Não sei vocês, mas tenho sentido o pessoal que torce para outros times me olhando com desconfiança, como se o adepto do Flamengo estivesse nas nuvens, ou pior, envolto na fumaça enganosa do já-ganhou. Não caio nessa e busco manter a rotina. Ou seja, os pés fincados no chão, o melhor meio de não levar rasteira.
O rito de ir ao Maracanã com a turma tem seguido a mesma liturgia. Almoço tardio e suculento no bar Madrid, duas ou seis rodadas de batida de maracugibre (a depender do nervosismo pré-jogo), cervejas de casco escuro e aquela caminhada até o estádio sem pressa, perfeita para “exercer o direito da livre eructação” (copyright Otto Lara Resende).
Noite dessas, durante os aprontos para mais uma porfia com ingressos esgotados, sentávamos à mesa de madeira quando brotou ele, o popular JP Careca:
– Aqui, burro. Trouxe o que você pediu. Taqui a número 1!
Confesso que tremi, o que exigiu mais um gole de batida. Sim, a sensacional figurinha 1 do álbum do Flamengo, você que coleciona já a conhece. Na cena, de camisa vermelha, Zico vibra na Gávea diante de sua estátua bronzeada, inaugurada em março de 2013 sob uma festa tremenda. Figurinha preciosa.
Meu amigo advogado tirou o bolinho do bolso e me entregou a preciosidade, ele que vinha direto do trabalho nos trinques para a noite especial – sapatos finos, calça social, camisa sob medida e, por cima, uma camiseta de basquete do Fla de 1989, daquelas que o preto é quase púrpura e o vermelho há tempos virou laranja (alô Bolsonaros).
Entrar no Maracanã com algo valioso é sempre um saco, você quer prestar atenção no jogo sem neuras, e por isso há anos deixo no carro a carteira, chaves de casa, o celular e o relógio, um cuco que temos há anos na família. Desacostumado, fiquei segurando aquele cromo do Zico sem saber como guardá-lo. Chance grande do Galo voltar todo amassado. Que fosse.
Conta paga, partimos num quinteto de seis ou sete para o estádio. Cruzamos a Tijuca profunda, subimos a Marques Porto, descemos a Martins Pena, desaguamos em Campos Sales, sempre a debater e refletir sobre os 35 anos sem uma mísera, reles e xexelenta ida às semifinais de Libertadores. A maldição estaria enfim por ser quebrada? Mudaria o Flamengo ou mudaria a Libertadores da América?
Com o Mario Filho à vista, emparelhamos com um irmão flamengo que vestia uma camisa 10, o santo nome de Zico às costas. Aquela visão comum e recorrente foi a faísca para o início de uma tese complexa, que não sei de onde veio, talvez do maracugibre. Ei-la:
Em qualquer clube do planeta, a conquista de um título continental é uma glória eterna. No Flamengo, porém, nada é tão simples, e o elenco que ousar erguer a taça das Américas terá igualado o sagrado time de Zico & cia. Ou seja, não bastam técnica, élan e um pouco de sorte – é preciso um grupo de 11 ou 22 heróis abnegados, que não tremam diante do desafio de imitar, repetir e se aproximar de píncaros que só os deuses rubro-negros atingiram.
Deu para captar a teoria ou falta mais batida? Novos ídolos “encolhem” os mitos do passado? Ou: a maldita seca do Flamengo teria a ver com o amor profundo que sentimos pelo time de 1981? Nossos juvenis e jovens craques, ao se aproximar do feito, temeram profanar a devoção que sentimos pelo esquadrão de 1981 – assim como, sei lá, o surgimento de um Cristiano Ronaldo fez a figurinha do monstruoso centroavante Raul esmaecer no álbum do Real Madrid?
“É uma devoção quase religiosa que esse elenco, todo nascido depois de 1985, não tem e não terá, pelo bem geral da nação”, eu pensava, enquanto trocava o Zico de bolso, “Pronto, fica aqui, Ziquinho, junto à carteira de identidade, assim você fica mais protegido, viu?”.
Mas o Zico chegou bem em casa, diferente da torcida, alucinada. Em campo, Gerson, Rei de Wakanda, fez jus ao melhor apelido do futebol desde “o Príncipe Etíope” de Didi, ou do “Chuchu” Iranildo. (Perguntei ao Arthur Muhlenberg se o apelido foi criação dele, mas ele não soube nem liga. “Se fui eu foi sem querer”.) De todo modo, só podemos lamentar que Gerson não tenha chegado antes, a tempo de ingressar no álbum.
Como resumiu PVC outro dia, “o Flamengo é, neste momento, uma homenagem ao futebol”. Para sua torcida, contudo, ver o time ao vivo tem sido uma experiência mística que vai um pouco além, como um caso “venéreo” ocorrido com a turma do bar Madrid talvez exemplifique bem.
Durante a última vitória, o juiz apitou e nosso amigo Tiba, 25 anos de Maraca, abraçou o Leco e foi andando. Leco de olho, e Tiba se afastando. “Vai para onde, Tiba? Bora pegar cerveja no bar aqui mesmo” O amigo disse que precisava ir, estava tarde e o filhote aguardava em casa. “Mas Tiba… Ainda tem o segundo tempo!”
Sim, estamos atordoados. O Flamengo está na semifinal da Libertadores depois de 35 anos. Peraí, vou escrever de novo para ver se eu acredito.
O Flamengo está na semifinal da Libertadores depois de 35 anos.
Somos todos Tiba.
Maravilhosa crônica! Acredito que muitas outras virão até repetirmos o 3×0 no Liverpool!
Excelente texto, faltou homenagear a língua do sensacional bar madrid
Dunlop, o Flamengo mudou para melhor, você está melhor do que nunca, quanto ao Flamengo só tenho uma preocupação é o jogo de daqui a pouco contra esse timeco Avaí, que sempre arranja um jeito de torrar o saco da gente. É uma sina que o Flamengo tem que mudar, urgente, tenha timaço ou timinho, não pode dar mole pra time pequeno, há que esmagá-los sem dó nem piedade.
Caro Xisto, hoje não teve mole, teve #Vapo. Abraços, Dunlop
Depois dessa, outra ótima, tenho que conhecer esse Madrid e sua maracugibe.
Valeu
35 anos… Talvez deva dizer, caro Dunlop, que a Magnética está em um permanente, total e relativamente sóbrio estado de euphoria!
Valeu, grande Nilo. Aproveitando o ensejo, terias aí uma duplicata da figurinha 255, com o primeiro escudo do Flamengo? SRN
Zenzacional esse percurso Madrid- Maraca.
Mestre Arthur, esse percurso comporta lances que até Zico duvida, e não cabem em crônicas, como o remo do Isaquias e o simpático pedinte de camisa do Boca Juniors. Presságio?
Isso aí Dunlop, que venha o bi em reverência ao mítico esquadrão de 81, com as bençãos de Zico!
“…e, por cima, uma camiseta de basquete de 1989 do Fla, daquelas que o preto é quase púrpura e o vermelho há tempos virou laranja (alô Bolsonaros).”
Com essa frase, vou continuar rindo até o seu próximo artigo, meu caro Dunlop. Mas, “bico calado, muito cuidado, que o homem vem aí.”
Brilhante este artigo. Parabéns!
SRN!
Salve, mestre Aureo Rocha, você é pedra 90.
pedra 90 ?
quem ainda fala assim????
SRN !