Primeiro é preciso jogar limpo e admitir que nem todos os teólogos apresentaram evidências do que contaremos a seguir. Na realidade, são bem raros os mestres em teologia que defendem tal controvérsia. Bolas, a quem quero enganar – houve apenas um especialista que a ventilou, por sinal um meio pinguço que só tinha aula por Zoom.

Tudo teria ocorrido numa época em que Deus estava cansado. Após completar 65 bilhões de anos de profissão, Ele passou a flertar com a aposentadoria e, num momento de desgosto, a repensar o monoteísmo. Afinal, não conseguia se lembrar nem de quantas luas tinha Saturno. A solução paliativa fora convocar uma reunião ministerial com seus principais santos de devoção para decidirem, democraticamente, os rumos do Universo. De acordo com tal tese, a última de tais reuniões se deu nos anos 1950, e sua ata sagrada, como por milagre, foi parar num arquivo empoeirado de uma paróquia do Cosme Velho. A que o leitor agora pode conferir e, por discrição, não repassar jamais.

“– Obrigado, meus filhos, por mais uma reunião abençoada e produtiva. Sempre temi por este ano de 1954, mas os senhores estão fazendo o seu Criador muito feliz: já tratamos dos buracos negros, da vacina da pólio, Marilyn Monroe na Coreia e se o Lacerda toma o tiro ou não em Copacabana. Creio que com isso encerramos e… sim, Tadeu?

– Ó Salvador, peço licença para abordar o assunto mais importante entre os menos importantes. Todos o conhecem, mas não me canso de louvar o infatigável trabalho do irmão Padre Góes. Nunca, em tempo algum, uma capelinha tão minúscula recebeu tantas ovelhas – em especial nos dias de futebol.

– Sei, o padre que usa camisa do Flamengo com a batina. Não preciso lembrar que o clube vivia uma seca de nove anos, sem levar troféu nem em torneio de biriba. Graça concedida, e estão aí com um timaço e são os atuais campeões. Logo, cuidado com o que vai pedir…

– Pois é, Pai Amado. Já até aprovamos aquele projeto de transformar a capelinha num dos maiores e mais belos santuários do Rio de Janeiro. Para caber tanta gente, sabe? E é nesse sentido que eu gostaria, assim, digamos, de pleitear…

– Desembucha, Tadeu.

– Bem, o Senhor sabe como eu prezo meus fiéis flamengos, e da minha popularidade que só cresce entre eles. Meu pedido é simples. Que a torcida do Flamengo seja a primeira a chegar a 50 milhões de apaixonados.

Abriu-se uma clareira de um silêncio celestial, até que São Lourenço interveio:

– Uuu quê?! Isso é impossível.

– Nada é impossível.

– Nada disso faz o menor sentido, Divino.

São Judas Tadeu então defendeu sua proposta:

– Repare, Lourenço. O Brasil é um país falsamente em comunhão, que vive dividido. Desde o Marquês de Pombal, há brigas do povo contra e a favor de Pedro Segundo, de Floriano, e de Vargas agora. Famílias discutiam até por Napoleão! O que pode unir mais um país do que uma torcida que samba, se abraça e deixa as diferenças de lado – nem que seja por 90 minutos?

– Ah, não mete esse papinho de cerca-Lourenço.

Santa Rita então piscou:

– É verdade, Judas Tadeu, que “ele” já nasceu?

– Sim, sim! Nosso próximo camisa 10 está com quase 1 aninho, uma fofura. E que saúde! Nasceu em Quintino, onde mais? Família portuguesa. Tem nome de rei, mas não sabemos como será conhecido. Os amiguinhos vão chamá-lo de Pascoal, pois a cabecinha do garoto parece um pequeno monte. Mas depois a gente pensa num apelido melhor.

São Tomé mandou, curioso:

– Humildão, o menino?

– Tomé, ele não tem nem um quarto para ele. Depois do berço ele passará a dormir na sala, num sofá. Com a bola de travesseiro!

Deus tamborilava os dedos, causando marola no rio Eufrates:

– Pronto, pronto. É este o seu pedido, Tadeu?

– Se não for muito abuso, imaginei outra benção. O povo brasileiro se impressiona muito com as vitórias e se deprime muito com as quedas. Será, Redentor, que a gente não poderia conceder a alguns times o dom da onipresença na série A? Um ou dois times, ungidos contra os maus fluidos e o magnetismo terrível das divisões inferiores.

– Curti essa ideia… – tossiu São Paulo, cofiando as barbas.

Deus grunhiu e pôs a pauta sob votação.

– Bem, por unanimidade, os milagres de Tadeu foram aprovados.

– Graças a Você!

– Vamulá. Pelos poderes a Mim concedidos por Mim mesmo, estabeleço que, em meados do ano de 2024, a cada cem brasileiros, 25 serão torcedores do Flamengo. Você terá então seus 50 milhões de rubro-negros. Agora, às contrapartidas.

– Gulp – filosofou São Judas.

– Sim, Tadeu, ou não tens lido o Velho Testamento? Achaste que seria só molezinha? A primeira condição será: vinte anos antes do nascimento do quinquagésimo milionésimo bebê flamengo, seu clube vai sofrer uma derrota colossal. Em pleno Maracanã! Mico? Não. Um gorila, uma derrota acachapante, medonha e inesquecível.

– É assim que se fala, Chefia! – sorriu Santo André.

– Vocês queriam o quê, 50 milhões de pessoas sensatas, merecedoras, razoáveis e calminhas? Ah, de jeito maneira. Vamos à próxima: o Flamengo será uma usina capaz de criar, de um grão de areia, crises hecatômbicas. Serão crises ciclópicas, crocodiláceas, sesquipedais, nascidas dos episódios mais banais! E, de lambuja, nenhum treinador será amado ou tolerado por mais de 12 meses, pode anotar.

– Cacete de agulha…– ganiu São Judas Tadeu.

– Para você entender. Um dia, haverá um novo dilúvio – dessa vez, não terei culpa. Esses humanos é que não aprendem, né? Pois bem, o futebol será interrompido no país, nada estará acontecendo. Num passe de mágica, surgirá uma foto. Sim, do artilheiro do time, do ídolo da criançada, e ele estará vestido com uma camisa… de outro time! Serão 50 milhões de pessoas amarguradas, em fúria, sem se entender.

– Que maldade, Velho. Chega. Chega! – São Judas largara o machado no chão.

– Bem, para eu não soar muito cruel, vamos lá: em outra grande chuva calamitosa, farei seu menino rei jogar com outro grande monarca do futebol, com o Maracanã lotado e unido para vê-los tabelando, ambos de vermelho e preto. Ô Tadeu, não precisa ficar com esta cara. Tá bom, tá bom, vejamos: pronto, a Carolina Dieckman vai torcer pro Flamengo.

– Meu bom Deus, eu lembrei de um pedido…

– Perdão São Januário, mas a reunião terminou. Sim, Cosme e Damião?

– Ô Paizão, a gente já pode ir jogar bola lá fora?”