Todo flamenguista alfabetizado já deitou os olhos sobre a imortal crônica rodrigueana Flamengo Sessentão pelo menos uma vez na vida. É aquela da inesquecível imagem da camisa do Flamengo aberta no arco como uma Bastilha inexpugnável. Na mesma monumental crônica o vate tricolor fala das paixões e suicídios provocadas em 1911 por uma Mata-Hari com um seio só e da nostalgia dos quadris imensos de adolescentes de catorze anos pondo-se de perfil para atravessarem uma porta. Em referência à nossa gênese nas regatas, Nelson menciona en passant uma camoniana tradição náutica rubro-negra.
Veja bem que não estou fugindo do assunto que realmente importa, a derrota na Libertadores. Mas não pretendo contribuir com o meu quinhão de gasolina à fogueira das certezas, vaidades e ignorâncias que hoje arde na Nação. Estou vivendo aquele momento foda, de profundo questionamento sobre os meus próprios valores. Será que dei mole de não ter comemorado o Campeonato Carioca? Terei oportunidade de erguer a taça da vitória ainda em 2019? Compartilho uma única certeza, o Flamengo nasceu para nos fuder.
A maior das minhas vontades era me aprofundar nos temas busto unilateral da Mata-Hari ou quadris gigantes das novinhas de outrora. Lamentavelmente, depois da noite macabra em Quito, o que temos pra hoje é tentar entender que porra de tradição camoniana é essa que só o Nelson enxergou. Do alto da minha proverbial ignorância para as sutilezas da literatura comentada só consigo perceber que o Flamengo, indiscutivelmente nascido sob o símbolo da vitória, tem sua existência de glórias pontilhada por inúmeros naufrágios.
Que marcam nossa história desde o emblemático soçobro da baleeira Pheruza, o primeiro barco da flotilha rubro-negra, o afundamento da gôndola veneziana emprestada à revelia por Lucci Colas aos arruaceiros da República Paz & Amor, ou outras tragédias mais contemporâneas, como a derrota para o Santo André na Copa do Brasil, o funesto 3 x 0 do América do México ou o previsível sinistro com a nau da nossa insensatez regional na amaldiçoada noite de ontem.
Nelson, que também possuía o dom da profecia, provavelmente nos atribuiu traços camonianos não pelas valentias prévias dos seis jovens remadores Pais da Nação cortando os mares nunca doutrem navegados. Mas por prever as fatídicas intervenções do terrível Adamastor, sempre a fustigar nossa passagem pelas ondas insufridas, Eu farei dÂ’improviso tal castigo, Que seja mor o dano que o perigo!, com irritante regularidade. Convenhamos: — grande profeta! grande profeta!
Só para que todos estejamos na mesma página cabe o registro de que no Canto 5 d’Os Lusíadas o ciclópico Camões nos conta do gigante Adamastor, um filho da deusa Gaia que se rebelou contra Zeus e foi jogado ao fundo dos mares. Tornando-se terrível e vingativo guardião do Cabo das Tormentas, responsável pelas tragédias que trouxeram duradoura má fama à quebrada onde o Atlântico se encontra com o Índico. Onde o gigante exilado, segundo a mitologia, desfazia-se em lágrimas, as águas salgadas que banhavam a confluência oceânica, e revoltava-se sob a forma de uma tempestade que afundava as naus daqueles que ousavam cruzar seus domínios.
Creio que a perspicácia natural do rubro-negro médio dispense a necessidade de traçar paralelos entre as figuras do nosso treinador Abel e do mitológico malfeitor das Tormentas, mas é tão precisa a descrição que Camões faz do gigante que não podemos nos dar ao luxo de não glosá-lo: Tão grande era de membros, que bem posso/ Certificar-te que este era o segundo / De Rodes estranhíssimo Colosso,/ Que um dos sete milagres foi do mundo./ Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso,/ Que pareceu sair do mar profundo./ Arrepiam-se as carnes e o cabelo,/A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo!
Arrepios das carnes e dos cabelos é uma sensação vulgar, comum a todos que estavam vivos em 30 de junho de 2004, desde que se confirmou a contratação de Abel. Sensação que se repete a cada atuação do time, incapaz de alicerçar suas vitórias em algo além do talento individual de seus jogadores mais caros. Após meses de treinamentos secretos e outras presepadas o time de Abel ainda luta para alcançar a mediocridade, demonstrada episodicamente apenas contra equipes ainda menos virtuosas que a nossa. Em três partidas decisivas o Flamengo fracassou, uma no Carioca e duas na Libertadores. As alegações que o time só perdeu três jogos são ofensivas à nossa inteligência.
O que nem eu mesmo digo porque não gosto de ver escrito é que o time do Flamengo é uma merda. Mal treinado, previsível e sem nenhuma capacidade de oferecer resistência às equipes providas de um mínimo de organização dentro de campo. O Santo André não ganhou a Copa do Brasil por acaso. Nem é o acaso o responsável pelo Flamengo ser um eterno cabaço na Liberta. O que eu não tenho mais saco pra dizer é que o Abel não tem culpa alguma de ser quem ele é. Se culpa existe é de quem o contratou desprezando seu histórico.
Já não tenho mais nenhuma duvida de que Abel encarna o Adamastor do Flamengo. Afundando nossas naves e destruindo nossas ilusões de refazer em triunfo o Caminho das Índias com suas políticas de vestiário rasteiras, sua predileção anacrônica pela disputa paroquial do carioqueta, sua vocação retranqueira, seus protegidos e sua injustificada autossuficiência. Características já demonstradas no comando de outros times, mas que refletem fielmente a mentalidade da nossa elite dirigente. Que ainda está encalhada nos bancos de areia do século passado, acreditando piamente na falácia da cobrança com voz grossa e na infalibilidade de seus palpites leigos.
A única vantagem em se ter razão é ser um fudido consciente. Não tem nenhuma aplicação prática na vida. Preciso outra vez chamar Camões, um fã ardoroso do Vice Almirante Vasco da Gama, para me ajudar a fechar esse texto vazado em extremo emputecimento, sob o risco de amontoar impropérios e choramingos que nenhum beneficio nos trarão. Tirem suas conclusões.
Aqui espero tomar, se não me engano,
De quem me descobriu suma vingança.
E não se acabará só nisto o dano
De vossa pertinace confiança:
Antes, em vossas naus verei, cada ano,
Se é verdade o que meu juízo alcança,
Naufrágios, perdições de toda sorte,
Que o menor mal de todos seja a morte!
Mengão Sempre
Mengao escolheu o caminho mais dificil. Alguma novidade.
Pior para os boludo que devem estar com as pernas tremendo por jogarem a vida contra o fuderosao.