É a melhor das roupas, é a pior das roupas, mas definitivamente não é o traje ideal para uma pré-estreia de gala. Ainda assim, estou no sofá, de moletom, meias de lã e camisa de basquete do Flamengo, no aguardo do documentário “Onde estiver estarei”, curta-metragem sobre as andanças em Lima dos cupinchas Claudio Cruz & Moraes (que dupla!).
Faço pipoca. Ou por outra: penso em fazer pipoca. Começo a me lembrar o que vivemos em 23 de novembro de 2019, a mente divaga e a preguiça vence, de virada. Opto por um creme-craquer com requeijão e uma borrifada de mostarda por cima, lanche campeão.
Gosto dos velhos personagens, admiro os produtores do filme, Pedro Asbeg e Arthur Muhlenberg, mas a ansiedade em relação a esta (em bom português) avant-premiére está em buscar sentir novamente um pouco daquele turbilhão saboreado ano passado. Exatamente um ano depois, ainda não faço a menor ideia de como descrever aquele turbilhão, e sento no sofá para tentar descobrir.
Já assisti a todas as reportagens sobre o Flamengo x River Plate, li e reli os livros, crônicas e artigos (crônica é contar um causo, artigo é explicar o caso, ensinou Rubem Braga). Fica evidente que exprimir em frases aquela sensação é tarefa mais complexa do que achar o Arrasca livre dentro da área aos 43 minutos do segundo tempo, como fez Bruno Henrique.
Mauro Cezar, em sua crônica no UOL, rememorou a final como “um dos jogos mais espetaculares da história. E hoje ele completa um ano. Nenhum de nós voltou de lá sendo a mesma pessoa. Voltamos melhores”.
Arthur Muhlenberg também deixou registrado em crônica – e em livro – o lance eterno da glória idem: “Gabigol, investido de todos os poderes do mundo livre, mete a canhota na bola com tamanha convicção, tamanha verdade, tamanha certeza de que a nossa hora tinha chegado que nem esperou ela bater na rede para começar a tirar a camisa e correr pro abraço com o eterno.”
Já meu companheiro de arquiba Rafael Amaral resumiu tudo muito bem em outra mídia, via áudio de zap: “No gol da virada, primo, a alma saiu do corpo”.
Sim, esportivamente foi a vitória redentora, transformadora, de abraçar o eterno, de deixar a alma se pirulitar do corpo. E não apenas aos flamengos: a decisão da Libertadores na capital peruana foi uma façanha futebolística pura, límpida, absoluta. Não contou com condições artificiais como gols fora de casa, meia hora de VAR, prorrogação, penalidades, influência de STJD. Foi lindo, e qualquer amante do esporte, se teletransportado dos anos 1930 ou dos anos 1950, direto do Maracanã novinho em folha, entenderia com exatidão e lágrimas o que se passava diante dos seus olhos. Um personagem de “The English Game” que aparecesse ali tampouco precisaria perguntar nada, com exceção talvez sobre a cor das cabeleiras. Um roteiro perfeito ou, como dizem os filósofos, sem caô.
Mas nada disso explica o que sentimos, e sim por que o sentimos. Sim, quebramos cadeiras de plástico, beijamos cachorro na boca, soltamos morteiros no vizinho bacalhau (perdão, turma) e ficamos, como meu amigo Leco, fritando no chão feito um robalão fora d’água. Mas o que foi exatamente aquilo que sentimos? Catarse coletiva. Transe. Euforia acumulada. Não, amigos, foi bem mais do que isso.
Ali, naquele sofá, enquanto aguardava a Fla TV soltar o bendito filme, tive a luz, ao recordar um trecho escrito pelo francês Emmanuel Carrère. Em livro muito interessante sobre o subestimado poeta russo Limonov, Emmanuel se impressiona ao descobrir que seu personagem – poeta, mendigo, best-seller, guerrilheiro, inimigo de Putin e prisioneiro – foi capaz de, ao meditar e trabalhar sua respiração num presídio sinistro na Rússia, atingir a máxima elevação espiritual, a iluminação mais pura, a plenitude do vazio. Sim, o que a sabedoria popular chama de nirvana, quando o tempo se anula e a alma, como afirma o poeta russo, é raptada do corpo.
Nas palavras do francês Carrère, quando somos alçados a esse clarão inimitável e inconfudível, sentimos “alguma coisa que é da ordem de um imenso alívio. Exonerados, o desejo e a angústia que são a base da vida do homem. Eles voltarão, claro, pois a menos que sejamos um desses iluminados que os hindus afirmam existir apenas um a cada século, não podemos nos radicar nesse estado. Mas experimentamos o que é a vida sem eles e sabemos de primeira mão o que é ser resgatado.”
É isso, eu reflito. Sim, pelas barbas de Sidarta Gautama, foi isso o que nos aconteceu. O que as redes estufadas por Gabigol provocaram não foi uma explosão de sentimentos, mas a implosão de todos eles, o fim do apego, a libertação das vontades individuais. Horas depois, claro, descemos, pousamos novamente em solo terreno e reencontramos o desejo e a angústia, além da mobília aos pedaços. Mas jamais seríamos os mesmos. Como exprimiu o poeta Eduard Limonov, falecido de câncer em 2020, “nenhum castigo pode me atingir, saberei transformá-lo em felicidade. Não retornarei às emoções do homem comum.”
É isso o Flamengo, uma entidade viva e eterna, capaz de banalizar até um êxtase espiritual como o nirvana, ao levar 40 milhões de não hindus, ao mesmo tempo, a atingir tal estado da alma. O que explica, no fim das contas, por que só o Pedro está jogando bem (ele não foi a Lima), e o mau posicionamento do time em campo atualmente: é duro jogar futebol quando se ainda está levitando.
Abocanho o creme-craquer e lambo a mostarda no dedão. O filme começa, e a câmera sobe por cima da multidão na Candelária.
Acabei de perceber que acho que creio em milagres.
Uma semana de treino – depois dela um time tinindo.
Dos seus dedos e teclados para os olhos de Deus!
eu só sei que quase morri de nervoso…pqp !
que jogo foda foi esse …
meu irmão, parabéns pelo texto.
SRN !
Esse texto confirma que “as palavras são pobres pra exprimir” toda beleza e emoção que ele descreve. E futebol – e Flamengo – só tem sentido com essa alta dose de adrenalina. Virada em 4 minutos nos acréscimos nos únicos dois lances geniais do time durante todo o jogo? Só o silêncio que o Pablo Marí não entendeu como resposta.
Extase levitando, esse seu texto. Que maravilha!
Beleza, Dunlop! Saúde, meu irmão, pra continuar escrevendo assim!
Estamos nos cuidando. Saravá!
Pelas barbas do Sidarta Gautama (adorei a expressão), um grande texto.
Marcelo, finalmente, depois de décadas casada e anos divorciada de um flanágico, entendi o poder que o Flamengo exerce sobre vocês, obrigada! O nirvana coletivo por certo é mais forte que o individual; afinal, diz a premissa durkheimiana, o todo é maior que a soma das partes. Parabéns, e que você siga me iluminando!
Salve Rita, é por aí. Deve ser por isso que torcedor xinga, bufa e geme tanto, é só um modo mais peculiar de inspirar e expirar num momento de sofrência.
Marcelão,
Foi isso! Perfeito! Para atingir o Nirvana, valeu cada segundo, cada perrengue… Foi épico desde os preparativos para conseguir estar lá até o apito final!
Texto pica das galaxias. Sensacional.
Outro texto irado
Parabens fera!
Belo texto, sabor mostarda. E quero ver outra decisão mais tranquila, sem emoções finais. Mas aquela foi épica
Eu ainda estou levitando
Jamais saberei reproduzir em palavras o que senti ao viver e fazer parte da Glória!! Nada é Impossível!!! SRN
Precisamos ir ao Tibete ver se é parecido. De ônibus, claro.
Demais fera! Nirvana!!
Dunlop, pra variar excelente texto. Epifania seja um outro termo, talvez até mais apropriado, para esses encontros transcendentais. A sensação do artista diante do que ele julga o sagrado. James Joyce tem um livro com o título.
Salve Cabo Xisto, leitor de alta patente! Na minha compreensão a epifania é aquele velho sentimento de quem “encontra a última peça do quebra-cabeças e consegue ver a imagem completa”. O nirvana, além de uma grande banda, é mais esse arrebatamento, um repentino rapto da alma, quando somos sugados e colados ao universo. A merda da coisa, ou a delícia, é ter de voltar.
Dunlop, obrigado pelo “leitor de alta patente”, ainda bem que patente não foi o cabo, para gáudio do Carlos Moraes.
Tô de olho.
Tô de olho.
Uma pintura!
SRN
O que um cara comum como eu faz após chegar ao topo do Everest? Ou ver nascer seu primeiro filho(a)? Não sei, talvez o mesmo que vc descreveu Dunlop, voltar ao planeta,acordar pra realidade ou simplesmente continuar nossas “vidinhas” simples. Mas de qualquer forma, obrigado Flamengo por existir. Quem sabe eu possa outra vez alcançar o Nirvana. Parabéns e SRN Dunlop, tu escreve tal qual nossos melhores craques desfilam pelos gramados.
Lindo texto! É uma honra ser citado por ti, camarada Dunlop! SRN
Fera demais, Dunlop!
Cada um, a sua maneira, sabe o que viveu naquele dia.
Infelizmente, não estive em Lima, não por falta de vontade, mas porque sair de Brasília até lá estava absurdamente caro. Algo que será comum nas finais de Libertadores. Na champions, a galera pega o carro e vai pra cidade da final. Aqui vai ser só na extorsão pela via aérea ou no perrengue do busão.
No final das contas, horas antes da final constatei que tinha que ter ficado “em casa” mesmo. Meu filho estava com pneumonia e ele só tinha 8 meses. Nada que antibiótico e parceria da esposa resolvesse pra dar aquela fugida das 17 às 19 hs do dia 23/11/19. E assim, assisti ao jogo com dois velhos amigos (um flamenguista e outro vascaíno) na casa dos meus pais, debaixo de um temporal.
O jogo foi perfeito, o melhor que vi na vida! Devemos relembrá-lo sempre! Na minha opinião, deixou o Brasil 2 x 0 Uruguai (de 1993) das Eliminatórias da Copa de 94 pra 2º colocação.
Abraço e SRN!
Que foda.