O que poderia haver de mais importante na noite da última quarta-feira, fiel leitor, do que ver o Flamengo jogar, vencer o Emelec e arrancar os três pontos mais dramáticos desta década para o clube rubro-negro?
Bem, para o jovem Marcos, apenas um dos 37,6 milhões de rubro-negros espalhados por esse mundão, havia outra singela prioridade: catar algumas latinhas de alumínio para poder comer.
E, vamos e venhamos, poucas noites são mais propícias para a coleta de materiais recicláveis do que um jogo do Flamengo na Taça Libertadores. Os constantes traumas e micos pagos nos últimos anos, numa competição famosa por ter mais juiz frouxo e safado que o STF, são um alento para os trabalhadores informais, ofício moleza em que bastam ajuntar 255 quilos de alumínio para trocar por um salário mínimo.
Aos 40.390 rubro-negros que afluíam para o estádio, de fato não restava outra atitude a não ser entornar uma atrás da outra, tentando esquecer que não contratamos treinador, que a Fifa de uma Égua e seus engravatados destruíram de vez o ídolo Guerrero, que nossa esperança de gols se chama Henrique Dourado. E é o nervosismo, só pode, que faz nossa torcida esquecer os bons modos e esparramar centenas, milhares de latas e garrafas pelas calçadas da Tijuca. Tudo para sorte e deleite do atento Marcos, que se agachava diante dos torcedores para garantir mais uma lata, e de repente beber aquele resto quentinho deixado no fundo, ô sorte. A noite prometia ser lucrativa para Marcos, como se vê.
Até que passaram os malucos com um ingresso sobrando.
“Estou com dois no bolso e o Dado foi no setor Sul mesmo. Não tou na pilha de vender não”, disse o chefe da patota. Pronto, concordaram, vamos convidar alguém.
A primeira opção foi um menó, mas estavam todos em grupo, querendo ajudar cambistas mais velhos a vender o encalhe, pouco interessados no jogo. “Não posso ficar até tarde, mas se quiser me dar eu revendo”, respondeu um dos baixinhos. Descartado.
A segunda opção foi um cata-latas que passou, mas era evidente pelo olhar e os passos trôpegos que não passaria na Lei Seca, e até o ato de vencer a roleta seria complexo. Foi quando Marcos, até então um invisível, foi visto. “Fala, fera. És flamengo?”.
Convite feito, e o rosto de Marcos, por baixo do boné falsifa da Reserva, virou um clarão. “Eu? No Maracanã? Eu? Ah, bem que eu queria! Mas tenho que me defender. Se eu não ficar aqui na função das latinhas, amanhã ninguém come lá em casa na Mangueira. Mas obrigado, viu?”
A empatia rolou forte, e agora o grupo não entraria sem Marcos: “Quanto tu faz numa noite?”
“Quinze reais, preciso catar 15 reais em latinha…”
“A gente tem 15 aqui, topa?”
Aí era esmola demais para o santo Marcos recusar. Dando um drible na meritocracia, ele doou o sacão de latas para um colega de labuta e soltou o grito eufórico: “Toma de presente, mano. Eu vou ao jogo do Mengão!”
Marcos se misturou ao bonde no talento, mas tinha perguntas antes de entrar no estádio: que campeonato era? Contra quem? “Meleca? Rá rá…” E o Juan, vai jogar? “Juan sabe muito, aprendeu tudo com o Gamarra”, mostrou conhecimento.
Aboletado no setor Norte, Marcos começou desde o primeiro tempo a dar aula para muito torcedor mais assíduo. Com o pulmão entalado, sem gritar pelo Flamengo há papo de 20 anos, Marcos não parava.
“Mengo bola, Mengo bola, Mengo bola!”, e Cuéllar roubava mais uma. “Dá no garoto”, incentivava, apaixonado à primeira vista pelo estilo de Vinicius Júnior. “Nãaaaao, sem bolinha para trás”, irritava-se o mangueirense com o tico-tico-no-fubá de Paquetá, em noite para se esquecer. O primeiro tempo terminou em zero, e nossa turma estava tensa. Menos Marcos. “Vai ser 3 a 0, fica tranquilo”. E não parava de cantar.
O primeiro gol de Éverton Ribeiro saiu logo no início do segundo tempo. Curiosamente, na mesma baliza em que Marcos lembrava de ter visto seu último tento no Maraca. O jogo estava um pouco menos encardido e Marcos se soltou mais nas lembranças.
“Eu sempre fui geraldino, vinha ver direto o Flamengo. Mas não entrava no Maracanã desde um jogo contra o Paraná. Lembro até hoje: gol de Pingo!”, repetia sem parar, eufórico.
Pelada inesquecível, também para mim. Era agosto de 1999, o Flamengo era comandado por Carlinhos e tinha um time que poderia estar no livro “Ode a Mauro Shampoo e outras histórias da várzea”, hilária coletânea de crônicas futebolísticas de Luiz Antonio Simas: Clemer, Pimentel, Fabão, Luiz Alberto e Athirson; Leandro Ávila, Jorginho, Fabio Baiano e Jacozinho; Lê e Reinaldo.
Sim, Pingo nessa época era do Paraná e fez no Maracanã, diante dos meus olhos, um de seus únicos dois gols na carreira. Foi exatamente a partir daquele jogo, que seria a despedida do geraldino Marcos, que vesti rubro-negro pela última vez no Maracanã, me tornando um supersticioso contumaz (e louco, eu sei). Passei a usar branco, azul, laranja, marrom, cinza ou preto, menos vermelho, e as vitórias voltaram.
“Mengo bola, Mengo bola!”, Marcos continuava a apoiar, e tome de puxar velhas músicas dos seus tempos de torcedor ativo. Ao olhar para cima, refletiu: “Faz muita falta os bandeirões e bumbos da torcida, né? Eles sabem fazer festa. Olha só, foi dali de baixo que eu vi o Júnior levantando a Taça das Bolinhas. Como que nego vem dizer agora que a gente não a merece, irmão? Tá maluco…”
Alguém chega com uma cerveja para o mangueirense, e ele já não sabe mais o que fazer para retribuir aquele bando de maluco. É quando ele lembra que tem um lance no bolso, e mostra um objeto parecido com um lápis faber-castell branco ainda não apontado. “A menina me deu esse haxixe já apertado, vocês querem?”
Sai o segundo gol, o mais bonito do jogo e de Éverton Ribeiro até hoje pelo Flamengo, e em meio ao banho de cerveja e ao cheiro do mato fumegante, todo mundo se abraça nas arquibas como no velho Maracanã.
E vê-se a cena, cada vez mais rara e necessária nos dias de hoje, de dois irmãos rubro-negros se abraçando, talvez da mesma idade, moradores quase vizinhos, com histórias tão díspares. Um roto, sem banho e sem 20 reais no bolso; e o outro, que usa Dove diariamente e dirige uma BMW nos fins de semana. Mas todos com os três pontinhos suados no bolso. “Mengo, porra!”.
Com o estádio esvaziando pouco a pouco, era hora de retornar. Saudado como pé-quente por todo mundo, o rei cata-latas ainda mantinha o brilho nos olhos de ressaca, quando apertou minha mão e se despediu, para talvez nunca mais:
“Obrigado, gente boa. Vão na paz, que eu ainda vou juntar umas latinhas, olha quantas por aqui!”
Melhor contratação do melhor time de escrevinhadores do Brasil.
Estilos distintos e complementares.
RP&A fazendo história.
Tamos juntos, Rasiko!
Parabéns, Marcelo. Lindo texto.
Teus pais e eu fomos colegas no CENPES e ainda ontem nos encontramos no bar que temos no Leblon, o Desacato. Mas só recebi teu texto agora.
Maravilha.
Abs
Nelson
Obrigado, grande Nelson! Forte abraço dos Dunlops todos.
Texto lindo, com alto teor sentimental.
Para não ficar atrás do Grão Mestre, vou de alemão – ^Rebenterfeld^!
SRN
FLAMENGO SEMPRE
Valeu, Carlos! SRN
Esse texto me fez recordar 1987. 31 anos. Bem mais que o período de ausência do personagem.
Internado em um hospital, passei Natal de 2017 e o início do presente ano. As afinidades decorrentes dos problemas de saúde firmaram amizades. Tal qual os breves momentos de alegria de uma partida de futebol. Em ambas situações, não há diferenças sociais. Todos unidos pelo mesmo objetivo.
Assisti por completo aquele campeonato. Custa a acreditar que perdemos extra’-campo um título bravamente conquistado. Tudo virou ilusão.
A atual Direção nos fez acreditar no retorno do gigantismo dos anos 80. Diferentemente, faltam personagens de renome para incorporar essa empreitada.
A desilusão fica dentro de campo.
Resta aos desafortunados os lampejos de raras atuações e a eterna esperança que dias melhores virão.
Nas arquibancadas do Maracanã ou na Marquês de Sapucaí, todas as diferenças se unem em busca de um objetivo comum: a vitória da sua agremiação.
Dunlop, neste emocionante relato, retrata o poder do Maracanã de agregar pobres e ricos, numa verdadeira irmandade.
Uma crônica para ficar registrada nos livros de crônicas do futebol.
Parabéns, Dunlop!
SRN!
Show de bola!!! Parabnés!!
Grande Marquinhos pé quente! Fará falta nas próximas peladas!
Texto para guardar eternamente Dun!
Rebenteaux, Dunlop.