Deu tempo nem de cornetar a esculhambação e a falta de treinador no Flamengo a poucos dias da estreia no Brasileiro. Evento cuja conveniência temporal face ao assustador estado da maionese no país é um tema muito discutível, mas que certamente vamos debater em outra hora. Em um rápido e midiático rolé europeu os cartolas rubro-negros Marcos Braz e Bruno Spindel, dupla que ostenta um índice de aproveitamento animal no fundamento de contratar bem, arrumaram rapidinho um substituto grifado para o paradigmático Jorge Jesus.

Antes de abordar as qualidades de Domènec Torrent, que chega ao Rio de Janeiro para assinar o contrato na sexta-feira, vale mencionar que a velocidade da negociação é um forte indicativo de que o Flamengo não foi pego de calças curtas com a volta do Míster para Portugal. Não seria nenhuma teoria da conspiração acreditar que já estava tudo combinado entre brasileiros, portugueses, talvez até catalães, muito antes da Imigração Portuguesa liberar a entrada dos dirigentes brasileiros na Comunidade Europeia.

A sucessão de jantares e encontros com os professores do Velho Mundo teria servido mais para vender o Flamengo como um player forte no mercado, ao qual se deve respeito e atenção, do que propriamente para encontrar um técnico. Tudo indica que o Flamengo, que até pouco tempo atrás só ia à Europa para dar o Manto Sagrado ao Papa da vez, já saiu daqui sabendo exatamente quanto ia custar e em qual prateleira encontrar o que estava indo comprar. O road show do Flamengo foi um sucesso.

Pra gente saber se a contratação de Torrent foi também um êxito vamos ter que esperar um pouco. Só os resultados obtidos em campo poderão dar essa resposta. Mas não faltam indícios de que o catalão reúne predicados que o habilitam a manter o sarrafo na mesma altura deixada pelo obcecado Jorge Jesus. Apesar das diferenças curriculares entre o atual e o futuro ex-treinador do Flamengo algumas características que os dois compartilham permitem prever uma transição suave no comando.

Taticamente, Torrent e Jesus são adeptos da marcação alta, da pressão intensa após a perda da bola e atacantes trocando de posição o tempo todo e tocando o terror nas defesas adversárias. Na metodologia de trabalho e na familiaridade com o que há de mais moderno no futebol o estudioso Torrent não deve ficar devendo nada ao autodidata Jesus. Enquanto o português fez seu nome no futebol luso o catalão andou, como o segundo de Guardiola, ganhando tudo nas principais ligas do planeta.

Uma suposta inexperiência de Torrent como treinador-chefe-professor de grandes clubes ainda provoca algumas reservas por parte da mulambada, recentemente promovida a connoisseur de técnicos gringos. Mas basta tomarmos como base de comparação a plêiade de treinadores que começaram suas carreiras pelo topo, isto é, treinando o Flamengo, para dissipar qualquer dúvida sobre a evolução qualitativa do Flamengo no quesito recrutamento. Uma turma da pesada que reúne desde Cláudio Coutinho, Carpeggiani e Junior Maestro até Washington Rodrigues, Rogério Lourenço e Zé Ricardo.

E se pensarmos bem, a experiência prévia é uma qualidade profissional superestimada. Ainda mais no caso de treinar o Flamengo, que não se pode comparar com nenhum outro clube do mundo sem se perder em distorções que invalidam o cotejo. Mesmo quando confrontado com potências do naipe do Barcelona, Bayern ou Benfica, pra ficar só na letra B, o Flamengo está em outro patamar.

O que dá pra comparar é o momento em que Torrent está chegando com o momento em que Jesus chegou. Foi há mais ou menos um ano. Quando o Míster chegou o Flamengo vinha da traumática demissão de Abel, ocupando posição intermediária num Brasileiro rolando que já provocava uma leve dor de cabeça na Magnética e jogando um futebol de notável mediocridade.

Verdade que Jesus ganhou uma providencial intertemporada com a parada pra Copa América que lhe deu tempo pra conhecer o elenco. Em compensação teve que encarar uma pressão considerável. Eram sete anos sem ganhar Copa do Brasil, 10 sem vencer Brasileiro, 38 sem Libertadores, um rabo de foguete gigante. E ainda por cima teve que enfrentar um lamentável ataque de perereca xenófoba de parte substancial das guildas de treinadores e cronistas esportivos brasileiros.

Como Jesus segurou o pagode sem deixar cair e calou a boca de geral é um enredo que todos conhecem bem, mas faço questão de citar mais uma vez. Em seus 13 meses no Flamengo Jesus ganhou três títulos nacionais, dois internacionais e perdeu apenas quatro jogos. Um desempenho sem precedentes, de eficiência sobrenatural.

Aliás, no dia 4 de agosto se completará um ano que o Flamengo não perde um jogo valendo. Depois que perdeu pro Bahia na Fonte Nova o Flamengo só perdeu pro Santos na rodada 38 do Brasileiro, que foi um churrasco de encerramento e não um jogo valendo. A súmula da final do Mundial diz que o jogo foi empate. Desde Salvador que invictos estamos, e quem não concorda é clubista.

Torrent chega em condições muito diversas, mas também com muita pressão sobre as costas. Pressão de natureza distinta, causada pelo favoritismo que o Flamengo vem ostentando com muita justiça desde a rodada 16 do Brasileiro do ano passado e pela já citada altura em que Jesus deixou o sarrafo. Óbvio  que agora a torcida não vai aceitar nada menos que a excelência e letalidade às quais se acostumou nos últimos 365 dias. Torrent deve estar ciente de que o Flamengo é como um T-Bone, um filé que vem junto com um osso duro de roer.

Mesmo com esses evidentes elementos de tensão a vantagem do catalão é enorme. Torrent, até pelo seu currículo estrelado, não vai precisar enfrentar as patotas das mesas redondas, já escaldadas pelas abobrinhas ditas no ano passado. Também não vai precisar arrumar um elenco na beira da crise e nem buscar no mercado Gersons e Pablos Marís pra qualificar o time. O Flamengo, felizmente, já está naquele estágio que se o treinador não atrapalhar tentando consertar o que não está quebrado pode chegar muito longe só no embalo da força da gravidade.

Os ingredientes pra um outro banquete para 40 milhões de talheres já estão todos na dispensa do Ninho do Urubu. Ainda que o novo chef, pra deixar sua marca pessoal, queira inovar nas receitas,  vai ter que se esforçar muito pra nos servir uma gororoba intragável. É claro que pra ganhar o coração da torcida e o respeito da Fla-Mureta uma cozinha correta e bem temperada não será suficiente.

Torrent vai ter que mostrar a mesma intolerância à derrota que seu antecessor, uma qualidade das menos vulgares. Coragem Torrent já mostrou que tem de sobra, porque o cara pra se jogar no piscinão mundial do Covid tem que ser brabo ou burro. Pela sua extensa folha de serviços podemos supor que burro o amigo catalão não é mesmo.

Treinar esse Flamengo é quase a mesma coisa que pilotar um foguete. Não sabemos se Torrent é religioso, mas just in case seria bom que ele se agarrasse com a Oração do Astronauta da NASA, conforme nos contou Tom Wolfe em Os Eleitos: Papai do Céu / Estou exatamente / Onde por toda a vida / Sempre sonhei em estar / Rogo-Te, humildemente / Não me deixes fazer merda / Amém

Benvigut, Torrent. El Flamengo és més gran que tot el que sabeu. Jugar dur. Bona sort.

Mengão Sempre