Estava aflito feito um vira-latas em dia de batida policial, mastigando os dentes e chorando no banho, quando resolvi zapear um amigo mais velho em busca de alívio e respostas. Estamos diante do jogo mais importante da história do Flamengo? Mas e em 2009, já não houve um Fla x Grêmio catártico, mágico, proparoxítono? Não foram com estas palavras, claro. Mas ele logo me respondeu, após ponderar como os bons sábios:
“Sim. (Digitando…) É o maior jogo da nossa história pois tem o potencial, caso a gente conquiste os pontos necessários, de ser o jogo inaugural de uma nova história rubro-negra.”
E completou por áudio, citando, creio, Platão: “E cara… A gente precisa ganhar essa porra”.
Concordei, agradeci, e me pus então a pensar no destino, esse insensato, que nos pôs um Fla-Flu às portas do jogo de nossas vidas. O profeta Nelson Rodrigues, quando escreveu “o Fla-Flu começou 40 minutos antes do nada”, bem podia ter nos avisado que o clássico também nos prepararia para o tudo.
Passei a tentar lembrar o primeiro Fla-Flu que vi ao vivo, e não consegui. Recordei vagamente de um Alcindo já de careca branca, de um Sávio tropeçando na camisa larga demais. Teria sido na Gávea? Em Laranjeiras? Na rua Paissandu? Desisti. Deve haver uma magia indescritível nos Fla-Flus que nos faz achar que é tudo um sonho, e apagar o jogo, como um sopro, de nossa mente.
Lembro de um dos primeiros Fla-Flus no Maracanã, às portas do estádio, em que vi um lance de gênio de um policial montado. Meu bravo pai tentava proteger umas 13 crianças e adolescentes quando o militar em seu corcel irrompeu em cima da turba, avançando contra dois torcedores flamengos que brigavam. “Ele roubou minha camisa!”. “Eu nada, ele que pegou a minha!” Com um trote rápido, o guarda tomou posse do Manto Sagrado em disputa, espiou rápido e bradou: “Diz o número!” “Quatro!” “Sete!” O do número errado foi tomando bordoada até o rio Maracanã, coitado, além de gatuno era ruim de aritmética.
Jamais houve um Fla-Flu desimportante, e para conferir isso basta viajar no tempo (até para ajudar o tempo a passar hoje). Eram tardes de uma cidade mais vazia e mais romântica, e de tradições que não voltam mais. Uma delas: quando o Mengo vencia o tricolor, um freguês ia ao Café Lamas e pintava o placar no espelho do restaurante, em pó branco de alvaiade, às vistas de todos os fregueses. E ainda ficava um remador flamengo ali, de guarda, para o caso de algum descontente querer apagar. Eram tempos, ainda, do bigodudo Valentim, que era quem tratava do gramado das Laranjeiras, e o fazia com uma máquina de cortar grama puxada por um simpático burrico, cujo nome se perdeu na história do futebol carioca… (Ainda há descendentes do bichão no futebol, a maioria nos gabinetes de confederações e na salinha do VAR – him-hom!)
Ouso dizer que qualquer grande episódio histórico foi precedido por um Fla-Flu. Duvidou? Pois saiba que em 1914 o Flamengo enfiou 3 a 2 no Fluminense (dois gols de Riemer e um de Gumercindo); dois dias depois, o Império Austro-Húngaro invadia a Iugoslávia e começava a Grande Guerra Mundial. Até hoje não ficou comprovado se os dois fatos têm relação. A queda da Bolsa de NY em 1929? Teve Fla-Flu pouco antes – 1 a 0 para o pó-de-arroz. Na Segunda Grande Guerra, então, a coisa foi límpida e clara. O moral das tropas brasileiras andava para baixo, os italianos e alemães crescendo, quando pelas ondas do rádio chegou a informação: Flamengo 6, Fluminense 1, com chuva de gols de Pirilo. A guerra estava ganha.
Tivemos Fla-Flus felizes, tristes e os dilacerantes, como o do início do ano, dias após a trágica partida dos Garotos do Ninho – o Fla-Flu das lágrimas, onde um Maracanã inteiro passou o clássico assoando o nariz, sem conseguir ainda crer.
O clássico do último domingo teve, ufa, menos emoções – um torcedor já disse que o maior momento de suspense foi quando o treinador Marcão tirou o Ganso – mas o meia desta vez não xingou ninguém nem saiu chutando a grama. Aproveitei, depois do segundo gol, para perguntar ao meu amigo mais velho, mais sábio e com mais memória, qual havia sido seu primeiro Fla-Flu. E ele definiu, de prima:
“Como assim, primeiro? Só houve um Fla-Flu. Estamos nele até hoje.”
Deve ser por isso que o tempo não passa, diacho.
FLA-flu. O primeiro que me lembro não vi mas escutei pelo rádio. Em 1969 a televisão estava começando a chegar na cidade do interior do Paraná. Tinha 9 anos, e nos domingos com jogo do Flamengo a missa era pela manhã, depois almoço e as 17 horas todos na casa de alguem com o rádio em cima da mesa de jantar com todos em volta. Dominguez foi expulso e o Mengão roubado, perdeu de 3×2. Depois com 12 anos, em 1972, já morando no Rio de Janeiro, a primeira vez no Maracanã foi outro FLA-flu, dessa vez com vitória. Os dois foram jogos da final do estadual.
Lindo e magico texto!!! Parabens!!!
Espetáculo!
E vamos matando o tempo pra ele não nos matar!
SRN