Quando um estranho qualquer me para na rua e pergunta — E o Flamengo, hein?, de imediato saco do meu embornal de hipérboles e grandiloquências um monte de proparoxítonas e na base dos jabs curtos vou levando o cara pro canto do ringue. Simulando incredulidade pergunto se ele não tem conhecimento do esplendor do nosso time, da poderosa estrutura e do modelo de negócios que o Flamengo montou para ter, para todo o sempre, o melhor elenco da América do Sul e Norte. Aumento a abrangência da pergunta que nasceu retórica e o inquiro, com alguma severidade: Qual outro time está em melhores condições que o Flamengo no continente?

Quando o cabra já tá zonzo com a furiosa sequência de fatos, estatísticas, reminiscências e citações disparadas sem pausas passo para o modo passivo-agressivo e lhe recomendo, com lhaneza, a leitura de uns dois livros e uns três ou quatro colunistas de comprovada legitimidade e independência editorial antes de me perguntar qualquer coisa. E saio saindo, que eu não sou otário pra ficar dando mole pra Kojak. Vai zoar o Flamengo pra puta que o pariu, pra mim, não!

Mas aqui, no recesso e segurança desse valhacouto mulambo posso responder ao impertinente E o Flamengo, hein? com sinceridade, sem os vapores intoxicantes do clubismo a nublarem a realidade. O Flamengo hoje é um time caro pra caralho, desclassificado com desonra da Copa do Brasil, incapaz de assumir a liderança do Brasileiro mesmo com os paraguaios peidando a cada rodada e incapaz de jogar um bom futebol. Sei que é escroto ter que ler isso, mas é a mais pura verdade.

Já tem algumas semanas que o bagulho tá feio no Flamengo. Semanas, não! Meses, quase um ano, porque se formos falar só de futebol a última vez que o Flamengo encantou foi em 23 de novembro, em Lima. Desde então o que tivemos foram jogos pelo Brasileiro 19 que não valiam porra nenhuma, três peladas safadas contra dois timecos valendo Recopa e Supercopa, o Carioca mais safado da história e Libertadores e Brasileiro 20 jogados no mais puro vamo lá porra.

Pra piorar, nas últimas semanas o Flamengo resolveu ser a putinha do São Paulo. Coincidentemente o time do coração da presidência da CBF, cuja douta e proba Comissão de Arbitragem tem nos fodido com notável assiduidade em suas competições. Na primeira sacolada que levamos cortaram a cabeça do Dome, uma decapitação encenada pelos sacerdotes da diretoria como se a guilhotina fosse o último altar das decisões ponderadas e científicas.

Aí contratam um cara de currículo fraco, portfólio pobre e assessoria de imprensa forte que se adaptou rápido e conseguiu levar mais dois sapeca-iaiá do São Paulo em sequência. É aquela parada chata da coerência, se o Ceni não tem culpa, o Domènec também não tinha. A decisão de mandar o cara embora foi tão burra e nas coxas quanto a de contratar o seu substituto.

Agora que a porta tá arrombada nem adianta meter um cadeado, virou saque e todo jornal que eu leio me diz que a gente já era. As revelações, inconfidências, fofocas e acusações sobre os bastidores do time mais foda do mundo estão em toda parte. Toda hora nos deparamos com mais um cadáver encontrado nos armários da Gávea. Vou nem considerar os boatos, ciúmes e invejas que ardem na fogueira das vaidades dessa diretoria rubro-negra porque nisso ela não se difere das diretorias anteriores. Todo mundo, profissionais e amadores, quer se dar bem o tempo todo em todos os lugares e no Flamengo não é diferente. Não é esse o problema.

O problema é a incompetência. Que pode ser muito bem disfarçada ou compreendida ou relevada, quando o time tá na merda, lutando só pra manter a honra e a vaga cativa na Primeira Divisão. Mas quando o time é bom, existe estrutura e bufunfa, fica todo mundo de olho exigindo excelência dentro e fora de campo. Comprovando o que Hermes Trismegisto escreveu com uma ponta de diamante numa lâmina de esmeralda: o que está embaixo é como o que está em cima e o que está em cima é como o que está embaixo, para realizar os milagres de uma única coisa. E assim como todas as coisas vieram do Um, assim todas as coisas são únicas, por adaptação.

Traduzindo pro mulambês, não existe time bom com diretoria ruim e nem vasco-versa. O time ruim começa na primeira mancada que nego dá lá no 4º andar. Assim como o time bom nasce de uma troca de passes bem feita num daqueles gabinetes nababescos à côté du lac. A lista de vacilos da diretoria é vasta, tão vasta quanto as más atuações do time em 2020, contudo é menor do que a coleção de títulos que poderia ter conquistado. Desnecessário detalhar tal lista, até os maridos sabem que no extracampo nossa cartolada tem mostrado um forte compromisso com o erro.

As sujeiras foram todas expostas e, graças a tudo que acontecia dentro de campo, diligentemente varridas pra debaixo do tapete, com o auxílio entusiasmado da imprensa e da torcida. Há que se convir que com o time passando o rodo daquela maneira animalesca não havia o menor clima para mais comoção do que as denúncias que foram feitas à época já provocavam. Tava todo mundo curtindo o bom momento, com razão. Mas agora que geral viu que o rei está peladão não dá mais pra segurar, a merda que não se dilui em solução aquosa invariavelmente volta à tona.

Isso não quer dizer que o ano esteja necessariamente perdido, mas são fortes os indícios de que o time não vai dar conta de atender à gulosa lista de desejos da torcida. Já não foi Bi Carioca invicto, já não ganhou a Copa do Brasil, não está esculachando no Brasileiro e não inspira muita confiança pras fases vindouras da Libertadores. Ou seja, em menos de um ano voltamos a ser aquele Flamengo que todos nós aprendemos a amar. Muito fudidos, mas sempre rumo a Tóquio.

Claro, quem começou a torcer pro Flamengo no ano passado há de estranhar esse cenário desolador pois carece de referencial. Os mais cascudos têm o dever de tranquilizar os neófitos e instruí-los. Explicar pros novinhos que o Flamengo é basicamente isso, sofrimento do caralho, indignação cívica e esperança imorredoura. O pessoal fica brabo e diz que acabou o amor, mas é mentira. O que acaba é a paciência.

É triste ver o sonho ser zunido pra Lua como se fosse um pênalti cobrado pelo Vitinho. Aperta o coração ver o Flamengo ser usado pela raça mais filha da puta de ladrões que já passaram pelo governo, envergonha perceber que a genuflexão que o clube fez diante do imbecil da vez expôs ainda mais o clube às encoxadas e dedadas dos abusadores de sempre. O Flamengo voltou a ser um time comum e ordinário, mais ordinário que comum, e dessa vez a torcida não pode nem manifestar a sua revolta nos estádios.

Todos os cemitérios se parecem, mas onde a dúvida apalpa o mármore da verdade, a descobrir a fenda necessária; onde o diabo joga dama com o destino, o Bruxo do Cosme Velho está sempre ali, alusivo e zombeteiro, resolvendo enigmas. Hoje, a torcida do Flamengo caiu das nuvens. É uma queda feia e dolorida. Mas como dizia o Bruxo, é melhor cair das nuvens do que de um terceiro andar. Pelo menos agora estamos inteirados,  se tudo der errado, cultivo uma crença ilógica de que não dará, a gente já sabe o motivo.

Mengão Sempre