Algumas pessoas têm sentido falta dos meus textos aqui no blog. Meu irmão, meu filho, minha filha, meu neto, meu genro. Família é tudo.
A explicação para a ausência é simples. Tirando alguns inspirados devaneios do porra-louca do Dunlop, que já escreveu até sobre sumiço de barcos, o que fazemos no RP&A é tratar de futebol. E como tudo indicava que o bretão só voltaria ano que vem – quando, devidamente vacinados, os torcedores poderão encher novamente os estádios –, achei por bem me dedicar a ler e reverenciar a competente persistência do Arthur. Pra mim, não dava.
Tudo está muito chato e frio. Acompanhei a disputa de pênaltis contra o Racing quase como se estivesse assistindo a Larissa e Lamia, os lanternas do campeonato grego. Sábado, 19 de dezembro, um dos maiores ídolos da história recente do Internacional se despediu do clube no Beira-Rio. Os jogadores bateram palmas, cantaram, o arremessaram para o alto. D’Alessandro recebeu homenagens no telão, mulher e filhos no gramado, se emocionou, chorou, no entanto faltou o ingrediente principal: nas arquibancadas, ninguém. Despedida da depressão.
Nada como um dia após o outro e uma noite no meio. Domingo, 20 de dezembro, o futebol renasceu na mais emblemática das casas esportivas brasileiras. E tanto na bola quanto na atitude, o jogo teve nome e sobrenome: Gerson Santos da Silva.
E já que citei o Arthur, aproveito para discordar do trecho em que o chefe escreve que “até o Bahia treinado pelo neanderthalense Mano Menezes encontrou um jeito de neutralizar o Flamengo e se aproveitar dos vacilos da marcação rubro-negra”. Até a expulsão de Gabriel, Bruno Henrique fizera um golaço, o próprio Gabriel perdera uma excelente oportunidade e o Bahia tomava um vareio de bola. Arthur deu uma bicuda maldosa na brutal dificuldade em se jogar com um a menos desde os nove minutos do primeiro tempo. Tá certo que Filipe Luís já é um senhor, mas revejam o lance do último gol e reparem que ele não tem forças sequer para comemorar.
Além disso, desnível técnico entre um time e outro é algo que precisa ser consolidado a partir do momento em que o couro come. Se não, pra que jogar? Para fortalecer o argumento, fui à tabela e pesquei as partidas em que os atuais seis últimos colocados roubaram pontos dos seis primeiros. A lista é longa: Vasco 2 x 1 São Paulo, Flamengo 1 x 1 Botafogo, Bahia 3 x 0 Atlético Mineiro, Goiás 1 x 0 Inter, Grêmio 1 x 2 Sport, Palmeiras 1 x 3 Coritiba, São Paulo 1 x 1 Bahia, Botafogo 2 x 1 Atlético Mineiro, Inter 2 x 2 Bahia, Vasco 0 x 0 Grêmio, Goiás 1 x 0 Palmeiras, São Paulo 1 x 1 Vasco, Atlético Mineiro 0 x 0 Sport, Inter 2 x 2 Coritiba, Goiás 0 x 0 Grêmio, Botafogo 2 x 1 Palmeiras, Coritiba 1 x 1 São Paulo, Sport 1 x 1 Grêmio, Palmeiras 1 x 1 Goiás, Palmeiras 2 x 2 Sport, Bahia 1 x 1 Palmeiras.
Faltando uma dúzia de rodadas para o final da bagaça, a turma da rabeira já tirou cinquenta pontos de quem briga nas cabeças. Dirão alguns: ah, time que quer ser campeão não pode dar esses moles. Tomara. Porque se isso for verdade, temos ainda mais chances do que imaginávamos: nos confrontos contra os seis últimos, o Flamengo perdeu apenas dois pontos. Atlético Mineiro, oito. São Paulo, nove. Como diz Téo Benjamin, não existe dia fácil na série A do Campeonato Brasileiro. (Favor esquecer o Flamengo de Jorge Jesus. Não dá para viver de amores do passado.)
Gabriel teve uma recaída em seus surtos de estrelismo – que pareciam domados – e quase nos tirou da batalha. Quis enfeitar um passe simples com uma trivela chavosa, errou feio e tentou dar um migué, pondo a culpa no juiz. Concordo que a vida dos jogadores de futebol tem sofrido algumas mudanças bruscas, só que eles precisam se adaptar rapidamente a elas. A história dos braços para trás. O fim das malandragens, deduradas de forma inclemente pelo VAR. E agora mais essa: como os estádios desertos permitem a todo mundo ouvir tudo o que se diz em campo, acabou esse papo de desabafar sugerindo ao juiz trocar a marca do xampu. A autoridade pode ter um ataque de pelanca e sacar o vermelho. Curioso que, na transmissão pelo PFC, o comentarista de arbitragem Sandro Meira Ricci apoiou o exagero de Flávio Rodrigues, garantindo que, se ele não expulsasse Gabriel, perderia o controle. Como pudemos observar logo adiante, o apitador manteve a partida bem controladinha. Certo, Sandro?
Tivemos muitas coisas bem boas. A dedicação coletiva. A milagrosa defesa de Diego Alves quando o jogo estava três a três, além de outras duas difíceis no primeiro tempo. O comovente e recompensado esforço de Filipe Luís. A ressurreição de Bruno Henrique, que fez o primeiro gol, deu o passe para o segundo e participou do início das jogadas do terceiro e do quarto. A espantosa objetividade do Pedro. E, claro, a atuação indescritível de Gerson.
Em 2014 eu escrevia o blog “Questões do Futebol”, no braço digital da revista piauí, e houve um jogo do Cruzeiro na cidade de Huancayo, no Peru, pela Libertadores. (Coincidentemente, Everton Ribeiro estava naquela partida.) O meio-campista Tinga entrou no segundo tempo, no lugar de Ricardo Goulart, e bastava tocar na bola para alguns torcedores do Real Garcilaso reproduzirem gestos e guinchos de macacos. Escrevi um post em que defendia uma radical tomada de posição por parte do futebol brasileiro, que obviamente jamais viria e não veio. Pouco mais de seis meses depois, publiquei um desalentado texto sobre as ofensas racistas dirigidas ao goleiro Aranha, em Porto Alegre, no jogo entre Grêmio e Santos pela Copa do Brasil. A quem interessar, botei aí embaixo os links para essas duas postagens.
Ramírez desconsiderou o respeito e traiu a idolatria que seus conterrâneos nutrem, entre vários outros, por Higuita, Córdoba, Mina, Armero, Asprilla, Rincón, Cuadrado, Zapata, Rentería, Borja, nosso querido Berrío. E o que dizer de Mano Menezes? Caiu a máscara de um dos grandes enganadores que o futebol brasileiro já conheceu, e que parece ter fechado a tampa de uma carreira em irresistível decadência. O presidente do Bahia, Guilherme Bellintani, melhor e mais consciente dos nossos dirigentes esportivos, foi rápido e preciso na decisão de demitir o treinador, apesar de ter aprovado uma nota oficial dúbia, em que o clube não deixa claro o motivo da dispensa.
Embora seja doloroso admitir que há tanto a ser percorrido, ao menos as coisas começaram a andar. A reação de Gerson representa um importante passo no combate à naturalização e para que o racismo estrutural seja firmemente denunciado, sempre que puser suas tristes manguinhas de fora. Infelizmente, situações similares ainda ocorrerão e muitos outros textos precisarão ser escritos. Enquanto isso, sugiro a todos que vejam e revejam, os que têm filhos e netos que mostrem a eles, o documentário “AmarElo – É Tudo Pra Ontem”, cujo ponto de partida é o show de Emicida no Teatro Municipal de São Paulo.
A dívida é colossal e há muito passou da hora de começar a pagar.
PS 1: Para ler o post sobre as atitudes racistas sofridas por Tinga, publicado na piauí em 17 de fevereiro de 2014, clique aqui. Um dos parágrafos saiu truncado, mas sem prejuízo ao contexto.
PS 2: Para ler o post sobre as atitudes racistas sofridas por Aranha, publicado na piauí em 29 de agosto de 2014, clique aqui.
“Com toda sinceridade, não consigo ver racismo no ocorrido no último domingo.”
Meu querido Carlos Moraes, se alguém me mandar calar a boca, eu mando logo para a puta que o pariu. Não levo desaforo para casa. Quando menino, a gente respondia: “cala a boca já morreu, quem manda aqui sou eu.”
Agora imagina o cara ouvir “CALA A BOCA NEGRO.”
Na realidade, não se trata de crime de racismo, mas de crime de ofensa racial, com toda a certeza, se é que efetivamente o Ramires disse isso.
SRN!
Tudo bem.
Pensamos a mesma coisa.
Só que você, caro Aureo, colocou condições – SE É que efetivamente o Ramires disse isso.
Pela rapidez do lance, visto repetidamente, fiquei muito maiscom a hipótese de que o Gerson não poderia ter certeza do que lhe foi dito, SE È que alguma coisa foi dita.
Fraternas SRN
FLAMENGO SEMPRE
Não sou de passar pano, de aliviar e muito menos de defender o indefensável, mas entendo que a colocação “SE É que a ofensa existiu” injusta e não cabe para alguém como o Gérson, como já disse em outro comentário. A indignação dele foi genuína, espontânea e imediata. Mesmo passados os primeiros momentos, quando o emocional assume o (des)controle, Gérson seguia com o coração e a respiração acelerados, denunciando a ofensa racista durante a entrevista do intervalo e demonstrando a ausência de banalidade ou malandragem, como sugeriu o Mano Menezes. Não esqueçam, nobres advogados, que antes das rígidas regras jurídicas estão as evidências humanas e são elas que devem ser levadas em consideração e respeitadas em primeiro lugar. Caso contrário as vítimas – seja de ofensa racial ou estupro – se tornam suspeitas e objetos de escárnio, fazendo com que tudo permaneça como sempre foi sob o comando de uma Elite cruel e desumana que não tem o menor interesse em qualquer mudança fundamental, entre elas, o respeito à diferença de raça e gênero..