[ Por Julio Benck (@tuagloriaelutar) ]
“ (…) Bastará a camisa, aberta no arco. E, diante do furor impotente do adversário, a camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável.”
Ninguém contesta que o parágrafo final da antológica crônica “Flamengo Sessentão” de Nelson Rodrigues tornou-se uma espécie de manifesto não oficial sobre a alma rubro-negra. O gênio de Nelson, naturalmente, se encarregava de fechar sempre com um gran finale tudo que ele escrevia e com essa crônica não seria diferente.
Disse outro magnífico cronista, Arthur Muhlenberg (rubro-negro de coração, ao contrário do tricolor Nelson) que o Flamengo é a representação arquetípica do herói clássico. Explico e resumo: arquetípico é o mesmo que modelo ou uma representação de um ideal a ser alcançado.
E o que tem a ver Nelson e Muhlenberg além do raro apuro com as palavras? Vamos por partes até o vapo final.
Em “Flamengo Sessentão”, publicado em 1955 na revista “Manchete Esportiva”, há um trecho que costuma passar batido, raras vezes citado em crônicas futebolísticas e sobre o Flamengo em especial. É este aqui:
“(…) o Flamengo joga, hoje, com a mesma alma de 1911. Admite, é claro, as convenções disciplinares que o futebol moderno exige (…)”
Há 64 anos, Nelson já sabia que o Flamengo, institucional e esportivamente, era dotado de uma notável capacidade de se reinventar ao assimilar as ditas convenções. Os fatos históricos, a propósito, confirmam isso. Em 1896, o Flamengo de regatas não titubeou em mudar suas cores, dada a facilidade com que desbotavam os caros tecidos importados dos uniformes azuis e amarelos ingleses.
O critério para essa mudança já sinalizava claramente essa adaptabilidade do Flamengo às convenções modernas. Conta a literatura rubro-negra que foi escolhido o vermelho e preto por resistir melhor à salinidade das águas (sim, as provas de remo eram no mar) e para alinhar as cores do clube às do popularíssimo Jockey, numa brilhante estratégia de marketing digna de João Henrique Areias.
Quer outro exemplo de que o Flamengo, desde tempos imemoriais, incorpora as convenções do futebol moderno? Já em 1911, a tal grande época exaltada por Nelson Rodrigues, o novíssimo super time de futebol, sem campo para treinar, “caçou com gato” como disse Jorge Jesus certa vez. Na falta de instalações, foi parar nos campos públicos, onde muitos creem estar a gênese da popularidade flamenga.
O que é essa capacidade de se moldar que não o próprio modelo de herói arquetípico? Vejam o Super-Homem, o Homem-Aranha e tantos outros heróis. O ideal que eles representam é justamente o fraco se transformando em forte, ou, em outras palavras, o poder nascendo da debilidade. Clark Kent é um tímido jornalista, Peter Parker é inseguro e fotógrafo…é a dualidade do modelo arquetípico de herói, magnificamente representada, no esporte, pelo Flamengo.
Vamos para 1966. No Brasil, Carlos Lacerda e outros luminares da centro-esquerda fundavam a Frente Ampla, movimento que tinha como mote fazer oposição ao governo militar. Nota: um dos articuladores, Juscelino Kubitschek, estava exilado em Portugal, quando aliou-se a Lacerda para fundar o movimento com a Declaração de Lisboa.
Exatos dez anos depois, em 1976, Márcio Braga, que foi casado com a sobrinha de Juscelino, emularia o mesmo movimento, fundando então a FAF, a Frente Ampla pelo Flamengo. Era uma resposta política ao atraso institucional que o clube amargava desde
o histórico presidente Gilberto Cardoso, o vitorioso mandatário que nos levou fora de campo ao inesquecível tri 53-54-55.
O resultado da FAF dispensa maiores comentários. Como movimento político, só encontraria seu ocaso definitivo em 1992, quando Junior, um dos atletas símbolo desse Flamengo arrojado e eficaz que ela reinaugurou se despediria do futebol com o mítico pentacampeonato brasileiro. Junto a Leovegildo, Márcio Braga se despediria da presidência e o clube de um conceito de gestão que resgatou um Flamengo forte, disciplinado e extremamente competitivo, no qual a força esportiva vinha das categorias de base.
Quem não lembra do Junior dando uma ponte para não deixar a bola entrar no nosso gol em uma jogada que nada valia na final contra o Botafogo? Nada mais simbólico.
A partir disso, mais ou menos como no hiato entre Cardoso e a FAF, o Flamengo mergulharia num período nebuloso, em que tentou, de forma atrapalhada, absorver novamente as convenções modernas.
O futebol brasileiro tinha mudado, esquadrões como o Mengão 80 já não eram mais possíveis, em parte por causa do próprio Zico, que libertaria os jogadores da escravidão do passe com uma lei que leva o seu nome, promulgada enquanto ministro extraordinário dos Esportes, em 1993, e revogada pela Lei nº 9.615, de 1998.
Márcio Braga ainda voltaria em 2004, trazendo consigo o élan de 1976 (e por que não, o de 1911), mas não os mesmos braços, mentes e a energia com que conduziu o vitorioso movimento na década de 1970.
Ainda assim, foi fundamental para reorganizar um Flamengo que só sobreviveu à era do caos 1993-2003 em virtude da sua mastodôntica torcida e de atletas que souberam honrar nossas tradições. Os resultados mais expressivos foram a Copa do Brasil de 2006 e a volta do Flamengo à Libertadores, depois da desastrosa participação de 2002.
A essa altura, você deve estar pensando que vou chegar a 2012, ano em que um outro movimento político, liderado pelo grupo SóFla, assumiria o comando do clube. Claro, não dá para traçar uma linha do tempo administrativo/gerencial do Flamengo sem destacar o mais recente “Big Bang” dessa marca que prova, de tempos em tempos, sua formidável habilidade em se renovar.
Sobre isso não vou me alongar muito. Provavelmente você sabe o que aconteceu desde que Eduardo Bandeira de Mello, em 27 de dezembro de 2012, disse em seu discurso de posse que “a dívida do Flamengo é moral”.
Na verdade, quero mesmo é chegar ao dia 25 de novembro de 2019, um dia depois do Flamengo ter alcançado uma façanha esportiva tão enorme, mas tão enorme, que talvez nem Márcio Braga pudesse cogitar naquele distante 1976: a conquista de um Campeonato Brasileiro um dia depois de uma Taça Libertadores.
E se aquele movimento tinha em Zico, Junior, Leandro & cia a personificação em campo da eficiência administrativa, hoje o clube, ao comando de Rodolfo Landim e Marcos Braz, tem um atleta que representa a perfeita adaptação às convenções modernas: Gabigol.
Gabriel Barbosa não é apenas um craque de bola acima da média. Ele é rebelde, tem uma certa dificuldade em se ajustar a regras e é, por que não dizer, a cara da criticada geração Z (que não é de Zico).
Ele não tem muito respeito por tradições, instituições, protocolos e quejandos. Gabigol é notoriamente impulsivo, ou seja, seu pathos é ser justamente algo imaturo ao lidar com suas emoções, representando com perfeição os valores da galera mais jovem.
O deboche de Gabigol, presente em suas comemorações e controlado não sem algum custo nas entrevistas, é a forma com que muitos nascidos depois de 1990 se posicionam em relação à política, trabalho e em outros assuntos. Deboche que também nasce da certeza de ter na internet um veículo de comunicação instantâneo, por mais superficiais que sejam algumas relações on-line.
Ele assume, hoje, o arquétipo suscitado por Muhlenberg, personificando em campo os anseios de uma geração que tem dificuldade em encontrar um rumo neste mundo em que a bipolaridade esquerda/direita já não faz muito sentido. Se não há mais direções ou orientações bem definidas, por que ser certinho e enquadrado?
Esse herói arquetípico, antes, era o jogador íntegro e ligado profundamente à família (na concepção mais conservadora), mas hoje ele está mais para um Macunaíma, um anti-herói, um ser humano comum que erra enquanto acerta e Vasco-versa. Alguns são assim e têm fibra, outros só são nas aparências. Nosso intrépido camisa 9 seguramente está no primeiro grupo.
Temos então uma confluência de fatores que, no Flamengo, sempre tomam a forma de um roteiro de saga. Veja: o corolário da FAF foram os títulos brasileiros entre 1980 e 1992 e por que não dizer, a Libertadores e Mundial de 81, embora o presidente nesses dois últimos fosse Dunshee de Abranches. A essa sequência de anos vitoriosos, por sua vez, antecedeu um período de títulos bissextos, tal como acontece agora.
Na longa travessia do deserto que separou clube e torcida de uma nova conquista da América, a trama escrita para o Flamengo foi assim: eliminações sucessivas para times sem expressão, na maioria com pipocadas que renderam gols adversários nos últimos minutos, incríveis apagões em jogos chave ou mesmo a pura e simples falta de sorte (sem ela, disse Nelson, não se bebe nem um copo d’água), como em 2012.
Esse roteiro termina com uma final em jogo único, que confere muito mais dramaticidade a uma decisão porque evita a deplorável “gestão de resultado”. O adversário, o River Plate, até então atual campeão e em meio a uma geração vitoriosa, veio para equilibrar a balança depois de tantos vexames para Leons, Américas e Emelecs.
A virada em fulminantes três minutos, quando tudo parecia perdido, é o resgate histórico do Flamengo de Joaquim Bahia, heroico remador que, depois de naufragar com a barca Pherusa, nadou e nadou até chegar a salvação em 6 de outubro de 1895. Nosso Bahia, em 23 de novembro de 2019, é Gabigol, a encarnação em campo de um Flamengo aguerrido e que não cansa de fazer mutações, a despeito de toda e qualquer adversidade.
A atual temporada, como a torcida já antecipava há sete anos, é o ano mágico ansiosamente esperado. Até chegar nesse ponto, o Flamengo peregrinou, combateu o bom combate, manteve a fé e deixou as forças ocultas do bem trabalharem a seu favor. Precisamos, mais do que nunca, exaltar nossa assombrosa faculdade de se reerguer e de dar respostas às convenções que o futebol moderno exige, porque ela é quem nos manteve e nos manterá de pé por muitos e muitos anos.
Afinal, como diria Artur da Távola, ser flamengo é ser humano e isso significa ser inteiro. Tal condição implica adaptar-se ao contexto, sem perder o élan que nos move desde 1895 e aceitar que nem sempre as coisas saem do jeito esperado. O mais importante é continuar em movimento.
Enquanto for assim, o Flamengo será invencível.
Valeu galera, uma honra dividir esse espaço com vocês. SRN
Texto muito legal!!!!
Grande abraço!
Gabigol está na nossa história, bem como Jesus, Bruno Henrique, Arrascaeta, Rafinha, Rodrigo Caio e todos os jogadores desse grupo fabuloso. Mas os verdadeiros responsáveis por esse novo momento histórico são autênticos rubro-negros, torcedores como nós, que colocaram seu conhecimento e sua força de trabalho à disposição do Flamengo. Destaque para o ex-presidente Eduardo Bandeira de Mello e destaque especial para Marcos Braz, o homem que assumiu todos os (elevados) riscos para trazer o treinador e os jogadores que faltavam para darmos o passo final rumo à glória perdida.
Brilhante artigo
Campeoníssimas SRN
FLAMENGO SEMPRE
Mais um craque das letras entre nós.
Faz-se literatura neste espaço.
Excelente texto. Didaticamente perfeito.