Raras coisas nessa quarentena têm me animado a ligar a TV com tanto ânimo quanto esses estupendos jogos da Copa de 1982, reexibidos pelo canal Sportv. Ah, o Brasil de Zico, Leandro, Sócrates e (gulp) Serginho Chulapa! Que toques curtos, que refino técnico, que buracos na zaga para a Itália passar, snif.
O Mauro Laviola, velho amigo e ex-jogador dos bons, me escreveu analisando o que de melhor aquele time nos oferecia: “Era um futebol sem chutões para longe ou carrinhos voadores. E nada parecido com o que há hoje: um bolo de gente no meio e no máximo dois cristãos na frente rezando para uma bola sobrar.”
Tais reprises me fizeram lembrar de outro craque, este de fora dos gramados: o cronista Sandro Moreyra. Criador de causos, amigo de Garrincha e colunista do “Jornal do Brasil”, necessariamente nessa ordem, o filho do genial poeta Alvaro Moreyra e da brilhante diretora Eugenia Moreyra cobriu a Copa de 1982 na Espanha, e deixou registrada a festa que fez nossa torcida por lá.
Com receio de que não passasse de pura literatura, perguntei ao Moraes, tremendo torcedor, se tudo aquilo que Sandro contou de fato ocorreu. Moraes confirma: “Sim. E várias vezes.”
Convido, assim, o leitor aí confinado em casa para uma voltinha pela abafada Sevilha, na companhia do guia Sandro Moreyra:
“Na monumental praça de touros de Sevilha, durante a Copa do Mundo de 82, um deslumbrado torcedor brasileiro ao ver passar o toureiro à sua frente ovacionado pela multidão que lhe atirava flores, leques e mantilhas, jogou-lhe como suprema homenagem, o pé direito de sua surrada e mal cheirosa conga.
“Este foi um dos episódios de uma tarde inesquecível, em que os canarinhos brasileiros avacalharam completamente essa secular e sagrada instituição espanhola que são as touradas.
“O torcedor da conga, na verdade, foi o único que durante todo o espetáculo se comportou corretamente, torcendo pelo toureiro como mandam as velhas e respeitadas regras das touradas. Os outros, ou seja, a imensa e vibrante torcida brasileira do futebol, com suas camisas amarelas, fitinha na testa e bandeira na mão, entrou na praça de Sevilha decidida a torcer pelo touro, fato que em qualquer parte da Espanha é considerado, no mínimo, uma heresia.
“Mas, acima da tradição, falou a boa índole do brasileiro. Ele não se conforma com aquela luta desigual onde são dadas ao toureiro todas as vantagens e ao touro só se concede uma opção: a de se deixar matar.
“Ao tomar, porém, essa posição pró-touro, a torcida canarinho ofereceu um espetáculo jamais visto em arenas e que será relembrado através dos tempos pelos amantes da tauromaquia com vergonha e indignação.
“O primeiro impacto surgiu quando o touro ao entrar na arena, ainda meio tonto com a claridade forte, foi recebido em vigorosos aplausos das arquibancadas repletas de brasileiros. Facilmente identificados por suas camisas amarelo-cheguei, os canarinhos agitavam bandeiras saudando o touro com o entusiasmo que dedicam ao Flamengo quando adentra o gramado do Maracanã. Era, contudo, apenas o começo.
“Logo depois, quando o picador no seu cavalo cercou o touro e, num golpe rápido, cravou-lhe sua pontuda lança fazendo jorrar um sangue grosso e vermelho pelo seu pelo preto, uma tremenda vaia explodiu de mistura com gritos compassados de ‘filho-da-puta’ e de pilhas de rádio atiradas em sua direção. O picador fugiu espavorido.
“A entrada em seguida do moço das banderilhas, com suas calças justas e seu bolero bordado, foi de expectativa. Mas tão logo o viram dar aquela corridinha de bailarino na ponta dos pés os gritos ritmados de ‘bicha, bicha, bicha’ acompanharam todo seu trajeto.
“Nesta altura, os espanhóis estupefatos não entendiam o que estava acontecendo, julgando-se cercados por um bando de malucos. De seu canto, aguardando o momento de entrar em ação, o toureiro, famoso matador, olhava abismado sem compreender aquela unânime, inédita e feroz manifestação a favor do touro.
“Chegou, então, o momento culminante. Ao som festivo de clarins, o toureiro, solene e grave, caminhando a passos firmes, com sua longa capa vermelha atirada aos ombros, entrou na arena, e cumprindo o ritual primeiro dirigiu-se à tribuna de honra. Lá, curvando-se num gesto elegante, atirou o seu solidéu, barrete ou que nome tenha a uma dama certamente ilustre.
“Em seguida, com a mesma pompa, voltou-se para o público e em galante reverência curvou-se numa saudação fidalga. E ainda estava curvado quando das arquibancadas estourou uma gritaria bem brasileira, forte e cadenciada:
– Um, dois, três, quatro cinco mil! Eu quero que o toureiro vá pra puta que o pariu!
“Boquiabertos, os espanhóis se interrogavam:
– Que pasa, hombre? Los tipos son locos?
Evidentemente não podiam compreender aquele comportamento de fazer corar de vergonha Manolete, Dominguin, Paco Camacho, El Cordobés e todos os toureiros , vivos ou mortos.
“Do outro lado, arquejante, já bastante ferido e lamentando não ter nascido vaca, o touro mantinha, no entanto, um ar embevecido. Jamais, qualquer de seus antepassados recebera tamanha solidariedade. Comovido, ele olhava cheio de gratidão para os canarinhos brasileiros. E tão encantado estava que nem viu quando o matador friamente e com imensa espada matou-o na primeira estocada.
“Morreu feliz, certamente, por saber que na alma daqueles canarinhos brasileiros havia piedade por ele e repulsa por seu carrasco.”
Uma farra, como se vê, que quem teve a sorte de acompanhar de perto não esquece. “A Espanha tinha mil opções para a torcida. Foi a Copa das Copas. Nunca vai ter outra igual”, garante Moraes, com a marra de ter ido a todas as Copas do Mundo desde 1970 (são 13 até agora, mas o Marquinhos Dunlop garante que vai ultrapassá-lo um dia.)
Enquanto isso não chega e não cansamos das reprises no Sportv, enchamos os pulmões na varanda:
– Um, dois, três, quatro cinco mil! Eu quero que o corona…
Muito bom, Dunlop!!! hahhaha, otima tourada!!!
So nao concordo com o fim.
Coloca la nao “corona” e sim “porconaro” – ai estaria perfeito !
Abraço RN
hahahahahah sensacional
Touradas à parte (que eu, particularmente, considero uma barbaridade), a história é excelente.
SRN
Valeu Ogrão!
Muito bom Dunlop!
Abraços
Roberto
Ótima, em tempos de COVID é o que precisamos. E não há brasileiro, os que conheço, que não torça pelo touro.
Muito bom, Dunlop! Isso acabou se repetindo, quatro anos depois, no México. A galera pegou gosto por torcer pelo touro!
Abração.
… vá pra PQP !
E como quero.
Tive amigos que foram à Espanha, onde, na minha opinião, tivemos uma das melhores copas de todos os tempos, que não merecia a final que teve,
Além da nossa espetacular seleção, foram eliminadas duas outras que apresentaram um futebol muito superior ao dos finalistas, a França (que ainda perdeu, jogando sem vontade, o terceiro lugar) e a Inglaterra, eliminada minutos após a nossa derrota, numa tarde em que os deuses do futebol estavam rigorosamente distraídos.
Pelo que me contaram, à época, é tudo verdade.
Se lá estivesse, iria fazer coro.
Touradas são lindas, mas só no cinema e nos quadros de Picasso.
Por fim, fora do tema central.
Sou suficientemente vellho para, então com menos de 20 anos, ter ido a algumas das badaladas reuniões, em Ipanema, na casa da incrível Eugenia.
Tempos inesquecíveis.
Evocativas SRN
FLAMENGO SEMPRE
Conte mais das tertúlias de dona Eugenia, mestre! Era na Xavier da Silveira?
eu lembrei de uma historia …em 1990 fui para a copa do mundo na italia (única na minha vida)depois da copa fui passear pelo velho continente e cheguei em portugal.
fiquei na casa de uma àmiga brasileira`em cascais.
aonde conheci uma familia portuguesa que fazia touradas nos arredores de cascais.
eles me convidaram e fui ver como era….
lá não pode matar o touro na arena,o que causa muita intolerância do público,pessoal vaia muito e pede para matar o animal,,,,
achei muito deprimente o espetáculo !
por isso não me espanta os brasileiros torcerem pelo touro,é mais humano !
SRN !!!
Grande Chacal, mestre LFV tem uma sobre a sociologia das touradas, e as diferenças entre Portugal e Espanha. Leia aí: http://www.rtp.pt/acores/comunidades/touradas-por-luis-fernando-verissimo_41208
muito boa a matéria sobre as touradas.
SRN !