Hoje, o mítico torcedor Francisco Moraes completa 80 anos, mas parece que fez 79. Em homenagem ao maior acumulador de milhas da história rubro-negra, recordamos um de seus textos antológicos, publicados no site Historiadetorcedor.com.br.
****“Zico em Udine”****
Em 1983 o Flamengo conquistou o tricampeonato brasileiro. Fomos a todos os jogos do campeonato e pudemos atestar a popularidade do Flamengo e da Raça Rubro-Negra. Onde o time jogasse, era festa na cidade e havia sempre gente querendo saber onde os “Caras da Raça” estavam.
Numa dessas viagens, logo na primeira fase, fomos a Manaus, Belém e São Luís. Em Belém, estávamos Zé Carlos e eu no saguão do hotel, fazendo hora, quando chega um grupo de rapazes dizendo-se fundadores da “Fla-Fla de Belém”. Eles iam estrear a nova torcida no jogo contra o Paissandu e queriam oferecer o apoio da torcida. Um deles, médico, falou:
– Tudo o que vocês precisarem a gente faz.
Não sei por quê, me deu um estalo e falei:
– Tá bom, vamos agitar um pouco Belém. Isso aqui tá meio morno. Vamos promover esse jogo.
O pessoal da Fla-Fla era bem relacionado e começamos uma peregrinação pelas rádios e televisões. Viramos celebridades locais, dando entrevistas, desafiando o Paissandu a fazer gol no Flamengo e, mais do que tudo, convocando toda a torcida do Flamengo para ficar onde a faixa da Raça estivesse. Foram dois dias de promoção, que inflamaram a cidade. O jogo, que já ia ser sucesso garantido, arrebentou.
No domingo não cabia nem uma pulga no estádio, que estava sendo inaugurado – inacabado, claro – naquele dia. Deu até medo do troço desabar. Mas o mais bonito era ver que 80% do estádio eram Flamengo, e que todo mundo que entrava apontava logo para a faixa da Raça e vinha em nossa direção. São espetáculos como esse que recompensam o esforço.
Mas, claro, o fato marcante do ano de 1983 foi a venda do Zico para a Udinese. Uma tragédia. Uma frustração enorme ver o Galo jogando com outra camisa (e, o pior, alvinegra). Quando foi anunciada a venda, a galera queria quebrar a Gávea. Foi uma loucura conter o pessoal. Só salvou mesmo a liderança do Cláudio Cruz, pois, se fosse hoje, não sobrava nem azulejo na sede.
O que mais irritava era a atitude de indiferença de certos setores do clube. No meio da confusão em que a Gávea se transformara, um “benemérito” gritou:
– Esses merdas ficam reclamando da venda do Zico! Mas foram 4 milhões de dólares! O Flamengo precisa do dinheiro, esses favelados não devem nem ter noção do que é isso.
O Zé, que morava num apartamento que valia isso, berrou também:
– Quatro milhões acabam em um mês, com a roubalheira aqui dentro. Isso não é dinheiro para um clube do tamanho do Flamengo. O Zico é muito mais importante do que essa merreca, seu merda! Meu apartamento vale isso e tu não tem dinheiro pra comprar.
O Zé aliás ficou tão abalado que cheguei a sugerir que fosse a um analista.
Mas divã de torcedor fanático é a arquibancada. O Flamengo foi convidado para fazer o jogo de apresentação do Zico em Udine, e depois para participar do Mundialito de Clubes Campeões Mundiais, que seria realizado em Milão, com a participação da Juventus, Milan, Internazionale e o Peñarol, do Uruguai. Era a nossa oportunidade de espantar a depressão.
Só que, para variar, estávamos duros. Não dava para guardar dinheiro. Era viagem em cima de viagem, no Brasil e no exterior. Mas também não dava para perder a estreia do Galo. Impossível perder esse jogo. Fizemos os planos, contamos o dinheiro, vendemos o que restava para vender, e conseguimos uns trocados. Para nossa sorte, dessa vez o dólar paralelo estava com um ágio de quase 100% sobre o oficial.
Pegamos 300 verdinhas na mão, fomos a uma casa de câmbio trocar por cruzeiros, no mercado paralelo. Quase dobramos nossa grana. Depois fomos ao Banco do Brasil para comprar US$ 500 no câmbio oficial, em nome do Zé Carlos. Como o gerente era componente da Raça, nos deu a grana em papel, cash mesmo. Voltamos à casa de câmbio: vendemos os 500 no paralelo e repetimos a operação no Banco do Brasil, agora em meu nome. Êta país legal! Com apenas duas atravessadas de rua transformamos 300 dólares em mil. Depois vendemos as mil doletas no paralelo e já deu para a entrada nas passagens aéreas. Puxa daqui, arranja dali, conseguimos mais uns trocados em dólar. Para engrossar o orçamento, levamos 50 camisas do Flamengo, pensando em vender, no mínimo, a 50 dólares cada.
Compramos as passagens Rio-Madri-Rio, planejando encarar o resto da viagem de trem. Sabia que, se a coisa apertasse, dava pra correr para Barcelona e rever os amigos do Regencia Colon.
Chegamos a Udine na véspera do jogo e ficamos num hotelzinho perto da estação. Nessa altura do campeonato, o Zico já era o dono da cidade – era prefeito, gari, médico, deputado etc. Ficamos conhecidos na cidade como “amigos do novo jogador” E olha que ele nem tinha estreado ainda. Quando chegamos ao hotel vestidos com a camisa do Flamengo, a diária baixou para 20 dólares (o apartamento duplo). Já deu uma aliviada, porque tínhamos gastado mais de 150 dólares com passagens e comida de Madri até Udine.
Por volta das dez da manhã fomos ao hotel do Flamengo, que ficava nos arredores da cidade. Lembro-me bem da cara de espanto do doutor Taranto, médico da delegação, quando nos viu:
– Até aqui Moraes?! Não acredito! Eu já devia estar acostumado…
O Zico também estava no hotel. Uma confusão dos diabos. A imprensa do mundo inteiro estava lá, sem entender como o maior jogador do mundo foi jogar no Madureira de lá. Coisas da vida…
A essa altura todo mundo já tava sabendo “da nossa fama”, tanto assim que os dirigentes da Udinese se colocaram à nossa disposição. Nós só pedimos as entradas para a partida e que pudéssemos ir ao gramado colocar nossas faixas. Digo “nossas” porque tínhamos duas, desta vez: a tradicional, da Raça, e uma feita com esparadrapo no hotel, com os dizeres “Buona fortuna, Zico”.
Na hora do jogo, veio um carro nos levar e tivemos total liberdade para nos movimentar no estádio e pendurar as faixas. Dentro do estádio fomos aplaudidos. Os caras deliravam… Já imaginou? Uma cidadezinha, do tamanho de um ovo, recebendo o maior jogador do mundo, o que atraiu toda a imprensa do planeta? Alguém já havia ouvido falar de Udine???
Aproveitando o sucesso, abrimos logo a nossa “boutique”. Do nosso estoque só levamos dez camisas, que foram vendidas em pouco tempo a 70 dólares cada. Se tivéssemos levado todas para o estádio, não sobraria uma. Mais uma vez deu vontade de matar o Zé. Foi ele que insistiu que, em Milão, o preço seria maior…
Levamos um “chocolate”. Eles fizeram 4 a 1 rapidinho e, não fosse o Raul em dia inspirado, íamos tomar de dez. Triste mesmo foi ver o Zico jogar, ainda que só por 15 minutos, com aquela camisa preta e branca. O Zé estava arrasado, pronto para voltar para o psicanalista:
– Nunca pensei, Moraes, nunca pensei que fosse ver o Zico jogando contra. É de doer – choramingava.
No dia seguinte, retornamos a Milão para ver o “Mundialito”. Nosso problema era grana e, nosso trunfo, o Flamengo. Conhecemos um cara chamado William, brasileiro, goiano e flamenguista roxo, que morava em Milão e estudava medicina. Como era período de férias, ele conseguiu que ficássemos no dormitório da faculdade (que era católica) por sete dólares por pessoa. Mais barato impossível. O único inconveniente era o horário e a disciplina do local. Havia uma espécie de toque de despertar, às seis da matina, e outro de recolher, dez da noite.
Conseguimos contornar a situação “subornando” o administrador do prédio com uma camisa do Flamengo. Assim, dormíamos o quanto quiséssemos e saíamos dos quartos só quando a barra estava limpa. À noite era mais fácil. Os padres dormiam cedo e entrávamos pelos fundos, com a chave que o administrador nos emprestou.
Íamos ficar quase 15 dias em Milão, com pouca grana, pouquíssima. Passeávamos pela cidade e íamos sempre para o hotel da delegação, que ficava num condomínio imenso, uma verdadeira cidade dentro de Milão. Tanto que se chamava Milano Due (Milão 2). Era longe pra burro, pegávamos um metrô e um trem para chegar lá.
Dada a nossa precária situação financeira, pedimos, pela primeira vez na vida, para ir aos jogos e aos poucos treinos no ônibus da delegação. Fomos prontamente atendidos, até porque parecia que a viagem era de férias. Todos os jogadores que quiseram levaram as mulheres, noivas, namoradas e agregadas. Havia também uns 30 diretores com as respectivas esposas. Uma verdadeira festa – o dinheiro da venda do Zico estava sendo bem aplicado… Resolvemos, então, ser “beirinhas vips”. Se arrependimento matasse…
A Ana, mulher do goleiro Raul, desconfiou que estávamos numa pior e, com instinto de “super-mãe”, todo dia, no café da manhã dos jogadores, preparava um verdadeiro farnel para nós: pão, biscoito, manteiga, geleia, queijo, frutas etc. Tudo devidamente surrupiado e entregue num sacolão. Aquilo era o nosso café, almoço, jantar e ceia. Manjar dos deuses para quem estava como a gente.
Na véspera da primeira partida recebemos um reforço de peso. Chegou de Londres, onde estudava inglês, meu amigo Emanuel de Castro, o popular Danone. Por sinal, o Danone hoje é um grande produtor de filmes de surfe, bicampeão mundial dessa atividade e um “grandão” da TV Globo. Taí uma coisa que eu gostaria de entender: até a última vez que o vi, o Danone entendia tanto de surfe como eu entendo de medicina nuclear. Se alguém quebrasse o quengo dele com uma prancha de surfe, ele ia pensar que tinha sido atropelado por uma tábua de passar roupa… Por favor, irmão, me ensina o caminho das pedras!
Ficamos os três juntos até o final do torneio. No jogo contra o Milan vendemos as 3- camisas restantes. O menor preço foi 70 dólares. Dependendo da cara do freguês, custava cem…
Decidimos o título com o Juventus e, além de jogarmos mal, fomos escancaradamente roubados pelo juiz. Perdemos de 2 a 1. Jogamos tão mal que o próprio presidente do Flamengo, que estava com a esposa, saiu antes do fim do jogo, resmungando:
– Nunca vi tanto rebolado na minha vida…
Após a partida algo bem mais desagradável do que a derrota nos esperava. O problema começou no dia em que aceitamos a gentileza do Flamengo de nos ceder ingressos. Apesar do gesto simpático, nós continuávamos sendo torcedores e fomos às próprias custas ver o nosso time jogar. Não éramos profissionais de torcida. E, como torcedores pagantes, tínhamos todo o direito de xingar, pedir raça, enfim, agir como um torcedor normal quando vê uma jogada errada ou um gol perdido. Isso é normal em qualquer estádio do mundo.
(Eu, particularmente, já xinguei o Zico, o Leandro, o Júnior, o Carpegiani, craques que também erravam.)
Mas uma das madames, que viajou de graça, se sentiu ofendida ao ver e ouvir o nome do maridinho em nossas bocas, e foi reclamar com o Carlos Alberto Torres, técnico da equipe. Disse que nós estávamos ofendendo os jogadores, chamando-os de mascarados, frouxos, maricas (quem ainda usa “maricas”?) etc. Coisa típica de perua…
Depois do jogo, todos de cabeça quente, e nós no ônibus que levaria a delegação de volta para o hotel. O Carlos Alberto Torres chegou no meio do ônibus e começou um discurso enaltecendo a garra do time do Flamengo. Até aí, tudo ia bem, se bem que nenhum de nós entendia aonde ele queria chegar. De repente, ele passou a berrar de dedo em riste:
– Você e você (apontando para nós dois): nenhum jogador do Flamengo é maricas, frouxo ou covarde. São homens que honram a camisa…
A gente, sem entender absolutamente nada, falou:
– Tu tá maluco, o que aconteceu?
Ele e um dirigente, transtornados, partiram para me dar porrada. Vocês já viram o tamanho do homem? Uns 2,95m por 0,90m, isso sentado. Desci do ônibus batendo todos os recordes de corrida com obstáculos. Quem salvou a pátria foi o jornalista Márcio Guedes, na época comentarista da TV Globo, que nos botou num carro e nos levou de volta ao nosso mosteiro.
Arrasados (pela derrota e, principalmente, pelo incidente), iniciamos na mesma noite a volta para o Brasil, via Barcelona e Madri. Estava preocupado com o estado emocional do Zé, que nem falava, nem comia.
Paramos um dia em Barcelona e fomos “conversar” com o pessoal da Varig. É que nossos bilhetes aéreos eram da gloriosa Pluna (Las Primeras Lineas Uruguayas de Navegacion Aerea). Alguém aí já viajou de Pluna? Naquela época, a simpática companhia aérea cobrava um preço baratinho para a Europa, mas em compensação… Para resumir: certa vez, pedi um copo d’água no voo. Ouvi na lata:
– Vai pegar, se quiser!
Na hora da comida, o comissário perguntava, no “gritão” mesmo: quem quer comer, levante a mão! Quem levantasse a mão tinha que ficar esperto porque eles jogavam a bandeja na tua direção. Se pegasse, comia… Se não pegasse, levava uma bandejada nos cornos… Meus Deus, socorro!
Nossas passagens eram para dali a cinco dias, e não dava mais para ficar na Espanha sem dinheiro. Detalhe: nossos bilhetes Pluna não eram endossáveis, valiam nada. Usando a triste e deplorável estampa do Zé Carlos como argumento, consegui dobrar o gerente da Varig em Barcelona, que literalmente rasgou os bilhetes daquela companhia e nos colocou em um voo Varig do dia seguinte. Partimos no trem noturno para Madri. De manhã, na capital espanhola, fizemos a única coisa sensata a fazer. Fomos para o aeroporto às onze da manhã para aguardar um voo que saía meia-noite.
Do aeroporto de Madri ligamos para o Cláudio no Brasil, e relatamos o ocorrido no ônibus. Ele se movimentou e no dia seguinte o “Jornal do Brasil” deu meia página sobre o episódio.
Quando chegamos ao Galeão, a galera rubro-negra nos esperava em massa, num ato de desagravo. Não demorou muito, e o Carlos Alberto foi demitido do Flamengo. Pouco tempo depois, até o presidente do clube renunciou.
O Moraes já foi técnico. Sabiam ? Do Grêmio Recreativo Parque Novo Iraja .
Poderiam me passar o contato dele
As histórias flamengas são sempre de uma sabedoria que devemos sempre ter-las em nossas mentes para lembrar do tamanho do amor que temos por esse time de coração.
A paixão transcesde qualquer coisa desse mundo não tem explicação, é só sentir nas arquibancadas, nas ruas, em qualquer lugar em que o Flamengo estiver esse amor transborda de alegria.
Como é ótimo ser flamenguista e saber que temos uma nação de apaixonados que amam e seguem aonde o Flamengo estiver assim como o Moraes e eu.