Uma das lendas mais conhecidas no folclore brasileiro é a do Boitatá. Na mitologia tupi-guarani o Boitatá é uma cobra de fogo que protege as nossas matas dos sujeitos maus que as incendeiam. Na explicação científica e sem graça é só uma alegoria pro fogo-fátuo, combustão espontânea dos gases produzidos pela decomposição de matéria orgânica em contato com o oxigênio. Um fenômeno natural que ocorre em todas as partes do país, nas partes que ainda têm florestas, claro.
Hoje, Boitatá tá cansado, sem aquela antiga disposição punitiva dos tempos de Peri e Ceci. Do jeito que os sujeitos maus continuam queimando as florestas por aqui sem qualquer punição parece evidente que Boitatá se aposentou do trabalho de guardião dos matos e agora só dá expediente como sinônimo de conversa fiada, cascata ou mentira.
E um dos Boitatás mais estapafúrdios surgidos nos últimos anos, mais exatamente depois que o Flamengo começou a pagar seus pinduras, é aquele da germanização do futebol brasileiro. Foi só o Flamengo começar a andar de cabeça erguida e se tornar um exemplo de retidão fiscal para os arautos do apocalipse, do interior de suas camisas feias, começarem a assustar a população avisando que quando o Flamengo se livrasse do vício de gastar mais do que arrecadava iria dominar a cena futebolística nacional de uma maneira tão opressora e oligopolista que não deixaria aos miseráveis coirmãos nada além de migalhas e humilhação. Quem dera fosse verdade.
Em novembro de 2019 o Flamengo ganhou a Libertadores num sábado, menos de 24 horas depois, e sem entrar em campo, foi Heptacampeão Brasileiro. Em fevereiro foi campeão da Recopa Sulamericana e da Supercopa do Brasil, em março catou uma Taça Guanabara e em julho foi Campeão Carioca. Mas a lenda da germanização não durou nem um mês. E nem poderia durar, porque aqui é Pindorama, não é Alemanha e nunca vai ser.
Mesmo com mais torcida, mais dinheiro, mais time e camisa mais bonita o Flamengo está muito longe de algo vagamente parecido com o domínio bávaro na Bundesliga. Basicamente porque o Brasil é uma zona há 500 anos e o Flamengo mesmo só deixou de ser cabaré há menos de 10 anos. O Flamengo só poderia emular o domínio do Bayern se o Brasil fosse, ao menos no branco do olho, um pouco parecido com a Alemanha. E geral sabe que não pode haver coisas mais distantes em 2020 do que os dois países. Na Alemanha quem tem o melhor time geralmente ganha. Já no Brasil, onde até o passado é incerto, tudo pode acontecer. Inclusive nada.
Vejam esse Campeonato Brasileiro que as forças vândalas a serviço da agenda normalizadora impuseram seu início para o próximo fim de semana. Pra CBF a tabela do Brasileiro feita pelos seus executivos é um documento muito mais importante e sagrado do que qualquer protocolo médico elaborado por cientistas e deve ser seguida rigorosamente duela a quien duela. Não interessa que estejam morrendo mais de mil brasileiros por dia. Pra economia girar e a bola vai ter que rolar.
Afinal, todo mundo um dia vai morrer, o que não pode é atrasar o Brasileirão. Mas esse desprezo pela vida e pouco caso com a Ciência não são frutos da crueldade nata da CBF, são apenas reflexo da política nacional do E Daí? hora em curso. E nem adianta ficar puto, vai ser assim e pronto. Se o Covid continuar a matar 1000 pessoas por dia, em menos de 630 anos não vai ter nenhum brasileiro vivo pra xingar o Bolsonaro de genocida. E os safados terão vencido mais uma.
Está na cara que vai ser o Campeonato Brasileiro mais esquisito da história. Mesmo se comparado às psicodélicas edições dos anos 70 com até 98 clubes, o Brasileiro 2020 vai se destacar. Já começa esquisitão por começar com as partidas sem torcida, com uma enorme possibilidade de ir até o seu fim com jogos de portões fechados. Uma grande desvantagem técnica e emocional pros times que jogam em casa. E ainda maior pro Flamengo, que até quando joga como visitante joga em casa. Indiscutível que o maior prejudicado num Brasileiro disputado de portões fechados é o Flamengo, que tem mais torcida em todo o país.
E esse nem é o maior problema, já que o retrospecto de coerência e responsabilidade da elite dirigente do país nos autoriza a prever para muito em breve um libera geral pra jogos com público nas arquibancadas. Não foram poucos os prefeitos no Brasil, sempre no fechamento com aqueles sujeitos maus que tacam fogo no mato, que já os autorizaram muito antes do que deviam. Pra disseminar o terror psicológico o esporro dos homens maus não se compara com o silêncio dos homens bons. Com o campeonato rolando quem vai se levantar para impedi-los? A mulambada narcotizada com o Mengão na liderança é que não vai ser.
Mesmo com o Flamengo tendo feito tudo certinho, se planejado, se reforçado, contratando um treinador de peso pra substituir Jorge Jesus e mantido a larga distância para os seus perseguidores mais próximos, não há a menor garantia de que vai levar esse Brasileiro com o pé nas costas, assoviando e chupando cana como a lógica indicaria.
Talvez tenha a ver com o nosso destino manifesto de vencer, vencer, vencer, mas sempre no perrengue. Ou talvez seja uma encenação melodramática da moral esopiana de que o dinheiro não traz felicidade. No fim das contas, mais uma vez, na hora em que o Flamengo ia deitar e rolar algum sacana espalhou tachinhas na nossa cama. Já conhecemos esse filme e ele é ruim.
Portanto, esquece esse negócio de germanização. Como que o Flamengo vai germanizar se na primeira oportunidade que teve de entrar como favorito em um Brasileiro em 37 anos o país está todo avacalhado? Como germanizar se o Flamengo jogará desfalcado dos seus 40 milhões de jogadores mais decisivos?
Germanização à vera é outra coisa. São protocolos seguidos à risca, proteção e valorização de todas as formas de vida, respeito às minorias, compromisso com os mais vulneráveis, pontualidade, organização, higiene e cervejas fabricadas de acordo com Reinheitsgebot (Lei da Pureza da Cerveja) de 1516, que instituiu que cerveja só leva água, malte de cevada e lúpulo. Tudo que está a milhas e milhas distante daqui. 5860 milhas, pra ser mais exato.
Além de ter que enfrentar uma tabela animal com jogos de três em três dias, Libertadores, Copa do Brasil, janela europeia sinistra que vai até outubro e as inevitáveis convocações pros selecionados nacionais nas datas FIFA, o Flamengo ainda terá contra si 190 milhões de secadores mal vestidos e as cobranças por desempenho igual ou superior ao de 2019 que virão da própria torcida, da imprensa, da burguesia e do clero. Nessa batida vai germanizar como, rapá?
A hora de ser pessimista é agora, enquanto a bola não rola. Depois que ela rolar, que se foda pandemia, queimadas na Amazônia e ataques ao estado democrático. Aí o Flamengo, e nós todos de cambulhada, temos que partir pra cima, sem medo, remorso ou consideração. Flamengo Über Alles.
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Mengão Sempre
Perfeito, como sempre, Arthur!!!
Errata. São 45 milhões! O resto soberbo como sempre!
Não quiz dizer que vc foi soberbo, no sentido de metido. O texto está soberbo, do maravilhoso. Como sempre!
Adoro os textos do Arthur. Mas retorno quando parar essa lamentação toda…. agora tá só forçação de barra pra sustentar a retórica. Sem problemas, volto depois….
Sempre gostei, vou continuar gostando…
Quando parar de morrer gente por causa dos filhas da puta no poder eu provavelmente mudarei de assunto. Até lá.
Essa é a exatamente a retórica que não se sustenta.
Vida longa pra você, grande abraço!
Brasil, onde até o passado é incerto!!!!! Muito bom!
Eu também não, Xisto. Por isso, aos poucos, vou me retirando. Não encontro nenhum motivo que me faça permanecer num blog onde a maioria das respostas aos comentários sejam na base da ofensa e da agressão (dos quais me redimo, faço o mea culpa e me nego a continuar dando energia) e da ausência de debates civilizados e inteligentes que acrescentem, ampliem a capacidade de percepção e aprofundem laços de amizade e respeito mútuo. Caso contrário, a sensação é de estar falando pras paredes – e elas não têm ouvidos. Não há pior forma de pobreza do que a de espírito.
Comentando o último artigo do Dunlop, lamentei a perda de alguns dos nossos comentaristas.
Não faça isso, amigo Rasiko. Não abandone o barco, embora reconheça que o momento não é bom entre nós.
Em compensação, tivemos excelentes artigos.
Sempre afirmei que o debate é essencial para a sobrevida de todo e qualquer blog.
A mesmice não faz crescer.
Continue.
mimimimimimi
Quer uma cerimônia de despedida?
Sempre xingou todo mundo aqui e fica se fazendo de vítima…
Toma vergonha psicólogo fake
Eis a natureza das coisas, conforme compôs Accioly Neto e ficou eternizada na voz de Flávio José: “Amanhã pode acontecer tudo, inclusive nada”. Diante do contexto, é possível que as coisas ainda piorem ainda mais antes que comecem a melhorar. A nós, nos resta não se avexar, e seguir adiante, um passo de cada vez.
Caramba, até aqui no RPA a fila para o ozônio no cu vai ser grande. Acreditando que era só em Itajaí… acreditando em boitatá.
No tocanate ao Prefeito de Itajaí-SC, que é do MDB, cotadíssimo para substituir o General no Ministério da Saúde, totalmente de acordo.
Já em relação ao Boitatá, discordo.
Lenda é lenda, não cabe acreditar ou não, apenas constatar, exatamente o que foi feito pelo Arthur.
A importância desta, no momento atual, pela descrença generalizada, está colocando o Mundo em trágica situação.
O Capitão ataca, o Ministro-boiadeiro ataca, os índios se fodem e a floresta arde.
Quanta falta faz um Boitatá !
SRN
FLAMENGO SEMPRE
Arthur, eu não tenho paciência mais para aturar esse núcleo duro do mal de 30 % sem contar com aqueles que se dizem contra, mas basta uma migalha (ou melhor um pouco de ração bovina) na mão do bozo para eles mudarem de opinião. Minha albuginea já se desgastou totalmente. A conclusão curta e grossa: não só o pandemia, mas tudo de mal a pior que acontece ao atual bananão/laranjal só tem um culpado:esse hítler tupiniquim que eles inventaram. E tenho dito.
Caro, Arthur, nos dias atuais, em que anda imperando a banalidade do mal, na expressão de Hanna Arendt, seus argumentos são como pregação no deserto.
E o comportamento dos governantes e de parte do povo brasileiro, frente à pandemia, nos remete a uma máxima de Blaise Pascal:
“Não existe nada mais difícil do que pensar.”
Quanto ao futebol, pelas minhas projeções, o Flamengo, se não ganhar tudo que irá disputar, ganha quase tudo. Mas, onde buscar alegria para comemorar os títulos, se até o fim do ano o Brasil poderá estar contabilizando em torno de 250 mil mortes, se a covid-19 continuar matando mil brasileiros por dia?
De quem a culpa?
Assim como quedas de avião são causadas por vários fatores, como dizem os especialistas, também o total descontrole no combate a epidemia da covid-19 está sendo determinada por vários agentes, notadamente pelo capitão que comanda o Brasil.
Como sempre, excelente o seu artigo.
Saudações Rubro-Negras!
#somos70porcento
Ex capitão pq foi expulso do quartel, esse cara é um desfavor ao Brasil. Acredito que o concorrente dele no segundo turno seria uma tragédia.
A culpa das 1000 mortes por dia não é do futebol… E sim da falta de cultura e de empatia da população! Com ou sem futebol continuarão as aglomerações em festinhas, churrascos, comemorações/encontros familiares…
Arthur 7 x 1 antizada!
Me sinto um alienado nessas hs. Mas pelo Mengão, fica difícil resistir. Pode ficar ruim mas pode ser ainda melhor. SRN
Eu só gostaria de entender de que forma não ter futebol ajudaria no combate à pandemia.
Não ter futebol só geraria mais desemprego, mais gente passando perrengue, sem dinheiro pra comprar álcool gel pra se prevenir.
Quem puder trabalhar, seguindo os protocolos de biossegurança elaborados por médicos (não por homens mais quebravam fogo na floresta), deve trabalhar. Quem puder ficar em casa, deve ficar em casa. Simples e cristalino como água.
Além do mais, no mundo inteiro os campeonatos já voltaram, inclusive em vários países com taxa de mortalidade pela COVID superiores à do Brasil. Até a NBA voltou.
Logo, falar que a culpa é do Bolsonaro é fácil, só não faz sentido.
até parece que só aqui no brasil que vai ter a volta do futebol ….
SRN !
Pois é…. não sei o porquê de continuar com esse tema….