Como o octa brasileiro do Flamengo ficará registrado na história?

Duas narrativas talvez disputem a vitória, cabeça a cabeça, VAR a VAR, ao longo dos anos.

“Ah, meus netos, foi o campeonato mais estranho da história do futebol nacional. Tão insólito que ninguém parecia querer ganhar, talvez com medo do presidente da época aparecer com seus seguranças para entregar o troféu. E fomos campeões, mesmo com o time pisando na língua, na última rodada, graças a um empate épico entre Inter x Corinthians, em que o goleiro paulista, que tinha quatro braços, fez a diferença.”

Ou, quem sabe:

“O Flamengo foi gigante, minha netinha, vou te contar. O Rodrigo Caio estava na maca na véspera, depois de ter Covid-19, e foi para o jogo contra o São Paulo que o havia enxotado um ano antes do Morumbi. O Rogério Ceni também chegou gigante e montou o time para a frente. O juiz foi meio safado, nosso goleiro Hugo era jovem ainda e deu mole, mas a valentia flamenga foi bafejada pela sorte, e ganhamos contra tudo e contra todos, 71 pontos e taça na estante.”

Uma coisa, no entanto, será incontestável: foi o triunfo de um Flamengo que gosta de gols – de fazer e de tomar. Foram 68 gols em 38 rodadas, graças a um trio de ataque que já entra para nossa história – Gabriel fez 14, Pedro 13 e BH, 9. Foi o time mais goleador do campeonato, e um dos que mais tomou gols também – 48 gols sofridos.

Os últimos segundos de tensão total, portanto, como aquela aliança do filme do Woody Allen que não sabia se caía para dentro do rio ou na calçada, o título ficou com quem mais gosta de gols. O escrete que aplicou goleadas e placares elásticos que entram para os almanaques, como os 5 no Corinthians, os 4 no Grêmio, mais 4 no Santos e um festival de 3 a 0 e 3 a 1 nos dois turnos. O triunfo, como Filipe Luís resumiu bem, de um “time de caráter”.

E olha que a torcida ainda nem sabe direito se esse é o time do Ceni, do Jesus ou mesmo do Dome, já que o ano pandêmico e totalmente anormal não deixa claro se vencemos pelo que fomos ou se ganhamos pelo que somos, ou seremos.

Só numa coisa todo mundo concorda: é um time fanático pela alegria dos gols. Por aninhar a criança no berço, por arrematar, arrombar as redes, assinalar e atravessar a meta. Um time que só quer botar no filó, balançar a roseira, balançar o véu da noiva ou o agrião no meio da horta; meter o boi com asas, a bola na caçapa, o côco no balaio e a gorduchinha na rede.

O Flamengo, mais do que os outros 19 times, jogou numa tara total de botar a juriti para cantar, colocar no buraco da fechadura, chocalhar o limoeiro e completar ou concluir para dentro do retângulo.

Um time que gostava de conferir, converter, definir e deixar lá dentro. Derrubar a coruja, meter de telhado, disparar “É disso que o povo gosta”, empurrar a demônia, encaçapar, ensacar, enfiar e entrar na casa da viúva.

O Flamengo octa maltratou a torcida? Sim, mas acima de tudo estava o tesão por entrar com bola e tudo, estufar o barbante, estufar os cordéis, executar os caras, encher a estopa, finalizar bonito, furar o arco ou guardar na gaveta.

Para alegria do povo pela TV, foi um grupo que queria ver o lambari no puçá, o peixe na rede, a bola na forquilha, na caixa, na orelhinha da girafa, onde a coruja dorme.

Que venham mais títulos, com craques que saibam invadir a cidadela, mexer no marcador, dilatar o placar, marcar o tento, por a maricota na rede, quengar pro gol, ou, como cunhou por fim o inigualável Stanislaw Ponte Preta, testar a infiel para o berço.

Os outros times até chutaram bem a bola, e marcaram um golzinho aqui e ali. Mas só o Flamengo octacampeão jogou por amor ao nosso idioma.