Talvez você nunca tenha reparado nisso, mas o Flamengo foi pioneiro na realização de eleições diretas na escolha de seu presidente. Há clubes onde até hoje – como o Palmeiras, por exemplo – os presidentes são eleitos por um conselho pequeno. Outros, como Vasco e Fluminense, só passaram a realizar eleições diretas na década passada.
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No Flamengo não. No Flamengo desde os anos 70 há eleições diretas. Isso pode parecer natural para todos nós, mas a verdade é que foi preciso brigar muito para que esse direito fosse reconhecido. E essas brigas às vezes foram parar no Judiciário.
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Semanas atrás estive pessoalmente com o eterno Presidente Marcio Braga e ouvi suas histórias sobre o quanto se esforçou para transformar o Flamengo. Se hoje no Flamengo todos os sócios votam para presidente é porque Marcio Braga lutou muito para que esse direito fosse implantado e respeitado. E mesmo enfrentando fortíssimas resistências e ameaças, Marcio Braga jamais teve medo de lutar – inclusive no Judiciário, por mais incômodo que isso fosse.
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Eu, que estou buscando a ampliação da democracia rubro-negra, achei legal lembrar de 2 episódios marcantes que ajudaram a moldar o Flamengo como o clube que amamos. Vamos a eles:
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A ELEIÇÃO DE 1978
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Márcio Braga tentava sua primeira reeleição, tinha sido eleito em 1976. Seus opositores no Flamengo, contudo, manobraram para que ao invés dos sócios proprietários de então (pouco mais de 3700 votantes), a escolha deveria obrigatoriamente ocorrer em um conselho formado por 300 membros, sendo 200 deles natos e apenas 100 eleitos. Se isso acontecesse, obviamente a direção do Flamengo seria um eterno revezamento entre as figuras mais proeminentes do clube, que teriam maioria qualificada de 2/3 entre os eleitores.
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Inconformado, Marcio Braga foi para o Judiciário. Um de seus principais aliados na época, Marco Aurélio Moreira Leite, conseguiu uma liminar para garantir que todos os proprietários pudessem votar:
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Obtida a liminar pelo assessor de Marcio Braga, seus demais aliados passaram a ingressar no mesmo processo como “litisconsortes” e terem também o direito de voto. Em paralelo, o Flamengo era ameaçado de sofrer intervenção do CND – o órgão que na ditadura militar era uma espécie de agência regulatória dos clubes de futebol. Marcio Braga não cedeu: pelo contrário, fez saber que mais de 300 sócios já haviam outorgado procuração para a advogada de seu grupo político, a FAF (Frente Ampla pelo Flamengo), além de deixar claro que não temia sofrer a intervenção:
O resto da história é conhecido: Marcio Braga se reelegeu, Rondinelli de cabeça marcou o gol do título estadual contra o Vasco e dali em diante o Flamengo viveu seus anos mais radiantes.
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A ELEIÇÃO DE 1988
Dez anos depois, mais briga para ampliar a democracia rubro-negra. Novamente presidente, Marcio Braga conseguiu mudar o estatuto para que todos os sócios pudessem votar, não apenas os proprietários. Esse foi um passo decisivo para transformar as eleições do Flamengo naquilo que elas são hoje, uma assembleia geral de todos os associados.
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A oposição da época, liderada por Dunshee de Abranches e Julio Gomes, não se conformou e conseguiu uma liminar para suspender a eleição em cima da hora. Dessa vez Marcio Braga, representando o Flamengo, estava na posição de réu. E comprou a briga em defesa das eleições amplas e diretas. Teria sido mais fácil deixar a eleição se realizar e não recorrer, pouparia o clube de um quadro de incertezas, indefinições e disputas judiciais, porém Marcio Braga foi firme: as eleições precisariam ocorrer com a participação de todos, mesmo expondo o clube aos riscos de um processo autofágico.
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A imprensa da época abriu espaço para os dois lados se posicionarem. É curioso revisitar esses textos 32 anos depois, escritos por 2 notórios advogados rubro-negros hoje Grande-Beneméritos, Walter Oaquim e Antonio Augusto Dunshee de Abranches:
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Dizia Dunshee:
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“É preciso não confundir eleição direta para Presidente da República com eleição direta para presidente do Flamengo. Futebol e política nunca deram bom casamento….Os sócios proprietários são donos de uma fração ideal de todos os bens do clube. Como tal, têm o direito de escolher com exclusividade os seus administradores….os sócios contribuintes, patrimoniais e atletas são meros usuários dos espaços que pertencem aos proprietários….O Flamengo, há 93 anos sem eleição direta para presidente, cresceu e adquiriu um vultoso patrimônio. É campeão de tudo….Eleição direta no Brasil não vai resolver os problemas de inflação, dívida externa, fome, miséria, mortalidade infantil e violência urbana….Alguém já disse que se o Flamengo não se cuidar acabará se transformando no quintal da “Selva de Pedra”….Precupo-me com o futuro. Não importam as pessoas que hoje estão disputando a eleição. Os sócios podem ter preferência por um por outro, mas não devem se deixar levar por propostas demagógicas traduzidas em eleição direta.”
Dizia Oaquim:
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“A luta pela democracia política e social é um sentimento que atinge a todos os povos do mundo….Esta realidade nacional e mundial motivou o Flamengo, clube mais popular e vanguardeiro dos movimentos sócios-esportivos a constituir uma comissão com o escopo de reformar os seus estatutos e adaptá-los à nova Constituição…um grupo político de oposição pretendia que a Assembleia Geral, composta de aproximadamente 20 mil sócios de todas as categorias, elegesse 150 conselheiros, que, juntando-se a 1750 sócios proprietários (conselheiros natos antes de 1978) passariam a eleger o novo Presidente do Flamengo. Este pensamento retrógrado gera duas injustiças: a primeira, porque discrimina a maioria dos sócios proprietários (hoje o Flamengo tem cerca de 4 mil); a segunda, porque em cima do processo eleitoral , cassa o direito de todos os sócios do Flamengo de escolher seu Presidente…Essa é a realidade: um grupo, comprometido com o atraso, pretende, por oportunismo político, anular a participação democrática de sócios de todas as categorias, levando ao fechamento político hoje e, amanhã, a uma crise financeira, esportiva e clubística, sem precedente….Estão em jogo o presente e o futuro democrático do clube, e quem estiver contra a democracia no Flamengo acabará, como sempre acabaram os ditadores, no lixo da história. A democracia começa pelo Flamengo.”
AS ELEIÇÕES DE 2021
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É muito provável que ao ler este artigo você já saiba que eu processei o Flamengo, como última tentativa de fazer valer a lei que assegura o voto a distância já nessas eleições de 2021. É um fardo muito pesado processar o Flamengo – e eu só fiz isso depois que todas as portas no clube se fecharam a uma solução interna e consensual.
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O que me consola é ver que a luta pela ampliação da democracia no nosso clube não começou há pouco, nem foi a primeira vez que foi preciso pedir socorro ao Judiciário. Pelo contrário, há mais de 40 anos há um embate contra as vozes do atraso, que resistem às mínimas mudanças e temem ampliar a participação em nossos processos decisórios.
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Não sou louco de ter a pretensão de me comparar ao eterno presidente Marcio Braga, por quem nutro incondicional simpatia e admiração. Provavelmente ele não vai votar em mim. Mas sua história me inspira. Mostra que, diante dos obstáculos a contornar para estabelecer a democracia no Flamengo, não se deve hesitar em fazer o que for preciso para seguir avançando.
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Se Marcio Braga foi corajoso o suficiente para não se render, não ceder às ameaças, não titubear em buscar no Judiciário a garantia necessária para que os sócios do clube pudessem ir abrindo espaço para democratizar o Flamengo, em 2021 é preciso ter a mesma tenacidade. Afinal, os velhos discursos de outrora seguem a nos assombrar, reciclados e ressignificados (às vezes nem isso), mas sempre com o indisfarçável desejo de manter as rédeas nas mãos de poucos.
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A democracia começa pelo Flamengo. Ao menor sinal de ameaça de sua corrosão, é preciso seguir lutando. Inclusive, como a história nos mostra, com a ajuda do Judiciário quando necessário. Obrigado, presidente Marcio Braga, por mostrar que mesmo sob as mais fortes ameaças a coragem de lutar nunca deve faltar.
Ok, dado o recado realçando o nosso estilo democrático atual teve luta para ser o que é hoje, mas perdoe-me a ignorância, Walter, mas uma democracia de fato, os sócios torcedores ativos e que contribuem mensalmente com o Clube tb deveriam fazer parte do processo, nem que fosse de forma diferente, mas apenas os sócios do Clube acho ainda muito pouco e pode inclusive não retratar a vontade da maioria, mas tb se pensarmos no controle da legitimidade do pleito, do jeito que está fica mais fácil, eis um tema a ser debatido, para realmente falarmos em uma democracia de verdade…
“Estão em jogo o presente e o futuro democrático do clube, e quem estiver contra a democracia no Flamengo acabará, como sempre acabaram os ditadores, no lixo da história. A democracia começa pelo Flamengo.” Oaquim profético!
Ok, dado o recado realçando o nosso estilo democrático atual teve luta para ser o que é hoje, mas perdoe-me a ignorância, Walter, mas uma democracia de fato, os sócios torcedores ativos e que contribuem mensalmente com o Clube tb deveriam fazer parte do processo, nem que fosse de forma diferente, mas apenas os sócios do Clube acho ainda muito pouco e pode inclusive não retratar a vontade da maioria, mas tb se pensarmos no controle da legitimidade do pleito, do jeito que está fica mais fácil, eis um tema a ser debatido, para realmente falarmos em uma democracia de verdade…
“Estão em jogo o presente e o futuro democrático do clube, e quem estiver contra a democracia no Flamengo acabará, como sempre acabaram os ditadores, no lixo da história. A democracia começa pelo Flamengo.” Oaquim profético!