Meu jovem André Rizek
Como vai essa bizarria? Por esses dias, o Armando Nogueira me aparece e comenta que você anda tomando meu ímpio nome em vão, pelas redes sociais (ou socialistas? Perdão: ainda me é duro resistir a provocações). Conheço um Rizek, de raiz palestina, que traduz poemas persas. Você caiu dessa árvore?
Antes de mais nada, rogo-lhe que não me amaldiçoe com súplicas sobre o recente Fla-Flu em três atos. Sei que os lorpas, os pascácios, os cretinos fundamentais hão de perguntar: mas não houve o Fla-Flu? Com pertinácia paquidérmica afirmo: Não. Não houve clássico algum. Como pode existir um Fla-Flu fantasmagórico, com bandeiras desfalecidas em lugar das multidões? Repito: esses três Fla-Flus não aconteceram, como não aconteceram as brigas, os maus árbitros ou os cacetes dados à bola. Se você, Rizek, os assistiu pela vossa excelentíssima internete ou outra rede, evoco a máxima ululante: como o videoteipe, as transmissões são burras!
Sei que hão de insistir os bovinos (civis ou militares), as bestas de 28 patas. Ah, mas o Flamengo não foi campeão do Rio pela 36ª vez? Foi, o Flamengo foi o campeão. Só que o povo, com o seu instinto agudo, sua vidência terrível, reconheceu e apontou, com o dedo cheio de perdigoto e vírus, o verdadeiro motivo das finais. Ganância! Dinheiro das tevês! Sim, o romantismo do Fla-Flu foi trocado por 30 moedas de prata, como se nossos clubes fossem administrados por Judas de cartolas. Imagino, na Gávea, as prateleiras abarrotadas de taças e os troféus inumeráveis chocalhando de humilhação. Vamos e venhamos: a imortal nação rubro-negra não fazia a mínima questão de um título tão frio, solene, lúgubre.
As inteligências simples, bovinas e, atrevo-me mesmo a dizê-lo, vacuns, hão de rosnar, das trincheiras virtuais: “Choro de perdedor!” Outros, ainda, hão de mugir: “Literatura!” Não. Não faço literatura há 40 anos, caro Rizek. O que dirá chorar lágrimas de esguicho pelo Fluminense.
Meu jovem, avalio que você era um fedelho em calças curtas quando meu coração parou, naquela manhã de domingo de 1980. Que dia! Ali, e só ali, pude enfim compreender o bárbaro senso de humor de Deus. Acreditaria que, na tarde de minha morte, eu fiz 13 pontos e ganhei uma bolada na loteria? Sim, fiz minha fé num “bolão” com meu irmão Augusto e amigos do jornal “O Globo”. Grana alta. E eu morto, num sopro. Biltres e rancorosos adentrariam o Céu crispados, chutando canelas dos arcanjos. Não eu.
Digo tudo isso de coração para coração, de alma para alma, para que não me julgue mal: choro de perdedor não há. E vou adiante: assino embaixo no que escreveu o garoto do Érico Verissimo: “O futebol brasileiro hoje é o Flamengo com um deserto em volta.”
Sim, pois até um paralelepípedo é capaz de enxergar isto. O escrete rubro-negro, há uns anos formado por barnabés, é hoje fidalgo, forte, herói. Não é um time como os outros. Qualquer time é um conjunto, que inclui o goleiro, a zaga, os médios e os três dianteiros. No Flamengo, não. No Flamengo tudo é ataque e só ataque. A defesa pode falhar, o goleiro pode papar frangos homéricos, frangos camonianos. Mas desde que o ataque esteja em estado de graça, de plenitude, não há por que tremer.
Eu dizia que o Flamengo é todo ataque, mas esqueci o principal. É um Flamengo com um Leônidas, um Napoleão à frente. Não se engane pela estampa de pintor renascentista: Jorge Jesus faz inveja a um general de Esparta. E como ficará o Flamengo sem seu Leônidas, sem seu Napoleão? A ver.
Meu jovem Rizek, agora lanço a bola para você, com a mão ambas, como diz o Eça. (Venho tendo com Eça conversas saborosíssimas, entre chás, bolinhos e um mingau de fazer anjo babar. O Dostoiévski senta conosco, mas sabe como é gênio, que dirá gênio russo. Todo gênio desconfia de si, percebe-se uma sortuda aberração, um acidente divino. E assim ele fica, mais calado que goleiro reserva em preleção. Só se anima quando chega o Ariano Suassuna ou o Garrincha.)
Mas vamos à bola lançada a mão ambas: por que o Flamengo tem um deserto em volta? De onde brotou a aridez, meu palestino Rizek? De velho repórter policial para repórter policial: o coração do problema está na Confederação. Marchem com archotes até a Confederação, exibam as tripas e os podres da Confederação todos os dias, e o futebol e o escrete brasileiros hão de voltar a sorrir. Não quero fazer frase, mas afirmo: uma seleção monótona fere um país tão ou mais que esse fascismo de galinheiro que se empoleirou em Brasília.
(Outro dia, veja você, reencontrei o João Figueiredo, que tomava seu chope sozinho. Veio a mim, compungido, a pedir sinceras desculpas por todas as torturas que meu filho Nelson sofreu. Creio que chorou. Disse que passou anos no purgatório. Ele detesta o atual presidente, e soltou ao menos uma boa: “Ter medo de comunista hoje é como temer ser atropelado por um cavalo na Voluntários da Pátria.”)
Mas não era isso o que eu queria dizer. O que eu quero dizer a você é que a seleção brasileira tem jeito. Só é preciso expor e combater a burrice, todos os dias, e trabalhar com inteligência. Nossos jogadores, nossos treinadores e, por que não, nossos jornalistas, precisam suar mais que um remador de Ben-Hur. Basta dizer o seguinte: o povo brasileiro não reconhece o escrete brasileiro. Quem sabe o nome do quíper? Que taxista conhece a dupla de zagueiros? Nenhum. E falta o principal. Falta o atacante que, mesmo em casa, mesmo lendo gibi no banheiro, já infunde nos adversários um pânico religioso.
O Mario Filho aparece, e me interrompe com três tapinhas nas costas. Folgazão, quer que eu fale sobre a lista. (Ele chama de “a lista”.) A lista do Maracanã. A lista dos 70 jogos do estádio. Ele admite: de início mastigou meia dúzia de charutos com os dez principais jogos da lista. Depois, desamassou o jornal e guardou. Na primeira vez que o leu, estava vermelho:
– Nelson, você viu? Tiveram a coragem de omitir Flamengo x Atlético dos dez mais?
– Sim, tiveram essa coragem.
– Mas foi a maior final de Campeonato Brasileiro que já houve! Maior que muita final de Copa do Mundo! Maior que a Batalha do Riachuelo…
Mas o Mario Filho já aceitou. Ele sabe que a imprensa não usa e explora seus arquivos, como não se usa mais espartilho. Quem ainda lembra do que escrevi em 1980? Ah, uma de minhas últimas crônicas… Ainda me lembro do trecho final:
“João Leite, o goleiro, sai ao seu encontro. Nunes o evita e faz, talvez, o mais belo gol da história e lenda do Flamengo. A multidão rubro-negra morrera 500 vezes durante a batalha. E o gol de Nunes fora aquela furiosa ressurreição. No último momento, quase, quase, o Atlético faz o gol que o Flamengo não merecia. E não houve gol por isso, porque o Flamengo não merecia.”
A multidão a morrer 500 vezes… Dá vontade de fazer uma demagogiazinha, não? Evitemos. Creio que você queria perguntar sobre a atual cartolagem, acertei? Pois outro dia mesmo esbarrei com Gilberto Cardoso, e perguntei: “Que tal o senhor Rodolfo Landim?” Cardoso baixa a voz: “Bárbaro!” Insisti: “E o médico do clube?” Resposta: “Bárbaro!” Fui adiante: “E o Jurídico? E aquele caso dos meninos?” A tudo, Dr. Gilberto respondia, de olho rútilo: “Bárbaro!” Saí de perto. O Mario Filho, no entanto, é taxativo: “Landim tem crédito. Só tenho um receio. Que, após pugnar com as tevês, bancos, governantes e clubes rivais, ele viaje a Buenos Aires para trazer um lateral-direito, se distraia e acabe tentando anexar as Malvinas.”
Meu bom Rizek, o mingau e o Eça me aguardam. Agradeço as constantes referências a meus livros, mas foram apenas bobagens que escrevi – salvo, claro, algumas três ou quatro peças teatrais que me orgulham. Leia “Anjo negro”, você há de gostar. Minha única exigência: não deixe que a nova geração escreva sobre futebol sem ler “O negro no futebol brasileiro”, de Mario Filho. É o livro mais importante da história do Brasil. Transmita essa súplica ao neto do Antônio Maria, o manda-chuva da sua emissora.
Perdoe o mau estilo e a ferrugem na escrita. Mas você já deve ter visto como chegam aí embaixo os quadros do Manet psicografados. Um pavor! Sigo orgulhoso de meus erros e acertos, e prenhe de fé na bondade humana.
Que Deus te ame eternamente e a teus futuros filhos.
Nelson Rodrigues
PS: Rapaz, pude enfim conhecer a esfíngica Mata Hari. Tremendo bagulho!
PPS: O Scassa não sossega. Foi me pegar escrevendo para vir perturbar. Pediu que lhe transmita a mensagem: “Deus, dai-nos o fim dos Estaduais, mas não agora…” O Scassa só pensa em ser, pela primeira e última vez, tetra estadual.
PPPS: Toda vez que sento com o Mario Filho, surge um sujeito diferente a perguntar sobre a Copa Rio, o torneio internacional que meu irmão organizou em 1951 e 1952. Palmeiras e Fluminense foram seus vencedores. Para o Mario, a Copa Rio não é, não foi e nunca será um Mundial. E vou além: Fluminense e Palmeiras não têm Mundial. O que não os diminui em nada.
PPPPS: Mande o Jabor atender meus telefonemas. Peça que pegue minhas encomendas no sebo “Mar de histórias”, estou entregando tudo lá.
PPPPPS: Tenho lido, Rizek, alguns textos seus coléricos. Eu era achincalhado todos os dias. Jamais revidei. Lembre sempre: a glória é a soma de palavrões que vamos provocando.
PPPPPPS: O Jorge Dória, toda tarde, exige que eu conte meu “maior momento de glória sobre a Terra”, segundo ele. Ele pede, eu conto. Anos 1970, faltou luz enquanto filmavam “A dama do lotação”. Sem energia, os atores Paulo César Pereio e Sônia Braga permaneceram ali, pelados na cama, à espera da cena recomeçar. Eram amigos, nudez de irmãos. Adentro o estúdio com o imenso ator Jorge Dória, que se espanta ao ver Pereio conversando a se coçar.
– Meu Deus, Nelson! O que é isso?
Minha resposta:
– Pereio é acima de nossa compreensão. Diante de Sônia Braga, esse monumento, ele fica coçando aquele saco cor-de-rosa.
Para Dória, todo e qualquer mortal diria: “Pereio ficou coçando o saco”. Mas só um gênio faria o reparo: “Coçando aquele saco cor-de-rosa”. Só a bobagem nos redime, rapaz. É só. Até daqui a 40 anos.
Eu como um humilde leitor não sei descrever com tanta clareza de detalhes como vcs grandes gênios da nossa literatura fazem.
Incrível e inimaginável é ter grandes escritores em nosso tão querido blog.
Fico imaginando vcs todos juntos, isso claro quando essa pandemia passar, seria como está ao lado de heróis de várias épocas e lugares, em homenagem ao Arthur, seria um bar onde teria uma mesa redonda ao estilo da távola, Arthur eu comparava ao Tirion lanister, mas o final da série foi uma porcaria, então o Arthur é o Dionísio( baco) gosta de uma bebida e tem cada delírios literários que faz com que viajemos sem sai do lugar, o Murtinho seria ou o Gandalf o mago branco por saber muito e ter visão além do alcance de todos, hehehe, a nossa querida Vivi seria a Atena por ter uma inteligência acima de todos vcs aí, kkkkk, claro que é verdade é uma mulher de grande sabedoria e uma sensibilidade sem igual , a Nirvinha seria Afrodite por ter o poder de sedução incrível, o Arnaldo é Pã, um Deus que aparece de vez em quando, kkkkk, o Dunlop é o Loki um deus sacana que adora tirar onda , desculpa se não sei quem é ladrilheiros.
Como é ótimo ser flamenguista e saber que temos uma nação que ama e tem o privilégio de ter um grupo de eternos escritores rubro-negros ao nosso bel prazer.
Dunloki? É, gostei!
Ídolo!!! Brinca com as palavras como o Arrasca brinca com a bola!!!! Bela homenagem!!! Abs
Nelson Rodrigues aplaudiu e mandou avisar: “hoje o meu personagem da semana é o Marcelo Dunlop.”
SRN!