Éramos doze. Mãe, pai, duas irmãs, dois irmãos, avô, avó, um tio, duas tias, eu.
Morávamos na rua Lauro Muller, Botafogo, em dois apartamentos contíguos, com a parede central derrubada e formando uma espécie de trave para um divertido esporte praticado por mim, meus irmãos e meu pai, um futebol caseiro em que a bolinha era produzida por maços amassados de um mata-rato chamado Petit Londrinos, que meu pai consumia à base de sessenta unidades por dia. (Morreu de enfisema, claro.)
Dos seis familiares que gostavam de futebol, cinco torciam para o Fluminense; flamenguista, apenas minha tia Isa, que morreu ontem aos 96 anos.
De algum tempo pra cá, sempre que eu estava no Rio sintonizávamos um dos canais do PFC, que ela fazia questão de manter sob assinatura para assistir aos jogos do Flamengo, e sofríamos juntos. Fisicamente fragilizada, leve tal uma pluma, Tia Isa permanecia lúcida e mais rubro-negra do que nunca. Era crítica de Muricy. Não acreditava nas supostas mudanças trazidas pelo rápido estágio em Barcelona – “isso é conversa, Jorginho, potoca”. Sustentava sua opinião com o argumento de que o Flamengo trouxera cinco jogadores de bom nível, pelo menos para os padrões atuais do futebol brasileiro, e ainda assim apresentava um time mais desorganizado que o do ano passado. Não tinha paciência com o recorrente discurso da transparência administrativa e das contas em dia – para ela, obrigação. Irritava-se quando escutava, pela tevê, a torcida gritar queremos raça ou time sem-vergonha. Via as coisas com objetividade, e garantia: “O problema do nosso time não é falta de raça, é ruindade mesmo.”
No primeiro fim de semana em que a visitei, após os miseráveis sete a um, Tia Isa reclamava de um filme publicitário do Itaú, aquele em que três ou quatro crianças pediam à seleção que jogasse por elas, com a alegação de que ainda não tinham visto o Brasil ser campeão do mundo. Presente à tragédia provocada por Obdulio Varela, Schiaffino e Ghiggia em 1950, ela estrilava: a seleção tinha que ter jogado por ela, que não teria outra chance de ver o Brasil ganhar mais uma Copa. Simples e sábia.
No dia 14 de maio me recebeu com um bolo de maçã que eu adoro, e cuja produção ela estoicamente supervisionara, e tomamos os habituais lugares na sala para o que seria nosso último jogo lado a lado: Flamengo um, Sport zero, abrindo o Campeonato Brasileiro. Já tinha programado assistir com ela à partida do próximo domingo, contra o Palmeiras. Mesmo que a gente consiga uma convincente vitória, esse jogo pra mim não vai ter graça.
João Saldanha desconfiava de locutores, comentaristas e repórteres que escondiam o clube para o qual torciam e, sempre que o assunto surgia, esbravejava: “Não sou filho de chocadeira”.
Eu também não.
Meu pai me transmitiu o amor pelo futebol. Tia Isa me ensinou a ser apaixonado pelo Flamengo.
PS: Peço licença aos meus quatro queridos colegas republicanos, aos leitores e aos comentaristas do blog, para completar essa pequena homenagem a uma grande rubro-negra com um belo texto postado por minha filha, Nina, no facebook:
“Foram 96 anos. Teve sítio, picolé de ki-suco de uva na forminha de gelo, manga tirada do pé. Teve maria-mole de presente de aniversário, quase todo aniversário, porque ela sabia que eu amava. Teve cerveja gelada. Ah, teve chá-dançante na Shell, toda sexta às 17h. Teve aquele cabelinho branco cor de nuvem. Duas facetas (com e sem dentadura). Eu preferia a sem. Teve história de antigamente, amor e carinho. Teve moda, seus olhos sempre atentos às roupas, sapatos e acessórios. Teve All Star aos 90 anos. Teve muito amor pelo futebol, em particular pelo nosso Flamengo. Teve chocolate escondido na gaveta e também água com gás geladinha. Teve também a derrota da Copa de 50, sofrida, com a volta do espumante fechado para casa. Teve a redescoberta da visão depois da cirurgia da catarata. Sim, tia, eu sou toda pintadinha e você viu isso com clareza. Teve muita lucidez até o fim. E que memória boa! Ela era doce. Leve. Bem-humorada. Levantou de tanta queda, mas nessa ela decidiu que era hora de descansar. Meu coração está em paz de saber que você viveu esse tanto de coisa e pode estar sempre ao meu lado. Nem preciso dizer que vá em paz, porque sei que você foi. O céu é o lugar dos anjos.”
Murtinho,
linda homenagem para sua tia Isa. Que bela historia de vida…
Grande abraço para toda família!
Esse artigo deveria ser lido na preleção do Flamengo para o jogo de hoje. Joguem por nossa querida Tia Isa, magote de bunda-mole. Valeu Murtinho.
Lindo, Murtinho! Maravilhoso, Nina! (perdoem-me a intimidade!). Seus saborosos textos levaram-me às lágrimas, tanto pela sua saudosa tia Isa quanto por meu saudoso pai, o meu professor de Flamengo! Certamente eles estão agora na arquibancada do Céu, unidos a todos os rubro-negros que para lá se mudaram, torcendo muito, como sempre fizeram aqui na Terra, pelo nosso Flamengo!
E o legal disso, Romano é que assim como em 1992 e 2009, havia um vovô garoto no time que se destacava no time. E esse ano também não é diferente, e o Juan é nosso melhor zagueiro.
Outra coisa: 4-4-2 implantado. Manter o Márcio Araújo foi a melhor coisa que aconteceu. É muito + fácil tirar ele do time que o Éverton. Se entrasse o Cuéllar (se recuperando de lesão), o Mancuello não teria chances de jogar e independente da escalação, ganharíamos do Vitória.
O Fla precisa ganhar (e bem) do Vitória hoje com essa escalação: 2 volantes + 2 meias e esquecer esse papo de ponta. O Éverton voltar a jogar que seja no meio, não na ponta e deixar os VOLANTES marcando subida de lateral e NÃO OS ATACANTES. É assim que se faz.
OBS¹: Não é novidade nenhuma que eu DETESTO Márcio Araújo. Mas ele sair do time pro Cuéllar é + fácil que o Mancuello ganhar a posição do Éverton.
OBS²: RIP: Tia Isa. Descanse em paz.
SRN!
Perfeita como sempre tua análise, PVS.
E, como tô escrevendo esse comentário DEPOIS do jogo, é fácil dizer isso porque tudo que vc escreveu aconteceu.
Grande início de Zé Ricardo. Impressionante a diferença do time dele pro do Muricy. Se não brilhante, MIL vezes mais compacto, simples e seguro. Isso com pouquíssimo tempo pra treinar e VIAJANDO.
Léo Duarte é candidatíssimo a ídolo, como a Copa SP que ele jogou já nos fazia desconfiar. Como esse cara chegou ao meio do ano sem oportunidades na reserva de Wallace, é uma pergunta que não tem resposta.
E, se for pra acrescentar 1992 na nossa lista de coincidências, não custa lembrar que esse ano também é bissexto e de impeachment do Pres Rep…
Hahahaha
SRN
Descanse em paz dona Isa. SRN
Memorias lindas, simples e comoventes. Parabéns aos dois pelos textos. Me lembro bem do apartamento na Lauro Muller, me lembro da tia Isa, tios, primos e da alegria da familia….e da risada debochada da Vera Maria. Abraços da prima (bem distante também). Tilim
Sheik saindo, Adriano no radar, técnico interino prata da casa quebrando longo tabu contra um alvinegro paulista ganhando de virada com gol contra, um meia gringo bom de bola buscando espaço entre os titulares, diretoria desesperada correndo atrás de zagueiro para substituir um ex-titular pavoroso cujo nome começa com W…
Que dia é a volta olímpica?
SRN
RSssssss, muito bom, vamos comprar a faixa.
Linda homenagem.
Estive ontem no enterro e testemunhei sua filha com a camisa do Flamengo em homenagem a d. Isa.
Parabéns pela linda homenagem e obrigado por compartilhá-la!!!
PS. Tizinha nos brindou com seu texto no Face!
Abraços do primo distante!!
É lindo e reconfortante poder desfrutar da certeza do compartilhamento de uma vida plena. Ao fim dos primeiros parágrafos eu já marejava. Abraços.
Onde aperta o botão pra parar de chorar?
Quem ama o futebol, e principalmente o Flamengo, sempre baixa a guarda com histórias de reverência a alguém que nos transmitiu esse sentimento.
Que sua tia Isa possa abençoar o Flamengo com momentos melhores do que os últimos que ela vivenciou.
Saudações Rubro-Negras.
Linda homenagem! O amor sempre estará presente por toda eternidade nos entes queridos que se foram da família Murtinho e mais ainda dos que estão. Nunca vi amor maior do que o dessa família que conheco exstou sempre lembrando, visitando há mais de 30 anos. Jorge Murtinho eu amo muito ainda a família Murtinho. Lauro Müller ey inesquecível e,semore será.
Caro Jorge, lamento pela sua perda. Tenho certeza que seu texto fez jus a grande mulher que hoje habita os céus, assim como o de sua filha, este carregado de emoção.
Torço ainda, que além de te ensinar ser um apaixonado pelo Flamengo, lá do lugar que estava reservado a ela, e que hoje ocupa, sua tia possa ser um daqueles, que mesmo sem presença de corpo em nosso mundo, ajude na alegria da nação rubro-negra. Pois precisamos de mais anjos intercedendo por este time, para que ele dê “liga”. Chega de bando, viremos um time, e com ajudinha desse mais novo anjo.
Att
Rafa
Porra Murtinho, logo pela manhã vc vem e joga cisco nos nossos olhos! Obrigado pelo texto, simples, verdadeiro e lindo. Aqui em casa todos fazendo questão de ler. Emociona e faz bem a alma flamenga…SRN
Dois textos emocionantes, especialmente o de sua filha.
Mais uma flamenguista que se vai, em meio a muitos que chegam.
Um abraço e que ganhemos (do Vitória) e do Palmeiras em homenagem a ela.
Lembro bem… meus sentimentos.
Meus sinceros sentimentos Murtinho. Já vivi este sentimento e revivi lendo este texto com lágrimas nos olhos.
Abraços e SRN
Roberto
Que lindas palavras, que linda senhora de vida longa!! Que Deus permita que eu chegue nessa idade e veja mais vitórias do que derrotas do nosso Flamengo. Ela agora assistirá os jogos do Mengão em um lugar privilegiado. Ficará apenas a saudade dos familiares, um abraço carinhoso a todos.
Quisera todos os bons fossem tão longe.
E que nosso Mengão nos encha de esperanças e alegria.
SRN
murtinho,
Deus abençõe a sua avó…que ela tenha um encontro maravilhoso com ele.
vc com essa homenagem MARAVILHOSA só mostra o quanto és grande.
parabéns pela pessoa que tú és e saiba que minha admiração por vc, só cresce !
SRN !!!