Certos estados d’alma não são fáceis de alcançar. Tomemos, por exemplo, a alegria, uma parada básica que envolve o contentamento, o prazer de viver, o júbilo pela mera existência. Ora, ficamos alegres toda hora até por um saco de jujubas. A alegria é como um Campeonato Carioca, é maneiro, mas é meio vulgar.

Felicidade já é bem mais complexa, na sociedade de consumo cachorra em que vivemos ser feliz geralmente implica no gozo de boa saúde, patrimônio em expansão, reconhecimento dos pares, sensação de dever cumprido e amores correspondidos.

Obviamente é difícil pra caramba acontecer tudo isso ao mesmo tempo com a mesma pessoa. E quando acontece e o sortudo, ou a sortuda, não estiver no peso, na altura ou na idade certa, a felicidade dá um olé e vai embora. Felicidade é foda, é tipo uma Libertadores da América. Tão difícil quanto conquistar é manter a taça em seu poder.

O amor fica ali no enorme espaço entre a vulgaridade da alegria e a escassez mundial da felicidade plena. No amor vale tudo, tem regra não. Tá escrito lá no famoso Soneto XI do caolho Camões, que Renato Russo kibou na maior em Monte Castelo, que o amor é um contentamento descontente, é nunca contentar se de contente. É querer estar preso por vontade; é servir a quem vence, o vencedor

Isso é o amor, cumpadi. Reveja seus conceitos. Esquece papai e mamãe, deixa tua mulher e teus filhos fora disso. Amor puro e desinteressado é o que sentimos pelo Flamengo. Só por ele. É esse amor que nos impede de ver os defeitos do objeto amado, que magnifica e celebra os mais insignificantes avanços e nos permite manter as portas do nossos corações sempre abertas. O amor otariza.

O Flamengo nos emputeceu há 15 dias levando sacode pornográfico do time do suco. A maior chacoalhada sofrida em nossa história na Libertadores. Tragédia grega, com corpos despedaçados na arena, mulherada chorando em frente às ferragens, homens feitos dizendo que iam se matar, aldeões em fúria reformista brandindo archotes e forcados tocaiando a área de desembarque do Tom Jobim, várias patamo cercando o perímetro, gás de pimenta, borrachada e muro da Gávea pichado sem erro de ortografia.

O coronga passou rodo na Gávea e no Ninho do Urubu, geral que foi pro Equador ver o time ser goleado pegou o bichinho. A pica de buscar a felicidade jogando o Campeonato Brasileiro de Imunidade de Rebanho sobrou pros cria e pros adultos que não tavam mais dodóis. E os caras entregaram, no bom sentido. Depois da sacolada que metemos no Del Valle o louco amor pelo Mengão renasceu cheio de saúde. Faz um filho em mim, Flamengo! Se nascer outra menina vai se chamar Noga ou Huga.

Em 15 dias o Flamengo nos fez experimentar a completa miserabilidade, a descrença num sentido para a vida, a gratidão pelos nossos moleques de ouro, a admiração desmedida e justificada pelo Arrascaeta, o uruguaio mais importante da história do Flamengo depois de Ramon Platero, e a certeza desumilde que o Flamengo vai ganhar essa porra de Brasileiro outra vez.

No domingo, contra o catado do genérico paranaense, a molecada deu show outra vez. Liderados por Gerson, que comeu a bola, por Pedro Terror – Uh é Matador, Arrascaeta e pelo insubstituível Everton Ribeiro, que golaço, e os cria garantiram nossos três pontos obrigatórios e comprovaram que o esquema é esse.

O esquema é o Dome Office. Domènec fica muquifado no Ninho, só no álcool gel, protegidão, e pelo zoom vai fazendo o time jogar, encontrar seu estilo, que não é o mesmo de 2019, e botando os catalunha pra se infectar nos campinhos da vida. Jordi Guerrero comandou legal no jogo da Liberta, no final deu até uma jantada no técnico do suco, mas pegou o bichinho e foi substituído pelo 2º assistente, o Jordi Gris, no jogo com os paraná. Tudo certo, os jovens passaram rodo igual e Jordi testou negativo pra Covid.

Essa sequência de jogos, que começou com a tragédia em Quito, depois passamos no sufoco pelo Barcelona da Uruguaiana, empatamos com o Porco, vingamo o suco se classificando pro mata-mata continental e ganhamo do Paraná foi apenas a quinzena mais maneira para ser Flamengo em 2020. Toda a complexidade da experiência de ser Flamengo concentrada, intensa, chapante. Não quero parecer soberbo e nem humilhar ninguém mas nesse breve intervalo na malha espaço-tempo o Flamengo me fez feliz.

Já estou preparado pra deixar de ser feliz na próxima pauleira. Flamengo vai jogar 200 vezes em outubro contra um monte de times vilões e além do micróbio nojento ainda enfrentará a inapropriada eliminatória da Copa do Mundo, cujas datas foram mengeleanamente mantidas pelas autoridades sanitárias ligadas às duas terríveis facções do Comando FIFA e da Falange Comenbol. Eliminatória que a proba CBF, através de seu esbirro Adenor Bacchi, usa pra desfalcar o Mengão e adiantar o lado da paulistada. Os PCC do Chile e do Uruguai também deram mordida e nos levam Arrasca e Isla. Copa do Mundo sux!

Você pode dizer que sou um sonhador, mas imagine se não existissem países? É fácil se você tentar. Imagina não existir esse inferno debaixo de nós? Esse fogo que arde sem se ver, essa ferida que dói e não se sente. Semeando amor, e doutrinado geral, o Flamengo vai nos deixando alegres. Mas alegre é pouco, queremos ser felizes. Em Tóquio, Doha ou na Vila da Penha. O Brasileiro tem que acabar. É um não querer mais que bem querer. É ter com quem nos mata, lealdade. Mas como causar pode seu favor nos corações humanos amizade, se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Acima de nós só o Céu.

Mengão Sempre