Sócrates, o envenenado, não o jogador, gostava de se apresentar como um parteiro de ideias. Sua abordagem filosófica ficou conhecida como maiêutica (em grego, μαιευτικη — maieutike — significa “arte de partejar”), uma homenagem à sua mãe, Phaenarete, que era parteira. Sócrates pressupunha que a verdade está latente em todo ser humano, podendo ser parida aos poucos na medida em que se responde a uma série de perguntas simples.

Renight, que não segue a linha socrática, mas mora na filosofia, também andou se perguntando em busca da verdade oculta do time do Flamengo. E a pergunta mais importante que Renato fez a si mesmo foi: Como é que posso atrapalhar o menos possível a esse time fabuloso que Papai do Céu (o 01 do Monoteísmo) em sua infinita busca por diversão e tumulto jogou na minha mão?

A resposta foi, evidentemente, deixar o time jogar como se sentisse mais à vontade. Isto é, que o Flamengo jogasse como no tempo de Jesus. Renato, que entre suas muitas qualidades naturais sempre mostrou um extraordinário descaso pelas opiniões alheias, simplesmente seguiu a sua consciência e mandou os caras jogarem contra o Bahia do mesmo jeito que tinham jogado contra o Goiás no Brasileiro de 2019.

Que foi exatamente o jogo na qual todos puderam ver que Jorge Jesus era capaz de fazer o Flamengo jogar diferente de tudo que já tínhamos visto em Pindorama. O placar de 6×1 permitiu que as multidões de comentaristas de resultado fizessem do Míster uma unanimidade nacional (menos na resenha da FOX Sports, mas tudo bem). À frente do time do Flamengo no simpático Roberto Santos, em Pituaçu, Renight deu, ao menos pra mim, impressão de que será capaz de fazer o Flamengo jogar igual.

Igual principalmente na intensidade, na volúpia de se lançar sobre a bola com força adquirida nos modernos processos de preparação física e com a mesma alma de 1911. Admitindo, é claro, as convenções disciplinares que o futebol moderno exige. Mas o comportamento interior, a gana, a garra, o élan eram perfeitamente inatuais. No razoável gramado de Pituaçu o Flamengo oprimiu o Bahia do primeiro ao último minuto.

O Flamengo se aproveitou do seu tamanho e da sua camisa pra ser fominha e impiedoso, destruindo qualquer ilusão de palhaçadinha baiana ainda no seu nascedouro. Porra, é só isso que a torcida exige. Ganhar de todo mundo e não perder pra ninguém. Não é pedir muito e Renight, que sabe falar flamengo com fluência, entendeu de primeira o grito silencioso das massas. E o Flamengo encheu o balaio do Bahia de gols. Custa jogar assim sempre? No tempo do Jesus não custava.

Talvez a maior diferença entre Renato e Jesus seja à reação a um terceiro gol. Quando o Flamengo fazia 3×0 sobre um adversário o Míster quase tinha um AVC. Apoplético, o estratego amadorense se descabelava exigindo o quarto gol. Renight reage de forma muito diferente. Quando Gabigol meteu o terceiro gol ele começou a poupar a sua galera pro jogo da Liberta na quarta-feira e colocar vários proscritos em campo.

Mas não influiu em nada na disposição geral do time, a rapaziada continuou martelando o martelão. Pedro, mais um jogador recuperado por Renight, meteu um golaço, concluindo um cruze muito bom de Vitinho num estilo taekwondo à la Ibra. E logo depois o próprio Vitinho meteu o dele, jogando por terra o boato de que já não estava mais entre nós. Tava lá o 5 x 0 estendido no chão, um placar gigante, prova de que as forças místicas que regem o universo rubro-negro continuam a atuar com a habitual intensidade.

Além das coincidências, sincronicidades e simbolismos esse placar faz justiça poética ao martírio de Renight. 5×0 foi exatamente o placar com que a marra de Renato foi seriamente abalroada pelo esmagador Flamengo de 2019. Na Cabala, uma escola de pensamento no misticismo judaico, o número 5 corresponde ao pentagrama, à estrela de 5 pontas. É o Homem perante o Universo. A representação da liberdade, da evolução, do sentimento de aventura que nos leva ao crescimento. Esse jogo tinha que ser 5×0 mesmo. Placar kosher, Renight correto.

Seja lá qual for o seu ângulo de análise uma coisa não se pode negar: Renato apertou os botões certos e o Flamengo, máquina de fazer viúvas, voltou a encantar o Brasil. A série invicta segue em curso e nada indica até agora que haja algum adversário no país capaz de bater de frente com o Flamengo. O terror voltou, cumpadi. Aos adversários sempre restará o consolo de saber que não há desonra ou demérito em ser vice do Brasileiro pro Flamengo. É a coisa mais normal do mundo.

Não se deixe enganar pelas aparências. Não objetifique a figura masculina. Renato e seus pés de lava começam a deixar sua marca no Flamengo. A torcida do Flamengo, sempre sábia e ligada no zeitgeist, continua no sapato, é lógico. Mas em ambientes reservados onde não há riscos de vazamento já se comenta, sempre com humildade, que em dezembro o Chelsea vai ficar pequeno.

Sapato, sapato, sapato.

Mengão Sempre