Eu lembro bem a primeira vez que vi Jesus.
Em pé na multidão, sob a luz semidivina dos refletores do Maracanã, fiquei um tempo sem entender o que se desenrolava diante dos meus olhos. Era apenas futebol bem jogado – mas como poderíamos reconhecer, depois de tantos anos?
O adversário era o Athlético Paranaense, a Copa era do Brasil e eu era só mais um apalermado ali no setor norte. Nossos rapazes, de preto e vermelho (um vermelho quase roxo, é verdade), voavam para dentro do olho do Furacão, sem ligar a mínima para conceitos ultrapassados como retaguarda ou contra-ataque. Comecei a decodificar o que via apenas quando um barbudão sintetizou na lata: “Rapaz, isso não é um time, é uma colônia de abelhas em fúria atacando por todos os lados”, bramiu o ogro, seus olhos embotados de cânhamo e mágica.
À beira do campo, também a zunir enfurecido, o chefe da colmeia, o senhoire Jorge Fernando Pinheiro de Jesus – que, agora em outubro, completou dois meses sem perder uma partida.
“Na rodada recém terminada”, derreteu-se mestre Juca Kfouri no início da semana na “Folha”, “o Flamengo mostrou mais uma vez qualidade rara entre os times brasileiros: a de jogar fora de casa como se fosse o anfitrião.” Seu vizinho no jornal, o tarado por futebol PVC, também adoçou para cima do português: “O que funciona sempre é o treino. Nele, Jorge Jesus construiu o time de movimentação mais constante do Brasil desde o Santos campeão da Copa do Brasil de 2010, com Robinho, Neymar, Ganso e André”.
Se tem quase uma década que o PVC, logo o PVC, não vê um time lépido e fagueiro como este, algo de bom nosso Jesus realmente tem feito. Mas se tu pensas que o treinador hoje agrada a todos – algo que, vale lembrar, nem seu xará mais famoso conseguiu – estás redondamente enganado, o pá.
E a prova viva e ambulante disso é um notório conhecido dos cariocas, mistura de beduíno e tenor, cujo ganha-pão é nos matar a sede, enquanto colore as praias de laranja (salve Queiroz, tudo em riba?). Sim, ele mesmo, o vendedor de mate da praia do Leblon.
O futebol não é mesmo incrível? Como a gente poderia supor que numa casinha em Amadoras, velha freguesia de Oeiras, madame Maria Elisa e seu esposo Virgolino de Jesus – um disciplinado soldador elétrico, atacante do Sporting nas horas vagas – criariam e alimentariam um espevitado filhote, e que esse miúdo aprenderia com seu papai duas paixões das mais valiosas – o ofício de eletricista e o amor pela bola? E que o tempo passaria e, um dia, o pequeno Jorginho se tornaria um respeitável treinador, viria lá do outro lado do oceano, a cabeleira ao vento, para irritar um simpático vendedor de mate carioca?
Já não é muito fácil a vida desses nobres trabalhadores, se me permitem entrar nessa seara arenosa. Afinal, não é todo mundo que é capaz de caminhar mais de 15 quilômetros por dia, com quase 50 quilos nos ombros, e cantarolando. Por isso tudo, para driblar o cansaço, a areia quente e a concorrência, o bom humor é fundamental na rotina desses craques do comércio errante.
“Foi daqui que pediram um disque-mate? Olha lá, vir à praia e não beber um copinho com biscoito Globo é feito ir à Disney e não ver o Mickey”, brinca um deles. “Em dia frio não me esquento, vou à PUC e vendo mate pros estudantes”, diz outro, que tem seu bordão (“Só os crias!”) e até cartão-fidelidade.
“Beleza, mas e o vendedor de mate que não gosta do Jesus? Vamos logo, cacete”, diz o leitor, já doido para sair do metrô, do uber ou do banheiro. Perfeito, calma lá que estou nos finalmentes.
É que nosso bravo vendedor, avalie você, ao longo de toda uma vida amealhou uma respeitável coleção de camisas de times, com uniformes de futebol vindos de todo o Brasil, de equipas da América do Sul, da Europa e até do México – tarefa suada, em especial para quem tira uns 250 mangos em dias quentes e menos de 20 reais nos dias de frio. A razão principal do acervo, que ele guarda com zelo em sua cachanga no morro do Salgueiro? Ter sempre à mão, para usar com seu colete, a camisa do time que derrotar o Flamengo na véspera. O hábito, claro, o fez folclórico, com clientes cada vez mais cativos entre tricolores, alvinegros e vascaínos. Mas o ajuda a fazer amigos também entre os banhistas flamengos.
“Vai mate, freguês? Ah, essa camisa? Não, não. Sou nada, é que hoje abri a gaveta e achei justamente essa a mais bonita da coleção… Mas jura que o patrão não gosta das cores? Ué… Já que o freguês me parece chateado, vou fazer um preço camarada. Bebe aí que dou um choro de limonada”, eu imagino a lábia do comerciante, sorrindo maroto e piscando para a turma, enquanto abre a torneirinha.
Até que chegou Jorge Jesus, para arruinar a tática criativa do nosso amigo. Em 14 jogos, contra “putências” tais quais Cruzeiro, São Paulo, Grêmio, Internacional, Palmeiras, Santos, Vasco e Galo, a equipa do Flamengo acumula 11 vitórias e nenhuma derrota, mesmo em plagas distantes onde qualquer empatezinho safado era celebrado outrora com festa na rua e porres homéricos.
Para o bem da verdade, preciso confessar que não tenho visto nosso bom mascate das dunas. Amigos em comum informam que o gaiato é tricolor, não sei. Há quem garanta que ele não se entrega, e apareceu outro dia com uma camisa do técnico da seleção brasileira, o Tite, que fez a safanagem de mandar nosso artilheiro e o melhor zagueiro atravessar uns três oceanos. Mas também pode ser papo de carioca.
Chorinho: Tenho sido parado na rua por diversos leitores, que me perguntam as horas ou onde fica o Zona Sul. Um, no entanto, quis saber o que achei da experiência de ir à Arena do Grêmio. Bah, curti, claro, mas é mais um estádio brasileiro sem um pingo de alma. Quase fui visitar o Olímpico. O que me chamou atenção mesmo foram as faixas gremistas, muitas com um português pior que o meu. Natural para uma torcida que provavelmente aprendeu a ler nas figurinhas do Danrlei. Ah, e o bar não vendia mate!
Um falecido colega foi vendedor de mate nas praias cariocas. Sujeito boa praça, brincalhão, fazia amizades com imensa facilidade. Acho que esse é um requisitos para se candidatar a esse labor: a alegria.
Diferente do mencionado cidadão, não gostava de futebol. Seu prazer era curtir as coisas boas da vida. Faleceu jovem. Uma pena.
Não menos triste é a situação de seu parceiro de profissão. Sua coleção estão sem uso. Quanta maldade do gajo. A única solução é estampar a indefectível camisa rubro-negra.
Será que ele utiliza? Força, man!
Em primeiro lugar, paabéns, com 24 horas de atraso, para o Rasiko, completando os seus 75.
Depois, pela ordem –
a) ótimo artigo e
b) Jesus é insuperável. Mudou o futebol do nosso Flamengo, talvez com influência no futebol brasileiro.
Por fim, como já estou escrevendo na sexta-feira, vou proclamar o óbvio.
FLAMENGO HEPTA CAMPEÃO DO BRASIL.
Ia jogar fora as minhas sandálias da humildade.
Mudei de idéia.
Resolvi remetê-las para Singapura, para um certo senhor Adenor Bacchi (ou coisa parecida).
Jogar de igual para igual com Senegal (se tanto …), em campo misto, é quase o fundo do poço.
Tomara que Rodrigo Caio e Gabigol não entrem no domingo.
Correm o risco de desaprender o que foi ensinado pelo Mister.
Eufóricas SRN
FLAMENGO SEMPRE
Obrigado meu querido amigo.
Soube de fontes fidedignas que nossos adversários estão cogitando de, em vez de contratarem jogadores, que são caros e eles, pobres que são, não podem pagar, estão pensando seriamente em comprar ônibus ou jamantas pra estacionar na frente de suas áreas.
O que os incompetentes “especialistas” em futebol dos diversos canais na internet não conseguem enxergar é que não é que nossos adversários joguem mal, mas sim que o Flamengo não deixa eles jogarem. É impressionante a sincronia do posicionamento dos jogadores. Não há espaço pros adversários se movimentarem.
Com sua licença, EMPOLGADÍSSIMAS SRN.
Parabéns, Mestre Rasiko!
Grato meu bom João. Mas quando vc me denomina “mestre” precisa esclarecer de que. Grande abraço.
Apesar de não o conhecer, a Escola da Vida nos ensina a respeitar os mais velhos, não só pela idade como pela sabedoria. Mestre pela sabedoria popular e científica. Seus comentários apartidários de política demonstram uma vivência e conhecimento restrito a poucos. Totalmente desprovido de paixões e fanatismo. Coaduno com seu posicionamento racional.
Parabéns e muita saúde!
Ô Dunlop! Me bateram que teu contrato, por sinal muito bem remunerado, supõe 3 crônicas semanais. No mínimo. Por causa que qui tu num tá cumprindo? A Magnética não costuma perdoar craque que não entrega o que promete. Abre o olho.
Hoje, 10/10, é meu aniversário – ou adversário, como dizia meu ex-melhor sogro se referindo aos de idade avançada – e quem me deu o melhor presente – e também o único – foi o Vitinho. Botou a bola debaixo do braço e declarou: “Ou é hoje ou é hoje!” Jesus fazendo milagres e ressuscitando mortos. Se conseguir o mesmo com o Berrío, se e quando o simpático clone do Blecaute sair da UTI, onde paraece ter reserva permanente, aí é caso de canonização.
srn p&a
Meu 2º presente veio assistindo o genial canal do genial Gérson, Canhota 70, depois do jogo: “Flamengo ganha com o auxílio do VAR – V=Vitinho, A=Arão, R=Reinier.”
Obrigado minhas Deusas! Não sei se mereço tanto.
Salve a feliz data, mestre. Sobre o Berrio, esse parece estar com medo de ser feliz. Vamos torcer. Abração
Valeu, my teacher! Mas com o Berrío não tenho esperança; com o Vitinho eu desconfiava que o JJ tava fazendo a cabeça dele. E tava. Agora é só seguir o conselho do Temer e continuar isso aí. Grande abraço.
Parabéns pelo texto! Gosto das entre linhas e dos olhos embotados… Também gostaria de agradecer pela inforção sobre o vendedor de mate pois agora tenho um motivo óbvio para afastar meu filho dessa cultura, mate, só o de casa de Flamenguista! Erva quente, só a da mariahuana. Derrotas, só quando Deus quiser… SRN