na internet, num site velho chamado YouTube. Marcado pela cerradíssima curiosidade infantil, não restou ao velho gringo outra opção que não baixar a guarda:
– Sim, aconteceu aqui. Dá para imaginar?
Seguiram caminhando entre as prateleiras, rodeados de panelas, queijos e metros de linguiça. Ao passarem diante de uma senhora que arrastava um carrinho cheio de latas, bifes e verduras, o velho parou, o olhar perdido no tempo.
– Foi aqui, mais exatamente. Perto da caixa 217. Daqui eu marquei, com a camisa rubro-negra, um dos gols mais comemorados do Maracanã.
– Mas e a trave? Era aonde? – quis saber o neto.
O velho apontou o dedo indicador e sorriu:
– Se eu não estou lelé, ficava uns 25 metros para lá, um pouco mais. Vamos contar?
A criança foi andando abrindo os passos mais largos que conseguia, contando até 25. O gol ficava perto da prateleira de vinhos – portugueses. O aposentado então passou a recordar o lance, ocorrido há quase 50 anos.
– Quando seu avô jogava no Flamengo, vinham umas 60 mil pessoas nos ver jogar. Era o público daquele dia. Tarde de final de campeonato, e a cidade parada. O artilheiro daquele time era um baixinho chamado Edílson. Velho ranheta, nos falamos até hoje. Na época, éramos brigados. Mas isso foi bem antes de botarem o estádio abaixo, bem antes de construírem este gigantesco Walmart Maracanã.
– E por que acabaram com o estádio, vovô? Devia ser bonito…
– Ah, Pingo… Os habitantes da Terra gostam de duas coisas, de futebol e futrica, não necessariamente nesta ordem. Encontrar soluções, que é bom… Primeiro acabaram com sua magia. Depois, o abandonaram para apodrecer. Aí bastou passar os tratores no entulho que restou. Na época, o Rio tinha um governador, era chamado por um apelido que agora me escapa, e…
– Betão! Olha quem é o coroa, Betão!
Passavam dois faxineiros a bordo de um carro de limpeza motorizado, e um deles reconheceu o velho meio-campo.
– Garoto, seu avô era um cérebro! E que pontaria, acertava onde a coruja dorme!
Sem entender a expressão dos tempos do onça (e da coruja), o neto voltou o olhar para o velho, que prosseguiu:
– O relógio marcava: 42 minutos e 50. Finalzinho do jogo. A gente vencia a partida mas precisava de um gol para levar a taça. Ali atrás, perto dos pneus, a torcida adversária já cantava “É campeão”. Do nosso lado, alguns poucos torcedores de pouca fé já andavam para a saída, amuados.
– E você não estava nervoso?
– De que isso adiantaria? Sabia que era a última chance, e tratei de me acalmar. Só olhava a bola, ali paradinha. Pus as mãos na cintura, e pensei em como ia chutar.
A esta altura, o faxineiro começara a filmar e transmitir a cena ao vivo pelo celular, atraindo alguns torcedores mais empolgados ao supermercado.
– Dali, pela distância, o normal seria apelar para a força, e tentar um petardo. Eu optei por bater com o lado de dentro do pé direito, para a bola ganhar efeito e passar por cima dos últimos dois homens da barreira. Mais ou menos ali nos vidros de maionese.
Guardando os óculos, o aposentado se empolgou e começou a repetir o lance, cuidando para não esbarrar nas pilhas e lâminas de barbear.
– A arquibancada lotada fazia um gesto engraçado com as mãos, como se emanasse energia para mim, ou melhor, para a bola, uma coisa maluca que dava certo. Olhei mais uma vez a bola, olhei o gol…
Compenetrado, as mãos na cintura, o avô percorreu três passos ágeis e curtos e, ante um silêncio respeitoso de todos em volta, simulou a cobrança. A mesma cobrança de 2001.
– Corri, bati e “plum”!
O velho Dejan ficou observando a bola imaginária subir uns cinco metros, tomar um efeito mágico e cair. No ângulo. Apesar da idade avançada, ergueu os braços e começou a correr enlouquecido, com o neto saltitando a seu lado. Fregueses, caixas, funcionários e uma penca de torcedores recém-chegados desataram a vibrar, quase arrebentando as mãos de tanto aplaudir. Sim, Petkovic tinha feito de novo o gol do tri, somente para que seu neto pudesse vê-lo.
– Que gol, vovô! E bem onde a caramuja dorme!
Perto de onde o neto e avô se abraçavam, os dois faxinas voltavam ao trabalho:
– Que choro nada, Betão, sai para lá, eu tô cheio de coriza, cidade poluída do cacete… Mas me admira você, diz que é louco por futebol, aí pouco ligando… Uma cena tão bonita, a criança com o avô… Não tem coração não, Betão?
Com cara de paisagem enquanto ajeitava uma lata de leite condensado, Betão deu de ombros:
– Gostar de futebol eu gosto. Mas sou macaco velho nesse mercado, enquanto tu é cabacinho. Quase todo mês eu vejo essa cena, igualzinha: mês passado mesmo apareceu o Renato Gaúcho, outro dia foi aquele político baixinho, ano passado veio o Zico…
(Para Osvaldo Soriano e Eduardo Galeano, que contaram história semelhante, só que verídica e bem escrita, no livro “Futebol ao sol e à sombra.)
Fantástico Marcelo,
Parabéns pelo belo texto. Emoção na veia.
Abraços,
Cid
Valeu, grande Cid.
Tocante, Marcelo! SRN
Espero sinceramente que fique só na ficção. Valeu!
Aí, não mais que de repente e no final da noite escura, surge um mascarado, além do mais preguiçoso e desfibrado, chamado Diego, para desespero de Don Diego Maradona, corre, como sempre displicente e indiferentemente, para a bola e, pimba, cobra, uma vez mais muito mal um penalty, no que resulta mais um VICE para o nosso Flamengo, o Rei do título pelo menos na Copa do Brasil, para desespero de 40 milhões que ainda acreditam em milagres.
Fim de papo.
Emputecidérrimas SRN
FLAMENGO SEMPRE
PS – antes que me esqueça. Em 2019, espero sinceramente, tudo vai ser diferente,
Pelo menos do Presidente, Vice-Presidente, Manda=chuva e, mais do que tudo, PÉ FRIO NÚMERO UM, Banana de Melo estaremos LIVRES.
Vade Retro, Bananovich.
Perdemos a penultima chance de “alguma coisa” em 2017.
Nao acredito na ultima.
Bem, o time nao esta mais progredindo, o sistema nao esta entrando na cabeça deles, sao ruins de cabeça e de pé.
Seria o momento para se livrar de varias jogadores, na frente de todos o G-ERRO, que é uma bosta de jogador.
Abrir enfim para jogadores mais jovens e mais calejados.
O BASEL consegue, ano atras de ano, fazer isso.
Jah o “grande” Flamengo nao.
Algo estah errado.
E essas eternas festanças de fatos passados séculos atras, tb nao ajudam muito. Nao perco a auto-estima por ver um timeco como esse perdido no campo. Fico é com raiva de tanta incapacidade e SEI que seria possível mais, muito mais.
Mas para isso precisamos mudar esse elenco e esse presidente que deveria – segundo ele mesmo – nos ter trazido uns 5-6 títulos e nao trouxe nenhum.
Vamos relembrar que era para estar em 2013 (!!!) lutando para ser campeão do Brasil e em 14 para “Tokyo”. A partir de lah seria claro que Brao era connosco e Liberta teria que contar com a gente. Então 15, 16, 17 …. em típico horário pontual brasileiro, o bondo nao chega, o trem nao chega e nos estamos esperando por Godot.
Antes de chutar a ultima lata – deixa relembrar mais uma das boas: Em 2014 (diretoria do Flamengo) era para ter-mos UM MILHAO de sócio-torcedores.
Eh esse o “nivel” do clube. Do “maior do mundo”.
SRN
Dureza, mas ainda não é para jogar a toalha. A temporada ainda nos reserva alegrias.
Emocionante marcelo.
Eu devo ter lido 95% dos textos daqui da república. Todos são ótimos, sem dúvida, mas somente um tinha sido emocionante para mim. O texto da vivi mariano que se chama “Flamengo é dentro da gente”. Esse gol do pet foi muito marcante na minha juventude e no meu entendimento sobre o Flamengo. Talvez seja porque hj é a final da CB e eu esteja torcendo para que o pé do diego faça as magicas que faziam os do pet e que o guerrero seja o nosso capetinha, sei lá.
Parabéns.
Agora aqui no site há, para mim, dois textos emocionantes.
Vlw!
Dessculpe me meter onde não fui chamado, Yuri, mas não resisti à realidade dos fatos.
De Pet ao bosta do Diego, uma distância abismal.
Realmente, o pèzinho de Madame Bovary do Diego fez toda a diferença.
Pena que para o Cruzeiro.
Entristecidas SRN
FLAMENGO SEMPRE
Obrigado, Yuri!
“o faxineiro começara a filmar e transmitir a cena ao vivo pelo celular,” em 30 anos será bem diferente.
O faxineiro, a cena ou o celular, grande Chagas? Ou tudo e mais um pouco? Forte abraço!
Em 2047 estarei mais morto do que estou hoje, mas o grande risco para quem ainda estiver vivo é ficar comemorando esse gol do Pet por toda eternidade, aliás, como se faz todo ano com o único, pasmem! nosso título mundial.Pelo andar da carruagem não se trata de mera elucubração pessimista. E não vale dizer que eu não sou flamengo, sou bostafoguense, vai cantar em outra freguesia e essas baboseiras que assacam(epa!)os que olham o nosso atual time com olhos de ver.
Como esquecer e como não lamentar
Muito bom Marcelo.
Grande abraço e SRN.
Lindo!
Rubro Negro de Paris, França.
J’ai vécu ce but grâce à internet, de l’autre coté de l’océan, il était presque minuit ici en France.
Je n’oublierai jamais.
SRN direto de Paris.
Merci!